“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 17 de abril de 2017

A Febre do ouro

Sonhos de riqueza e ganância de aventureiros produziram um quadro tão caótico na região das Minas que Portugal chegou a temer pela desintegração da colônia.
Adriana Romeiro
          A corrida do ouro, entre o final do século XVII e a primeira década do XVIII, foi talvez a maior migração de homens brancos e livres na América portuguesa ao longo de todo o período colonial. Não há nada, na História do Brasil, que se compare a este momento. Em dez anos, a população das Minas - futura capitania de Minas Gerais, na época parte da capitania de São Vicente, núcleo original do estado de São Paulo - atingiria a cifra de 50 mil indivíduos. Uma população extremamente heterogênea, formada por brancos europeus e americanos, africanos e índios de diferentes nações, mestiços de toda sorte - enfim, um mosaico étnico que surpreende os contemporâneos.
       O espetáculo multirracial oferecido pelas multidões se desenrolava num cenário bastante peculiar: localizadas em meio aos sertões, no coração indevassado do continente americano, as Minas ofereciam uma geografia vertiginosa, salpicada de montes elevados, vales escarpados, rios frígidos e caudalosos, toda ela recoberta por uma vegetação densa e impenetrável, típica da Mata Atlântica. A todos causou profunda impressão a paisagem inquietante da região, descrita invariavelmente em tons sombrios e sinistros, diante da qual o medo era o sentimento mais comum.
            Esta multidão de gente vária e tumultuaria - para usar expressões da época - se distribuía por pequenos povoados e arraiais, situados às margens dos rios e nas encostas dos montes, onde se realizava a exploração do ouro. Estes primeiros núcleos populacionais não passavam de povoados rústicos, estabelecidos de forma improvisada e provisória, com ranchos de pau-a-pique, cobertos de palha, nos quais os moradores apenas dormiam, já que todo o tempo disponível era dedicado à mineração. A vida, neste contexto, era precaríssima. Nos primeiros tempos, a fome foi companheira fiel dos povoadores, que, desconhecendo a pobreza da zona mineradora, se lançavam na aventura do ouro, carregando tão somente um saco às costas.
            Surpreendidos pelas grandes ondas de fome, sobretudo as que varreram a região entre os anos de 1698 e 1699 e os 1700 e 1701, viram-se obrigados a recorrer à caça para garantir algum sustento. Em carta ao rei, em maio de 1698, Arthur de Sá e Meneses, governador do Rio de Janeiro (1699-1702), descreveu o desespero dos mineiros: "Chegou a necessidade a tal extremo que se aproveitaram dos mais imundos animais, e faltando-lhes estes para poderem alimentar a vida, largaram as minas, e fugiram para os matos com os seus escravos a sustentarem-se com as frutas agrestes que neles achavam". Em pouco tempo, porém, toda a fauna da região seria dizimada, agravando ainda mais a situação. Levaria algum tempo para que o abastecimento de víveres se organizasse. E mesmo assim, em meio aos sertões das Minas, alguns gêneros alimentícios constituiriam por muito tempo uma fina iguaria: o tão prosaico sal, vindo de Portugal, junto com a manteiga, o queijo e o bacalhau, custava caríssimo e poucos eram os que se davam ao luxo de salgar os alimentos.
      Se o sal era raro, a cachaça corria farta. Desde o início, ela foi um gênero de primeira necessidade. E não é difícil entender as razões. Havia, em primeiro lugar, a demanda imposta pelas próprias condições de trabalho: a mineração era uma atividade extremamente difícil e penosa, que exigia um alto consumo calórico. Os mineradores - em sua maioria, escravos - passavam todo o dia com o corpo praticamente imerso na água fria, bateando e transportando o cascalho dos rios até as margens, para ser então lavado. Nessas condições, a aguardente não só fornecia as calorias necessárias, mas também proporcionava um estado de semi-embriagues que tornava mais suportáveis condições de trabalho tão adversas. Essencial na labuta da mineração, a cachaça também o era no lazer: ao lado do jogo de cartas, das missas e das festas religiosas, as bebidas alcoólicas integravam o limitado universo do lazer dos mineiros.
      A imagem do caos - tão típica dos relatos dessa época - estava também associada à fluidez geográfica dos povoados, que se moviam de um lado para o outro, ao sabor das novas descobertas e do esgotamento das velhas lavras. O jesuíta italiano João Antônio Andreoni (1649-1716), mais conhecido como Antonil, forjou uma bela expressão para descrever o movimento incessante dos arraiais: "Freguesias móveis de um lugar para outro como os filhos de Israel no deserto". Em pouco tempo, a corrida do ouro desencadearia efeitos perversos. Do ponto de vista econômico, o êxodo de milhares de escravos negros colocou em risco as lavouras do tabaco e do açúcar, considerados os pilares da economia colonial. Por todos os lados ecoaram vozes alarmadas com o espectro da "ruína total" que rondava a América portuguesa.
       Além do deslocamento dos escravos para a zona mineradora, também as multidões que buscavam o ouro nos sertões deixavam para trás um rastro de abandono, com engenhos desmantelados, lavouras perdidas e fábricas desamparadas. Indagava-se se a colonização não seria, nestas condições, um empreendimento arriscado. Afinal, não se sabia ao certo a extensão dos achados auríferos, feitos até então nos leitos e tabuleiros dos rios, e não em minas de beta. Esse parco ouro de aluvião compensaria os esforços de colonização? E ainda que fosse abundante e rico, o excesso da oferta faria irremediavelmente o preço do ouro despencar em Portugal e no Brasil, tornando o nobre metal tão vil, que mal valeria o esforço de sua extração.
         Maiores ainda eram os receios de natureza política. Em primeiro lugar, temia-se que as riquezas recém-descobertas viessem a se transformar rapidamente em alvo da cobiça das nações estrangeiras, que não hesitariam em invadir e assaltar os portos marítimos em busca do ouro. Teria Portugal como resistir a inimigos reconhecidamente superiores no plano militar naval? Outros ponderavam sobre o verdadeiro destino das riquezas: não estariam elas fadadas a mal aportar no Tejo para dali seguir em direção a países como França, Inglaterra, Holanda e Itália, em pagamento das volumosas importações, fortalecendo perigosamente o poder bélico das potências rivais?
          Tamanho era o desequilíbrio das finanças de Portugal que um observador experiente como o inglês Thomas Maynard havia notado, em 1671, que: "todo o açúcar chegado este ano, acrescido de todos os outros artigos que este reino tem para exportar, não dá para pagar a metade das mercadorias por ele importadas, pelo que todo o dinheiro do reino se escoará para fora dentro de poucos anos".
        Num contexto de crise internacional, quando o perigo de uma invasão estrangeira parecia iminente, a deserção em massa dos soldados, deixando desguarnecidos os presídios e as fortalezas do litoral, punha toda a América a perder. No plano interno, não eram menores os dilemas. A corrida em direção ao ouro - motivada pela tão terrível auri sacra fames - ajuntaria homens turbulentos e facinorosos numa região fora do controle da Coroa, encravada em meio aos sertões distantes e inóspitos, e bem poderia originar uma república independente a desafiar o poder de el-rei. Ou, o que seria ainda pior, tal gente rebelde poderia vir a se associar com o inimigo externo, minando de vez a autoridade régia sobre a região mais rica do vasto império português.
        Teria afinal a Coroa condições de estabelecer a rápida colonização em terras tão longínquas, montando ali um governo político capaz de conter os arroubos de gente tão inquieta? Se a principal missão dos príncipes residia na administração da justiça, sendo esta a causa final por que foram constituídos por Deus e pelos povos, como então estabelecer o aparelho de justiça e instituir magistrados com os minguados recursos de Portugal? Para a Coroa, mais importante do que a exploração sistemática do metal, era garantir que a descoberta das minas não colocasse em perigo o resto da América. Uma série de medidas restritivas foi então imposta, a começar pela proibição do trânsito de pessoas e mercadorias pelo Caminho da Bahia - de longe a via de ligação mais importante entre as Minas e o resto da América, procurada por quase todos os que partiam para lá. Para conter o êxodo dos escravos, estabeleceu-se uma cota de duzentos cativos que poderiam ser adquiridos anualmente pelos paulistas.
        Nada disso conseguiu, contudo, reverter a migração em massa. Do ponto de vista administrativo, foi criado o Regimento de 1702, inspirado na legislação então existente para as minas de ouro. Apesar das boas intenções, era uma peça falha, incapaz de dar conta das situações de conflito que se desenhavam no horizonte. De acordo com o Regimento, o cargo mais importante das Minas deveria ser ocupado pelo superintendente, o responsável por praticamente todas as esferas administrativas, inclusive as judiciais.
        O propósito da Coroa era manter esse cargo nas mãos de um magistrado diretamente nomeado pelo rei, evitando assim que o controle da região escapasse do domínio português. Mas a experiência se revelou muito diferente. Assim que o primeiro superintendente - o português José Vaz Pinto - pisou na região, ele atraiu para si a ira dos poderosos do lugar, que o obrigaram a fugir esbaforido para o Rio de Janeiro. O episódio serviu para mostrar à Coroa os limites de seu domínio sobre a região e a força dos poderosos locais - que, não por acaso, viriam a substituir o magistrado que pouco antes haviam escorraçado.
      Só por volta de 1707, quando ocorrem as primeiras descobertas do ouro de beta - retirado da rocha mediante escavações profundas -, é que o significado político e econômico das Minas sofre uma profunda inflexão. A partir daí, o pessimismo inicial dá lugar à convicção de que o ouro é certo e duradouro, alterando por completo a posição da região mineradora na conjuntura do império português. O resultado imediato disso é a resolução, por parte da Coroa, em estabelecer finalmente o governo político e militar nas Minas, submetendo-as aos domínios ultramarinos. Não é por acaso que a nova orientação política coincidiu com a explosão da Guerra dos Emboabas (1707-1709).
      As dissensões entre paulistas e forasteiros remontavam às primeiras descobertas, radicalizando-se muito com o passar do tempo. Os paulistas alegavam a sua condição de descobridores para pleitear um tratamento especial, reivindicando para si o monopólio das terras de sesmarias e dos cargos e postos administrativos. Lastreados nas promessas feitas aos descobridores ao longo de todo o século XVII, quando a Coroa havia desenvolvido uma política sistemática para trazer à luz o ouro tão almejado, eles consideravam a presença dos forasteiros uma ameaça real aos seus interesses, vendo-os com desconfiança e receio. A superioridade numérica dos forasteiros abriu-lhes, no entanto caminho para pleitear, junto às autoridades, cargos e postos na administração local, valendo-se para isso das intrincadas redes de clientelismo que emanavam de Lisboa e se espalhavam por todo o império.
      A guerra, nessas circunstâncias, era inevitável. O que se chama de Guerra dos Emboabas foi na verdade um levante encabeçado por forasteiros contra os paulistas, sob a justificativa de que esses últimos se comportavam de modo tirânico e despótico, dispensando aos que não fossem paulistas o tratamento que se dava então aos escravos. Sob a bandeira da luta contra a opressão e a tirania, os emboabas - alcunha infamante com que os paulistas estabeleciam a fronteira étnica entre o "nós" e "os outros", isto é, os forasteiros - conseguiram convencer a Coroa acerca da legitimidade de sua causa. Para isso contou muito também a imagem extremamente negativa que, desde o século XVI, se imputava aos paulistas, tidos por vassalos rebeldes e insubmissos.
      A chegada do governador Antônio de Albuquerque, em agosto de 1709, apressaria o desfecho do confronto armado. Apesar de consagrado por uma certa tradição historiográfica como o verdadeiro herói civilizador das Minas, responsável pelo fim da barbárie e o início de uma nova era, em que os longos tentáculos da Coroa finalmente alcançaram os distantes e remotos sertões dos Cataguases, Albuquerque pouco pôde contra a força dos potentados locais, fossem eles paulistas ou emboabas.
      Além destes verdadeiros redutos de poder privado, a Guerra dos Emboabas deixaria um legado amargo para a história política da capitania. As formulações sobre o direito dos povos à resistência contra a tirania, a noção de direito de conquista expresso na visão potencialmente sediciosa de que a descoberta das Minas foi feita à custa de sangue, sem o apoio de Portugal, e a ideia, trazida pelos paulistas, de que os vínculos entre vassalos e Coroa tinham um caráter contratualista, condicionando a fidelidade dos primeiros à atitude da segunda - tudo isso viria a imprimir uma marca indelével no imaginário político dos mineiros, fomentando sedições e motins por todo o século XVIII.    

Adriana Romeiro é professora de História na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de Um visionário na corte de d. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.       

Fonte – Revista Nossa História - Ano III nº 36 - Outubro 2006

Saiba Mais – Bibliografia
GOLGHER, Isaías. Guerra dos Emboabas: a primeira guerra civil nas Américas. 2a. ed. Belo Horizonte: Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, 1982.
MELLO, J. Soares de. Emboabas: crônica de uma revolução nativista - documentos inéditos. São Paulo: São Paulo Editora, 1929.
SUANNES, S. Os emboabas. São Paulo: Brasiliense, 1962.

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O mameluco Jerônimo domina os segredos da mata. Como guia de uma expedição bandeirante, é ele quem aponta o caminho, decifra os rastros dos animais, encontra comida e água. Jerônimo terá que usar todo o seu conhecimento para salvar a vida do jovem Pedro, seu patrão e meio-irmão.

O artesão Manuel Correia confecciona imagens de santos. Com um detalhe: as imagens são ocas para esconder o ouro em pó contrabandeado por seu patrão Antônio Vidal. Apaixonado pela escrava Inácia, Manuel está prestes a cometer uma loucura por amor.

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Chica, a verdadeira      

domingo, 2 de abril de 2017

A cachaça no poder!

Revoltosos do século XVII invadem o Rio de Janeiro, derrubam o governador, assumem o comando político da capitania e acabam conseguindo o que queriam: liberar a venda da “caninha".
Antonio Filipe Pereira Caetano
      Na madrugada de 8 de novembro de 1660, revoltosos saídos da freguesia de São Gonçalo de Amarante, no recôncavo fluminense, atravessaram a baía da Guanabara de armas nas mãos e invadiram a câmara da capitania do Rio de Janeiro. Objetivo: derrubar o governador Salvador Correia de Sá e Benevides. Como o ilustre administrador régio - cujos domínios se estendiam à Vila de São Paulo e à capitania do Espírito Santo - se achava fora da cidade, os amotinados aprisionaram Tomé Correia de Alvarenga, o governador interino. Começava aí um episódio dos mais raros no tempo da Colônia. Um grupo de súditos rebelados da Coroa portuguesa consegue tomar o poder, numa capitania importante, à revelia do rei, e estabelecer um governo próprio, que durou cinco meses, impondo sua vontade na condução dos negócios de estado, promovendo inclusive mudanças significativas no cenário político-econômico local. Jerônimo Barbalho Bezerra, o líder da revolta, acabou morto. Apesar de o conflito não ter deixado rastros de destruição pela cidade do Rio de Janeiro, alterou profundamente o cotidiano da população fluminense e o sistema de poder regional.
      O movimento, designado por alguns como Revolta da Cachaça, resultou de um complexo conjunto de insatisfações acumuladas pelos proprietários de terras da região. A capitania do Rio de Janeiro encontrava-se, desde o início do século XVII, numa situação econômica complicada. A produção açucareira fluminense encalhava nos portos, pois, comparada ao açúcar produzido na Bahia e em Pernambuco, era considerada de má qualidade. Além disso, a expulsão dos holandeses do Nordeste, em 1654, havia produzido um grande baque na economia da América portuguesa, uma vez que esses antigos invasores transferiram com muita eficiência a produção do açúcar para as Antilhas, o que ocasionou o aumento da concorrência e a queda dos preços do produto no comércio internacional. A economia fluminense, naquele momento, voltava-se em larga escala para o comércio da cachaça, bebida de grande aceitação na América portuguesa e na costa africana.
      A produção da aguardente de cana se concentrava na região do recôncavo - São Gonçalo, Magé, Itaboraí, Saquarema, Cabo Frio, Maricá, Guapimirim -, onde foi desenvolvida uma cultura canavieira, durante os séculos XVI e XVII, paralelamente ao processo de conquista e povoamento da região pelos portugueses. Para os fazendeiros, era um ótimo negócio, pois para fazer a cachaça utilizavam o mesmo sistema produtivo do açúcar, sem muitos gastos adicionais, e, além disso, não era preciso dividir o produto com os lavradores, pois enquanto estes se responsabilizavam pelo plantio, os senhores de engenho transformavam a cana em açúcar. A cachaça era considerada resto da produção de cana, não interessando aos lavradores. Mas com a criação, em 1649, da Companhia Geral do Comércio, pela Coroa portuguesa, o quadro mudou e os produtores começaram a se sentir prejudicados. Acende-se, aí, o estopim da revolta. A Companhia passou a deter o monopólio exclusivo do comércio da farinha, do bacalhau, do azeite e do vinho, o que não afetava os produtores da Colônia. Mas, paralelamente, tomou uma decisão drástica: proibiu a produção e o consumo da cachaça fabricada na América portuguesa. Isso era inadmissível. Era a cachaça, sobretudo, que movimentava a economia fluminense numa atividade comercial triangular e bem estabelecida: com o produto que saía do porto do Rio de Janeiro se compravam escravos, em Luanda, e prata, ao sul do continente.
      A medida protecionista se explicava no contexto da economia colonial. A cachaça era, então, o principal concorrente do vinho português, este usado também como moeda de troca na aquisição de escravos africanos. A aguardente de cana tornou-se popularmente conhecida e apreciada já naquela época porque era mais barata, não estragava, conservava por mais tempo o teor alcoólico e, além disso, chegava mais depressa à África que o vinho, com a vantagem de que, acondicionada nos porões, servia de lastro aos navios, diminuindo assim os gastos com transporte. Por tudo isso, a Coroa portuguesa queria impedir a presença da cachaça na África e no Brasil, para impor o consumo do seu produto. No meio dessa crise, o governador da capitania do Rio de Janeiro, Salvador de Sá, teve uma infeliz ideia: criar um novo imposto, com o qual pagaria os soldos das milícias fluminenses, que estavam atrasados, e renovaria o fardamento e armamento das tropas, que estavam em condições lamentáveis.
      Tanto a proibição da cachaça como o novo imposto produziram reações indignadas. Depois de inúmeras discussões no Senado da Câmara, os grandes proprietários aconselharam o governador a aceitar contribuições voluntárias, de acordo com a possibilidade de cada súdito. Teimoso, Salvador de Sá impôs a taxação como queria e em seguida viajou para a Vila de São Paulo, a fim de fiscalizar atividades de mineração. Descontentes, os produtores do fundo da baía da Guanabara, mas que possuíam moradias e negócios na cidade do Rio de Janeiro, se reuniram nas terras de Jerônimo Barbalho Bezerra, na Ponta do Bravo, localizada na freguesia de São Gonçalo de Amarante (hoje conhecido como o Bairro Gradim) e arquitetaram a derrubada da administração. Entre as reivindicações estavam a menor rigidez nas questões relacionadas à comercialização da cachaça, como também uma divulgação mais transparente dos editais de convocação às eleições municipais. Os moradores de regiões mais afastadas (povoações no entorno da baía de Guanabara como São Gonçalo, Magé e Guapimirim) encontravam dificuldades de acesso ao documento, o que se refletia na ausência de seus representantes no fórum legislativo local.
      Às primeiras horas da manhã do dia 8, os revoltosos ergueram-se de armas em punho e convocaram os "homens livres" para uma reunião geral no edifício do Senado, ao toque dos sinos das igrejas. Ao perceber que sua guarnição de milicianos havia feito causa comum com os rebeldes, seduzidos pela promessa de que os soldos atrasados lhes seriam pagos integralmente, o governador interino Tomé Correia de Alvarenga - que era primo de Salvador de Sá fugiu para o santuário do Mosteiro de São Bento acompanhado do provedor-mor, Pedro de Souza Pereira, parentes e amigos mais chegados à sua família. A multidão pôs-se então a saquear suas casas, inclusive a do governador da capitania, enquanto uma reunião geral declarava que todos os Correia estavam depostos e destituídos de seus cargos. Ao se confrontar com os revoltosos, Tomé Correia de Alvarenga não aceitou suas reivindicações. Foi então preso e remetido a Portugal, junto com um documento que descrevia os desmandos praticados por Salvador de Sá.
      Derrubado o administrador régio, os revoltosos aclamaram Agostinho Barbalho Bezerra, irmão de Jerônimo, como novo governador. Este se mostrou relutante em aceitar o cargo, até porque não estava muito a par dos planos do irmão, líder da revolta. Para não ser governador, chegou a abrigar-se no santuário do Convento de São Francisco, mas os amotinados o arrancaram de lá à força, obrigando-o a aceitar o governo e ameaçando-o de morte, caso recusasse. No poder, Agostinho nomeou outros capitães de ordenança, marcou eleições para a Câmara local, expulsou da cidade todos os moradores que tinham algum tipo de relação com Salvador de Sá e tornou inválidas as determinações da Coroa com relação à proibição da comercialização da cachaça. Nascia um governo voltado especificamente para os interesses políticos e econômicos dos produtores. Assim, Agostinho, que tinha aceitado o cargo para salvar a própria vida, se mostrou muito rapidamente um governante conciliador: aconselhou mesmo os refugiados do Mosteiro de São Bento, virtuais inimigos, a voltar para suas casas na cidade, chegando até a tentar a reintegração de alguns deles em seus antigos cargos.
      Enquanto isso, na Vila de São Paulo, os ecos dos acontecimentos no Rio de Janeiro chegavam aos ouvidos de Salvador de Sá. Apoiado pelos paulistas, ele logo preparou um exército, formado por índios, para atacar o Rio de Janeiro e retomar o controle da capitania. Perdoava a população fluminense por ter apoiado os revoltosos e autorizava a administração temporária de Agostinho Barbalho Bezerra, reconhecido por ele mesmo como um homem de bem e que, conforme lhe informaram, se encontrava naquela situação por pressão dos amotinados. Por outro lado o governador condenava os atos dos principais líderes do movimento, acusando-os de traírem e desrespeitarem as determinações da Coroa portuguesa.
      O apoio oferecido pelos paulistas pode parecer estranho à primeira vista, principalmente porque, em 1640, eles haviam se confrontado com Salvador de Sá por conta da proibição de escravizar índios, expressa na bula papal de Urbano VIII, que ameaçava de excomunhão da Igreja Católica todos aqueles que escravizassem os indígenas. A bula foi apoiada por Salvador de Sá, para irritação dos paulistas. Mas, ao mesmo tempo, os paulistas deviam ser gratos ao governador da capitania por uma série de melhoramentos, como a construção de pontes e a abertura de estradas. Para eles, isso era mais importante que as reivindicações dos súditos do Rio de Janeiro. A economia paulista estava voltada para a produção de cereais, como o trigo, e não foi atingida pelas restrições impostas à economia da aguardente. Além disso, as taxações de Salvador de Sá não foram estendidas à Vila de São Paulo, de modo que não tinham do que reclamar. Apoiaram o governador e tornaram mais vulnerável a situação dos súditos fluminenses rebelados.
      A partir do momento em que Agostinho Barbalho ganhou o apoio de Salvador de Sá, os revoltosos o retiraram da administração da capitania, já que o mesmo se recusava, muitas vezes, a aplicar medidas exigidas pelos produtores fluminenses. Naquele momento, a Revolta da Cachaça havia se radicalizado. Uma junta foi formada para administrar a capitania no lugar de Agostinho e essa conjuntura confusa favoreceu Salvador de Sá na sua volta ao Rio de Janeiro. Segundo os esparsos relatos documentais, a invasão da cidade pelas tropas do governador se deu de madrugada, da mesma maneira como fizeram os revoltosos. O desfecho foi rápido. Preso, o líder Jerônimo Barbalho Bezerra foi enforcado e sua cabeça pendurada no pelourinho da cidade, como exemplo para a população fluminense. Os demais líderes - Diogo Lobo Pereira, Lucas da Silva e Jorge Ferreira de Bulhão - foram presos e enviados a Portugal para julgamento.
      Com o término da revolta, em 8 de abril de 1661, tudo parecia novamente calmo na capitania, até o momento em que a Coroa portuguesa decidiu pronunciar-se sobre o acontecimento. Após ter recebido as críticas feitas pelos revoltosos à administração de Salvador de Sá, o rei deu ouvidos a seus súditos e afastou o governador de sua função. Para ocupar o cargo, foi escolhido Pedro de Melo, que se encontrava em Portugal no momento da indicação. Agostinho Barbalho, cujo prestígio não se chamuscara com a revolta, ficou como administrador interino da capitania enquanto o titular atravessava o Atlântico. A Coroa restringiu também os privilégios da Companhia Geral do Comércio e, consequentemente, favoreceu a economia da cachaça. Anos mais tarde, absolveria os revoltosos presos, condecorando-os até com a comenda da Ordem de Cristo, como reconhecimento pela sua fidelidade e lealdade ao rei.
      Não se deve perder de vista que a Revolta da Cachaça não foi um movimento isolado no império ultramarino português. A partir de 1640, um terremoto de revoltas assolou os domínios portugueses. Todas iam contra o abuso no exercício do poder dos representantes régios (governadores, vice-reis, provedores e ouvidores), os quais, em vez de governarem visando ao bem comum e à preservação da ordem, estavam, segundo os revoltosos, interessados exclusivamente em se beneficiar dos cargos que ocupavam para conquistar riquezas, benesses e prestígio. Muitos desses funcionários foram considerados tiranos e infiéis à Coroa. Pelo entendimento que passou a vigorar, tais movimentos foram feitos em prol do rei português, e não contra ele. Embora violentas, as revoltas foram o recurso que os súditos descontentes encontraram para impor sua opinião.
      A ação dos revoltosos do século XVII tinha sua origem bem longe dali. As ideias que justificavam o direito a rebelião contra o governador tirano nasceu na Restauração portuguesa de 1640. A Restauração foi a tomada do controle político da Coroa portuguesa por uma nova dinastia, a dos Bragança, após sessenta anos de domínio espanhol - período denominado pelos historiadores como União Ibérica (1580-1640). Foi denunciando a tirania, a vilania e a sobreposição dos interesses privados aos coletivos que os portugueses conseguiram destronar Filipe IV, monarca espanhol que administrava o reino português. A aclamação de d. João IV, em 1640, pôs fim à União Ibérica e ao mesmo tempo abriu a brecha para que essas mesmas ideias fossem utilizadas pelos súditos ultramarinos para afastar administradores régios que não atendiam aos padrões de comportamento exigidos de um funcionário real.
      Logo, no cômputo geral, os rebelados saíram vitoriosos com o afastamento da família Correia da administração fluminense. Após o movimento de 1660, os representantes do clã só ocuparam cargos menores e nunca mais voltaram a ter o controle da capitania. Além disso, os descendentes tiveram que refazer as alianças, através do matrimônio, para manter sua atuação na política fluminense, uma vez que os proprietários de terra das regiões mais longínquas já se faziam mais presentes na Câmara local. A Coroa portuguesa ficou do lado de seus súditos, liberando a produção e a comercialização de aguardente. A Revolta da Cachaça entrou para a história como a primeira revolta em todo o Atlântico Sul em que os rebelados tomaram o poder em uma cidade colonial e a governaram em nome do rei. E da cachaça.

Antonio Filipe Pereira Caetano é professor da Fundação Universidade Estadual de Alagoas e autor da dissertação de mestrado “Entre a sombra e o Sol – A Revolta da Cachaça”. Defendida na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2000.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional - Edição nº 3 - Setembro de 2005

Saiba Mais – Bibliografia
BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola. São Paulo: Unesp, 1988.
COARACY. Vivaldo. O Rio de Janeiro no século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio. 1968.
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. "Além de súditos: notas sobre revoltas e identidade colonial na América portuguesa". Revista Tempo, volume 5 n° 10, dezembro de 2000.

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