“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Fibra de gaúcho, tchê!

Com suas glórias e torpezas, a Revolução Farroupilha, que combateu o Império e proclamou uma república nos pampas, foi fundamental para a construção histórica de uma identidade rio-grandense. Mas isso existe mesmo?
Sandra Jatahy Pesavento
      Bem antes do sucesso de A casa das sete mulheres, a colorida e bem cuidada série da Rede Globo, a Revolução Farroupilha já gozava de certa fama, associada a uma longa guerra contra o Império brasileiro, entre 1835 e 1845. Mais do que isso: a Revolução Farroupilha sempre foi o acontecimento pelo qual o Rio Grande do Sul deu entrada e se fazia presente nos manuais de nossos currículos escolares de História do Brasil, na literatura gauchesca, nos discursos políticos, nos tão difundidos Centros de Tradições Gaúchas.
     Fronteira viva com os domínios castelhanos, a então chamada província de São Pedro era uma região essencial para o acesso ao Prata, onde os portugueses tinham interesses e de onde operavam através do contrabando, a partir da Colônia do Sacramento, fundada em frente a Buenos Aires, em 1680. Nessa virada de século, portugueses e castelhanos disputavam ainda o gado abandonado pelos padres das missões jesuíticas, depois de expulsos pelos bandeirantes paulistas - o gado xucro ou chimarrão, rebanho selvagem caçado no pampa.
     É a origem dos rebanhos bovinos e das tropas de muares levadas pelos tropeiros para o abastecimento e o serviço da zona das Minas Gerais. Para assegurar sua estratégia, a Coroa passou a conceder poderes amplos aos senhores de terra e gado, estimulando o assentamento de grandes fazendas de criação, as estâncias, no decorrer do século XVIII. Chefes de bandos armados, tais estancieiros, com os seus homens, defendiam as terras no extremo sul, demarcando a fronteira.
     Com a Independência, ocorreu uma reversão da antiga autonomia. "O centro explorava o sul", denunciavam os rio-grandenses. O Rio Grande virara "colônia" da Corte, bradavam com indignação os senhores locais, apontando as inovações da política imperial que alteravam a situação do Rio Grande do Sul: a centralização político-administrativa; a discriminação das rendas provinciais remetidas à Corte; a taxação do charque gaúcho. Mas além do desprestígio político e econômico, que também recaía sobre outras províncias do Império, inseridas à mesma época no que se convencionou chamar de "rebeliões regenciais", havia a desvalorização militar da província.
     Os chefes locais, tantas vezes vitoriosos nas lutas contra os castelhanos, eram responsabilizados pela perda da Província Cisplatina, em 1828, anexada oito anos antes por d. João VI, e desde então o comando de tropas não lhes era mais confiado. A trama se arma, os senhores se rebelam e lutam lado a lado com seus homens, dando o tom de companheirismo e aspirações comuns, erguidas em plano mais alto, simbolicamente, do que as distinções da posse da terra e da hierarquia social.
     A deflagração de uma revolta armada contra o Império durante um decênio, a proclamação da República Rio-Grandense, a elaboração de uma constituição específica e a criação de símbolos característicos, como bandeira e hino, cuja letra aludia a uma "ímpia e injusta guerra", são ações - mais do que históricas - atemporais, eternas, imutáveis, porque integrantes de uma identidade regional altamente agregadora.
     Tais questões, entendidas na época pelos sulinos como de "descaso", "opressão" ou de "exploração" do "centro" sobre o Rio Grande, serão vistas mais tarde em seu aspecto afirmativo: a província, "ameaçada", se levantara por uma "causa justa" em face das "liberdades ameaçadas", e mostrara aos do "centro" a sua força. A realidade, transposta para a narrativa por força desse novo objeto de culto e de estudo, apresenta os ingredientes fundamentais para a construção de um mito das origens. Há um espaço definido: o pampa, a fronteira, os deslocamentos inerentes à guerra e à criação de gado; há um tempo idílico: a idade de ouro em que o voluntarismo não encontrava freios no poder central; e há também um sujeito, forjado por uma alta concepção de si próprio, segundo tais princípios de mobilidade e autonomia.
     As proezas dos rio-grandenses na Revolução Farroupilha percorreram o caminho da oralidade à escrita para delimitar, ao longo dos anos, um passado, uma memória, uma história. Com as transposições de uma "maneira de ser" - do acontecimento para a região, da região para os seus habitantes, ou do Rio Grande para os rio-grandenses, homogeneizando grupos sociais, raças e etnias -, todos passam a ser herdeiros das "gloriosas tradições de 35", integrados em uma representação do passado que se converte em patrimônio comum, dotado de forte coesão social e veiculado já na segunda metade do século XIX.
     Vários incidentes contribuíram para dar caráter de epopeia à Guerra dos Farrapos, cuja longa duração confirma por si só o valor militar dos revoltosos. Da conquista espetacular de Porto Alegre, capital da província, na arrancada farroupilha de 20 de setembro de 1835, até o estabelecimento de uma paz honrosa - a Paz de Ponche Verde, em 28 de fevereiro de 1845, entre o representante do Império, Caxias, e os chefes locais, atendidos em suas reivindicações -, houve uma sucessão de episódios romanescos e rocambolescos que fazem do acontecimento uma verdadeira saga, como a aventura militar e amorosa vivida por Giuseppe Garibaldi e a bela Anita.
     A fuga espetacular do líder farrapo Bento Gonçalves, a nado, da prisão do Forte do Mar, na Bahia, auxiliado pela maçonaria; a construção e o transporte por terra de navios, puxados por juntas de bois, campo afora, desde a foz do rio Capivari, na Lagoa dos Patos, até a costa da praia, em Tramandaí, para possibilitar aos farrapos a conquista de Laguna, em Santa Catarina; duelos de morte entre aliados farroupilhas, como o de Bento Gonçalves com Onofre Pires, são episódios contados e recontados de pais para filhos desde o final do conflito.
     Já nos primeiros anos de sua fundação, em 1868, a Sociedade Partenon Literário, de Porto Alegre, celebra a revolta farroupilha em prosa e verso, estetizando um passado ainda recente, de modo a torná-lo vivo na memória social. Nasciam as imagens do "monarca das coxilhas", do "centauro dos pampas", dos "indômitos guerreiros", da "vocação libertária", essenciais para que o Rio Grande recuperasse seu poder de barganha com o poder central. Diante de uma realidade nacional esvaziada de lutas, com o fim da Guerra do Paraguai, em 1870, recuperava-se pela memória a vocação, a identidade e a missão do Rio Grande do Sul, que sempre teve como moeda de troca, nos tradicionais ajustes com a Corte, o seu valor militar.
     Na década de transição para a República, a Revolução Farroupilha estava consolidada pela narrativa histórica como acontecimento-chave para a explicação da província. Liberais e conservadores, rivais na política do Império, já se proclamavam herdeiros da mesma identidade rio-grandense, quando uma nova geração, ardorosamente republicana, afronta as instituições monárquicas e arrebata o passado das mãos dos liberais, denominando-se os reais herdeiros do "decênio heroico", capazes de dar nexo entre duas repúblicas: a remota, de setembro de 1836, e a iminente, de novembro de 1889.
    Quando da eclosão da Revolução de 1930 contra o poder central da República Velha, o grito dos gaúchos - "Rio Grande! De pé, pelo Brasil! Não poderás falhar ao teu destino heroico!" - portava em si, de forma orgânica, ancestral e telúrica, um destino manifesto: o de lutar pelas boas causas, sempre alerta, tal como já fora o bravo "sentinela da fronteira". Nesse grito se insere a delicada questão de um equilíbrio instável, sempre presente no confronto do Rio Grande com o dito poder central: qual a relação que se estabelecera desde a Revolução Farroupilha entre o todo e a parte, a nação e a região?
     A resposta se dá na relação da história com o imaginário: mesmo se tendo rebelado contra o centro, mesmo tendo proclamado a república em um contexto monárquico, o Rio Grande optara por ficar do lado do Brasil. "Poderia" se aliar com as repúblicas do Prata, vizinhas, mas permanecera ao lado do Império. Logo, "ninguém tão brasileiro quanto o gaúcho", pois sua brasilidade foi escolha e não imposição.
     Paira, porém, uma advertência: uma guerra de dez anos se inscrevera na história da região e do país, a lembrar que, humilhado ou contrariado, o Rio Grande era capaz de ir às armas em defesa da liberdade. Equilíbrio instável, portanto: continuar a "ser gaúcho e brasileiro" dependia do respeito e reconhecimento, pelo "todo", dos valores e direitos da "parte", num ajuste de identidades permanente entre a região e a nação. Resta uma pergunta: se processos de formação de identidade se constroem por oposição a uma alteridade, os gaúchos são diferentes e específicos com relação a quê?
     Falamos dos castelhanos, no? Ora, os "outros", frente aos rio-grandenses, seriam talvez os "do outro lado da fronteira", tornados "gaúchos malos" pelos azares da guerra, mas parceiros nas lides da paz e no cotidiano de um modo de ser. De alguma forma, estes "outros" acabam sendo os "mesmos", a partilharem uma cultura fronteiriça, comungando valores e práticas de um passado mítico: bravura, honra, justiça. Ou em bom castelhano: sobranceria.
     São duas as tendências de interpretação que se discutem no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, ao longo da primeira metade do século XX: a do historiador gaúcho Alfredo Varela (Revoluções cisplatinas, 1915 e Histórias da grande revolução, 1933), que integra a Revolução Farroupilha ao ciclo platino, acentuando o caráter separatista do movimento, e a do historiador gaúcho J. R Coelho de Souza (O sentido e o espírito da Revolução Farroupilha, 1944) que dá ênfase ao caráter federalista da revolta e, consequentemente, ao seu projeto de integração com o Brasil. Acabou vitoriosa a versão da "vocação brasileira" da Revolução Farroupilha, no momento em que, não por acaso, governava o Brasil o gaúcho Getúlio Vargas, no início dos anos 40...
    Na segunda metade do século XX, interpretações marxistas da história tentaram derrubar a mitificada versão da identidade sulina, mostrando que a Revolução abrigava, também, incidentes pouco gloriosos ou éticos, sobretudo no encaminhamento final da luta, nos acertos de paz com o Império. No combate de Porongos, por exemplo, quando se acerta quem deve morrer, para selar a paz diante de uma derrota dos farrapos, as vítimas escolhidas serão os lanceiros negros, escravos que lutavam do lado farroupilha em troca da liberdade. Da mesma forma, demonstrou-se que o gaúcho mítico nunca existiu historicamente e que a decantada democracia dos pampas era uma construção idealizada que respondia aos interesses de legitimação das oligarquias locais. Hábitos como tomar o chimarrão na mesma cuia, passando de mão em mão, nada tinham a ver com uma estrutura social bem hierarquizada e marcada pela extrema concentração da propriedade da terra. Heróis eram derrubados, Bento Gonçalves questionado nas suas ações.
     Os recentes estudos da história cultural apresentaram um novo enfoque de análise, retomando questões que estranhamente resistiam às violentas críticas do marxismo: as representações sociais, com a força simbólica das palavras e imagens, reinventam o mundo, dando a suas construções o efeito de real, o que explicaria o fato de, no Rio Grande, as pessoas teimarem em "querer acreditar" no mito do gaúcho e na lendária epopeia farroupilha. Ela retornou com força, como carro-chefe de uma identidade vitoriosa e largamente difundida pela mídia e pelos partidos políticos. Caberia até perguntar se algum dia esteve ausente da vida e das preocupações dos intelectuais, seja para criticá-la ou promovê-la.

Sandra Jatahy Pesavento é professora titular de história do Brasil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 2 - Dez. 2003

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terça-feira, 19 de maio de 2015

A invenção de Anastácia

Culto à escrava negra de olhos azuis, transformada em santa pelo povo, nasceu na década de 1970, no Rio de Janeiro.
Mônica Dias de Souza
    Não há quem não tenha ouvido falar na escrava Anastácia. Sua imagem, estampada em pequenos santinhos com orações no verso, pode ser encontrada nos lugares mais inusitados - até em balcão de lanchonete. A despeito da popularidade, sua origem se envolve em mistério. Quem seria afinal aquela escrava, que aparece na iconografia com parte do rosto velada por um instrumento de tortura? Se negra, por que é representada com os olhos azuis? Que poderes atribuem a ela? O culto a Anastácia envolve muitas perguntas e poucas respostas. Sua imagem mais conhecida é até de fácil identificação. Ela reproduz, na verdade, uma gravura retirada do livro Voyage autour du monde, de Etienne Arago, viajante francês que esteve no Brasil em 1808, integrando uma expedição científica, e registrou suas impressões em textos e desenhos. De um destes, saiu a escrava cultuada como santa em várias regiões do Brasil. Mas, fora essa constatação, nem o faro mais apurado pode conduzir a algum registro histórico sobre a vida de Anastácia. Dados de sua biografia não constam em registros oficiais, documentações paroquiais, autos punitivos, fichas de casa de detenção etc. Sua "certidão de nascimento" foi conferida pelo povo, como disseram o ministro da Cultura, Gilberto Gil, e o escritor Antônio Risério à revista Manchete, de 21 de maio de 1988.
     E, se foi o povo que a transformou numa entidade arquetípica, ao mesmo tempo divina e guerreira, temos obrigatoriamente de tentar ouvir aqueles que trouxeram Anastácia à luz. De prosa em prosa, chegamos à Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos e ao Museu do Negro, ambos localizados na Rua do Rosário, no centro do Rio de Janeiro. A igreja abriga uma instituição secular, a Irmandade do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos - congregação de leigos com um histórico que remonta ao século XVIII. Até hoje a instituição busca, com reuniões dominicais realizadas todo mês, manter seus compromissos originais, cultivando ideais étnicos e estimulando o sentimento de coletividade entre os negros. Para preservar sua memória, construíram um museu, na década de 1970, e foi neste ambiente, repleto de grossas correntes de ferro, fitinhas, santos, imagens de pretos velhos e até uma réplica da cripta da princesa Isabel e do conde d'Eu, que nasceu a escrava Anastácia.
     Numa exposição sobre os martírios infligidos aos escravos no Brasil antigo, realizada em 1971, o museu recebeu como doação, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), uma imagem em forma de pôster. Era a já citada reprodução de Etienne Arago. A imagem, que em si não revela sequer traços femininos, acabou virando a de uma mulher, que em pouco tempo recebeu nome e biografia. Dentro da irmandade, o responsável pelas primeiras versões sobre a vida de Anastácia foi Yolando Guerra. Através das instruções desta liderança, articulou-se uma identidade para a imagem de Arago. A crença tomou vulto e, no início dos anos 80, os frequentadores do museu já tinham de enfrentar longas filas para chegar até a gravura da santa. Fora dali, podiam encontrar a escrava nas tendas espíritas, convertida na Vovó Anastácia, que gosta de fumo de rolo e de rosas brancas.
     Como bom preceptor, Yolando Guerra atribuiu a Anastácia qualidades que certamente considerava necessárias a um grande vulto popular. Criou para ela uma genealogia africana: "princesa de um povo" (no caso o povo bantu) e filha de Oxum. Mas a devoção a Anastácia não se restringe aos bantu-descendentes, mas a brasileiros e brasileiras de outras etnias e religiões. No Rio de Janeiro, seu culto parece mais sistematizado, o que não impede a existência de devotos em Belém, São Paulo, Minas Gerais e na Bahia, local que abriga um grupo afro exclusivamente feminino, chamado Didá, que tem estampada em seu estandarte a imagem de Anastácia com os dizeres: "Lyá Anastácia. Didá, o poder da criação". Se ela não é reconhecida como santa pela Igreja Católica, o povo lhe delegou poderes de cura e lhe presta homenagens, especialmente no seu dia, 12 de maio. Nessas ocasiões, os devotos revelam no seu ar contrito a riqueza espiritual de uma sociedade como a nossa, capaz de fabricar a possibilidade de olharmos para nós mesmos e de pensarmos, através de Anastácia, no passado escravista e no presente preconceituoso simultaneamente.
Mônica Dias de Souza é mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de Santo de casa também faz milagres: a construção simbólica da escrava Anastácia. Rio de Janeiro: Pallas, 2005 (no prelo).
Fonte: Revista Nossa História - Ano II nº 19 - Maio de 2005

sábado, 16 de maio de 2015

Ondas grevistas no mar da República

A legislação trabalhista, a partir dos anos 1930, atrelou sindicatos ao governo mas não conseguiu paralisar o movimento operário brasileiro.
Fernando Teixeira da Silva
     Atingido pela bala disparada por um policial, morria o sapateiro espanhol de 21 anos Antonio Martinez no dia 9 de julho de 1917. Dois dias depois, sob a fria garoa paulistana da manhã, um oceano humano de 10 mil pessoas saiu do bairro do Brás, passou pelas ruas centrais de São Paulo e acompanhou o corpo de Martinez até o Cemitério do Araçá. O silêncio do cortejo soava como uma advertência, apenas rompido à beira do túmulo, onde se revezavam oradores discursando em português, italiano e espanhol. A morte do sapateiro acendeu um rastilho de pólvora. Greves que pipocavam em algumas fábricas têxteis, de móveis e bebidas se espalharam nos quatro dias seguintes, em meio a tiroteios, saques e barricadas. Oficialmente, uma menina e um grevista morreram nos confrontos com a polícia. Cerca de 50 mil trabalhadores cruzaram os braços.
     A greve geral de 1917 foi uma convulsão operária sem precedentes. Suas raízes estavam no trabalho fatigante, insalubre e perigoso das fábricas, mas a principal reclamação dos grevistas era o custo de vida. Na falta do pão, "remediavam com o saque dos depósitos de farinhas", justificou o anarquista italiano Gigi Damiani. Enquanto isso, exportadores armazenavam gêneros de primeira necessidade à espera da alta dos preços no mercado internacional.
     Líderes anarquistas, sindicalistas revolucionários e um socialista formaram o Comitê de Defesa Proletária que elaborou uma pauta de reivindicações, algumas das quais exigiam a interferência do poder público, contrariando o princípio anarquista de rejeição do Estado. Os operários conquistaram aumento de salários de 20%, o compromisso dos patrões de não demitir os grevistas e a promessa do governo estadual de libertar os presos e legislar por melhores condições de vida e trabalho. Em comícios, os operários cantaram vitória.
     Depois disso, uma febre associativa tomou conta da cidade, fazendo proliferar novos sindicatos, ligas de bairros, centros de cultura e jornais operários. Mas a euforia durou pouco. Seguiram-se prisões, expulsão de trabalhadores estrangeiros, fechamento de sindicatos e desrespeito dos empresários ao acordo. Em 1919 e 1920, uma onda grevista se ergueu em várias cidades do país, levantando reivindicações semelhantes às de 1917. O medo provocado por essas greves gerou dupla reação nos anos seguintes: contínua repressão e a formulação de leis sociais e trabalhistas.
     O conflito de classes deveria dar lugar à harmonia entre trabalhadores e patrões, e o governo seria capaz de reconhecer e dar o que os trabalhadores aspiram: esses foram os princípios alardeados pelo regime instaurado com a chamada revolução de 1930, que colocou Getúlio Vargas no poder. No dia 1° de maio de 1943, após mais de uma década de intensa ação legislativa, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) vinha à luz. Apresentada como a legislação social mais avançada do mundo, regulamentava, em seus 922 artigos, o trabalho de várias categorias profissionais e regia disputas individuais e coletivas entre trabalhadores e patrões, excluídos os trabalhadores rurais.
     Uma lei de 1931 instituiu a figura do sindicato único por categoria e município, submetido ao reconhecimento do Ministério do Trabalho, que podia intervir nas suas atividades, afastando direções e líderes "indesejáveis", como anarquistas e comunistas. Os sindicatos deveriam ser órgãos de "colaboração de classes" e "elemento de cooperação no mecanismo dirigente do Estado", segundo Vargas.
     Os anarquistas se mantiveram na defesa do sindicalismo antiestatal e descentralizado. Já os comunistas, depois de longo combate contra o atrelamento sindical, passaram a agir como oposição dentro dos sindicatos, visando ganhar suas diretorias e torna-los órgãos de luta contra o Ministério do Trabalho.  Porém, a ditadura do Estado Novo, instaurada em 1937, selou a vitória do corporativismo sindical.
     Para muitos trabalhadores, a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial em favor dos aliados, em 1942, significou suspensão de direitos e despotismo patronal. Nas indústrias de "defesa nacional", como as têxteis, os operários, promovidos a "soldados da produção", deviam dar provas de patriotismo: trabalhar no mínimo dez horas por dia e adiar as férias. Fomentar greves e abandonar o emprego eram crimes de deserção, sob pena de dois a seis anos de prisão. Mesmo assim houve insubordinação nas "indústrias-quartéis".
     Com a crescente insatisfação dos trabalhadores, a emergência de grupos de oposição ao governo e a entrada do Brasil na guerra, Vargas passou a dar sinais de afrouxamento do regime. No início de 1945, marcou eleições para o final do ano, legalizou o PCB e anistiou presos políticos. Sua política de aproximação ao trabalhador incluiu a criação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o esforço de fortalecer o sindicalismo corporativista.
     Na euforia que marcou o fim da guerra, em 1945, milhares de trabalhadores deixaram suas casas e foram para as ruas fazer o V da "vitória da democracia" contra o fascismo. E durante dois anos deixaram também as fábricas. Enorme onda de greves, organizadas por comissões de operários, levou de roldão diretorias de sindicatos que se recusavam a apoiá-las. Muitas categorias negociaram diretamente com os patrões, ignorando e atropelando as instituições corporativas, como ocorreu na greve dos empregados da Light, em São Paulo, no final de 1945.
     Em cidades com grande concentração operária, o Partido Comunista (PCB) conquistou importantes vitórias eleitorais. Em dezembro de 1945, por exemplo, foram eleitos 15 deputados federais comunistas, dos quais nove eram operários. Apesar de pedirem aos trabalhadores para "apertarem os cintos", evitando greves em nome da democracia e da união nacional, os militantes do PCB acabaram participando ativamente dos movimentos sociais, como na greve nacional dos bancários, em janeiro de 1946.
     O objetivo dos trabalhadores no pós-guerra era mandar um recado: seria cada vez mais difícil governar sem levar em conta a presença e os interesses da classe operária. Mas o presidente Dutra (1946-1950) não aceitou esse recado, intervindo nos sindicatos e colocando o PCB novamente na ilegalidade.
     O movimento operário só se reergueu no segundo governo Vargas (1951-1954), em meio à crescente carestia. Em março de 1953, 60 mil trabalhadores ocuparam as ruas de São Paulo na passeata da "panela vazia". As insatisfações culminariam na Greve dos 300 Mil. Entre março e abril, têxteis, metalúrgicos, vidreiros, gráficos, entre outros, paralisaram suas atividades por 27 dias. Após vários confrontos com a polícia, aceitaram a proposta da Justiça do Trabalho de aumento salarial de 23%, muito abaixo dos 60% reivindicados.
     Mas para o movimento operário a greve foi um êxito. O índice de sindicalização aumentou, surgiram novos líderes oriundos das comissões de fábricas, direções sindicais contrárias à greve foram marginalizadas e, como decorrência, foi criado o Pacto de Unidade Intersindical, que chegou a aglutinar cerca de cem sindicatos.
     A Greve dos 300 Mil é também um marco dos novos desafios que seriam enfrentados pela classe operária. Intensa migração de trabalhadores das regiões rurais, sobretudo do Nordeste para as cidades, 3 milhões de operários industriais, siderurgia, indústria automobilística, Petrobrás, usinas hidrelétricas gigantescas e inchaço das cidades formam um novo cenário. A partir de meados dos anos 1950, desenvolvimento com nacionalismo se torna a grande bandeira das esquerdas, que defendem o fortalecimento da burguesia nacional e do Estado no setor produtivo, o controle do capital estrangeiro e melhor distribuição de renda.
     Alianças entre os comunistas e a esquerda do PTB estruturam um movimento operário nacional. O IV Encontro Sindical Nacional, em 1962, reuniu cerca de seiscentas organizações sindicais e criou o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Com isso, foi de encontro às proibições da CLT.  Além de reivindicações por melhores condições de vida e trabalho, o CGT se lança em campanhas por reformas: agrária, previdenciária e universitária, entre outras.
     Com João Goulart na Presidência da República (1961-1964), o movimento sindical lutou para participar do governo do país, chegando a influenciar na escolha de ministros comprometidos com suas causas. A oposição falava em 'cubanização' do país, República Sindicalista e ateísmo comunista. "BASTA!" gritavam as manchetes de jornais.
     No dia 1º de abril de 1964, um golpe civil-militar depôs João Goulart. Na esteira da tomada do poder, o novo governo interveio nos sindicatos, destituindo líderes, prendendo militantes (alguns dos quais acabariam torturados e mortos) e dando início a um processo de controle rigoroso do movimento sindical por 14 anos.
     Mas, numa manhã de maio de 1978, operários da Scania entraram na fábrica de São Bernardo do Campo (SP) e não ligaram as máquinas, dando início a mais uma grande onda grevista. Naquele ano, foram registradas mais de cem greves. Nos dez seguintes, quase 4 mil. O "novo sindicalismo", que enfrentava a ditadura agonizante, defendia o fim da estrutura sindical corporativista e colocava o movimento operário no foco da política nacional, projetando nomes como o do hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
     Desde os anos 1990, os trabalhadores enfrentam novos desafios, por conta da alta concorrência em escala global, liberação dos mercados, redução dos gastos sociais do Estado e desmantelamento da legislação social. Em vários setores, sobretudo nos que empregam tecnologias da informação, o trabalho manual é cada vez menos necessário. Mas os atuais debates em torno das anunciadas reformas trabalhistas e sindicais estão aí para atestar que os trabalhadores e suas organizações ainda ocupam parte importante das agendas políticas.

Fernando Teixeira da Silva é professor de História na Universidade Estadual de Campinas e na Universidade Metodista de Piracicaba, e autor de Operários sem patrões: os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
Fonte: Revista Nossa História - Ano II nº 19 - Maio de 2005

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