“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Proletários e subversivos

A grande imprensa viu com bons olhos as primeiras comemorações do Dia do Trabalho. Depois condenaria a "tenebrosa doutrina" anarquista, por perverter as manifestações operárias no Brasil.
Silvia Regina Ferraz Petersen
     Se é difícil estabelecer com exatidão as circunstâncias em que o Dia do Trabalho foi comemorado pela primeira vez no Brasil, podemos de qualquer modo esboçar algumas condições históricas que cercam o acontecimento. Em fins do século XIX, um emergente processo de industrialização passou a atrair trabalhadores para centros urbanos como São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. A imigração, que favoreceu os contatos entre trabalhadores brasileiros e estrangeiros, foi uma via de entrada importante - mas não exclusiva - para as ideias socialistas e anarquistas que já animavam os trabalhadores europeus e logo teriam aqui seus intérpretes. Não se pode esquecer que o internacionalismo era uma bandeira de luta já levantada por Karl Marx quando conclamou, no Manifesto comunista, de 1848, os proletários de todos os países a se unirem. Assim, é fácil entender que também a comemoração do 1º de maio, originária das lutas dos operários norte-americanos e assumida na Europa, logo se difundisse no Brasil.
     Mas naqueles anos, quando a República recém proclamada parecia oferecer novas condições de cidadania, o socialismo também inspirava uma intelectualidade progressista, formada por profissionais liberais, jornalistas, advogados e até mesmo militares, que fundaram partidos e "centros socialistas" visando arregimentar os trabalhadores, ao lado das também incipientes associações organizadas pelos próprios trabalhadores para a defesa de seus direitos. Também as orientações ideológicas socialistas e anarquistas que inspiravam os trabalhadores possuíam diferentes matizes e eram apropriadas com consideráveis variações. Por isso, não deve surpreender que as interpretações da grande imprensa brasileira sobre o sentido do 1º de maio também fossem muito instáveis. Acompanhemos então esta história.
     Em 30 de abril de 1890, O Estado de S. Paulo divulgou amplamente a passagem da data em países europeus. Não há, no entanto, referências a comemorações no Brasil, e é provável que não tenham ocorrido. Mas, no ano seguinte, aparecem, na capital paulista, notícias no Diário Popular da comemoração promovida pelo Centro do Partido Operário de São Paulo, cuja orientação era presumivelmente socialista.  No Rio de Janeiro, a divulgação é igualmente breve, informando o Jornal do Commercio a realização de uma sessão solene pelo Partido Operário de São Cristóvão, encerrada com um concerto.
     Já em 1892, o noticiário é mais diversificado. Além do que se passou na Europa, há notícias sobre as comemorações no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Porto Alegre. É significativa a informação de que, no Rio de Janeiro, "o Marechal Floriano assistirá as festas comemorativas", pois ilustra o interesse que os políticos da jovem República tinham em atrair a classe operária em formação, ainda que, paradoxalmente, não houvesse de fato espaço para ela na ampliação da representatividade trazida pelo novo regime. É um jornal da distante cidade gaúcha de Pelotas, o Diário Popular, que oferece os detalhes dessas comemorações: "O Centro do Partido Operário, de que é presidente o tenente Augusto Vinhaes, realizou ontem uma sessão magna no Teatro São Pedro. O cidadão João Villa pronunciou um discurso violento, dando vivas à anarquia. As palavras do orador, merecendo aplausos de uns e a reprovação de outros, produziram enorme tumulto, estabelecendo ruidosa confusão”.
     As comemorações em São Paulo foram matéria do mesmo jornal, que esclareceu terem sido promovidas pelo Centro do Partido Operário, em cujo salão "adornado por bandeiras de várias nações" [...] "achava-se reunida grande multidão, em sua maioria proletários". A tribuna foi ocupada por vários oradores, sendo que "o orador oficial, o Sr. Artur Breves, advogou a causa dos socialistas, defendendo com ardor o direito de propriedade". Esta estranha combinação de socialismo e propriedade privada que serve para exemplificar as múltiplas apropriações que a teoria socialista recebeu no Brasil -, parece não ter causado surpresas. O relato do Diário Popular encerra com uma imagem idealizada e romântica dos trabalhadores: "Era belo ver-se aqueles dois obscuros proletários, maltrajados, sem camisa, no desalinho próprio do trabalhador sem recursos, sugestionando o espírito da assembleia sob o influxo de seu verbo quente, correto, vigoroso e por vezes até cintilante. Durante a sessão tocou uma banda de música." Neste ano de 1892 também se comemora em Porto Alegre pela primeira vez a data, noticiada assim n'A Federação: "Nosso colega Dr. Colombo Leoni, redator do L’Avvenire, nos comunica que as classes operárias desta capital também comemorarão, este ano, o 1º de maio, reunindo-se para este fim na Praça da Alfândega, domingo, às 2 horas da tarde [...] de onde seguirão por várias ruas da cidade em grande marcha comemorativa do dia consagrado às expansões pacíficas do proletariado". Notícias posteriores dão conta de que foram pronunciados discursos em alemão, italiano e português e que "reinou completa paz".
     O aspecto festivo, harmonioso e ordeiro, que transparece nas matérias jornalísticas, experimenta, em 1893, uma primeira e radical transformação. Coube à Liga Socialista de São Paulo promover, conforme notícias do Correio Paulistano, O Estado de S. Paulo e Opinião Nacional, a passeata festiva na qual, ao som de uma banda de música e precedidos por uma bandeira vermelha, "operários de todas as nacionalidades" saudaram o 1º de maio, percorrendo as ruas da capital "numa ordem e harmonia invejáveis". Ocorre que nesta mesma noite bombas de dinamite foram lançadas contra as residências de duas autoridades, não fazendo vítimas, mas causando estragos. Os atentados, sem que houvesse prova, foram atribuídos a operários anarquistas. A linha de apreciação que, em decorrência do incidente, perpassa uma longa matéria publicada na primeira página d'O Estado de S. Paulo, de 3 de maio de 1893, e que será uma tônica, a partir daí, nos veículos da imprensa. Segundo o jornal, as condições dos trabalhadores no Brasil, "onde a abundância é recompensa do trabalho, em que a riqueza não significa opressão", não justificam "as lutas sanguinolentas e o ódio cego" que movem os operários na Europa, "onde o capital predomina e impõe suas condições aos que só dispõem do próprio esforço para sobreviver". Os brasileiros deviam estar "em prevenção contra futuros males que hão de vir, com certeza, se continuarmos a transportar para o nosso país a população anarquisadora do Velho Mundo". Em seguida, o redator sugere as medidas policiais que deviam ser tomadas para conter "os que se rebelarem contra a ordem social, procurando nivelar, a poder de dinamite, as classes da sociedade": desbaratar as "propagandas subversivas", prender os infratores e fazer a deportação dos indesejáveis, "recurso empregado em outros países da Europa todas as vezes que os estrangeiros se tornam perigosos para a paz pública".
     A associação que foi estabelecida entre operários e a ameaça da ordem pública se desenvolveu rapidamente. A comemoração do 1º de maio é um bom indicador dessa transformação, pois se em 1891 a imprensa noticiava uma festa operária, em 1894 dava contas da apreensão sobre o que poderia ocorrer em São Paulo nesta data. Eis o acontecido: em meados de abril, O Commercio de S. Paulo noticiou a prisão de operários italianos, reunidos no Centro Socialista; depois desmentiu que deste centro participassem anarquistas ou que ali tivessem sido encontrados explosivos (parece que a denúncia partiu do cônsul italiano). Embora o jornal não ofereça mais detalhes, estes são encontrados nas palavras do secretário da Justiça, João Alvares Rubião Júnior, que relata haver tomado conhecimento de que no prédio nº 110 da Rua Libero Badaró reuniam-se operários visando ao desenvolvimento da "tenebrosa doutrina" e que então passou a vigiar os indivíduos denunciados como pertencentes à "perigosa seita", para no momento oportuno frustrar seus "sinistros intentos". Assim, na noite de 15 de abril, "em uma das conferências em que se discutiam os graves acontecimentos preparados para o dia 1º de maio, data em que comemoravam a chamada Festa do Trabalho, foram presos dez súditos italianos, verdadeiros anarquistas todos membros do citado Centro Socialista", dentre eles os militantes Eugênio Gastaldetti, Felix Vezani, Augusto Donati, Artur Campagnoli e Galileu Botti.
     Estes fatos causaram apreensão quanto ao 1º de maio e a imprensa noticiou as providências para manutenção da ordem: a cidade fortemente patrulhada, detenção de novos suspeitos e proibição da passeata. Não obstante, à noite, explodiu uma pequena bomba próximo ao quartel da polícia e um rapaz foi preso, embora negasse o fato e não se encontrasse com ele nada comprometedor. Quanto aos italianos, tiveram a deportação decretada, mas sete meses depois ainda se encontravam presos sem julgamento. O jornal anarquista L’Avvenire em seu primeiro número, de novembro de 1894, publicou longo editorial em defesa dos companheiros, que tinham sido objeto de falsas denúncias. Seu destino é esclarecido pelo relatório da polícia ao secretário da Justiça: esperaram presos no Rio de Janeiro pela deportação "tendo dali regressado e postos em liberdade no dia 12 de dezembro por não terem sido deportados como se requisitou".
     Assim, em 1894, já estava definida a dimensão de protesto e luta que, sob várias formas e intensidades, daí por diante marcaria as comemorações do 1º de maio no Brasil, sempre que foram organizadas pelos próprios trabalhadores, pois também esta data simbólica sofreu muitas manipulações que a desviaram de sua intenção original.
     No caso do Brasil, vemos a transição da liderança de intelectuais progressistas, profissionais liberais e militares, predominantemente brasileiros, que formaram de cima para baixo "partidos e centros socialistas", para a presença e atuação mais visível de militantes operários, muitos deles imigrantes, que por sua própria condição social estabeleceram vinculações mais sólidas com os seus companheiros de classe.
     Também através do 1º de maio ecoa o desenvolvimento do xenofobismo na classe dominante brasileira, o qual cresce paralelamente ao papel exercido pelo trabalhador europeu no meio operário nacional. Estas manifestações, que ficam claras na imprensa da época, não se dirigiam contra o estrangeiro como tal - que sempre teve acolhida numa sociedade europeizante como a nossa - e sim contra lideranças operárias estrangeiras, cujos interesses eram considerados uma ameaça aos dos empresários.
     Na ausência de uma legislação que regulasse as relações de trabalho, o tratamento dos conflitos entre operários e patrões logo foi entendido como atribuição da polícia, e as invasões das associações operárias, prisão de militantes e deportação de estrangeiros passaram a ser os métodos usuais.
     Por fim, o 1º de maio expressa a nítida percepção dos operários de então, de que as promessas republicanas não os alcançavam e que a união com seus companheiros era a única forma de lutar pelos seus direitos.
 Silvia Regina Ferraz Petersen é professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de Origens do 1º de maio no Brasil. Porto Alegre: MEC IPROEDI Editora da Universidade-UFRGS, 1981.
Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 7 - Maio de 2004

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sábado, 25 de abril de 2015

Assim na terra como no céu

Na gestão de seus negócios, os jesuítas desenvolviam no tempo da Colônia práticas administrativas similares às dos grandes senhores de engenho.
Paulo de Assunção
     O papel dos jesuítas foi sem dúvida de vital importância na construção do catolicismo brasileiro. Muito já se escreveu sobre o impacto da catequese entre os indígenas e o modelo educacional implementado por esses religiosos na América portuguesa. No entanto, suas práticas temporais - isto é, não espirituais, de cunho econômico -, receberam pouca atenção em comparação com questões pedagógicas e culturais.  Estas, guardadas as devidas proporções, nem sempre foram o único alvo do seu interesse. Aos colégios jesuíticos se associavam as propriedades da Companhia de Jesus - essenciais para a manutenção da sua obra evangélica - e, por consequência, todo o universo da administração colonial. A necessidade de manter as atividades religiosas e o sustento dos religiosos impuseram diversos problemas à gerência das fazendas da Ordem, exigindo de muitos gestores habilidade e pragmatismo na solução dos problemas administrativos, bem como ações eficazes para contornar os frequentes impasses políticos que marcaram os duzentos anos de presença jesuítica em terras brasileiras.
     Os negócios temporais dos jesuítas durante esse período foram norteados por atitudes, práticas e regras de caráter econômico, de acordo com o modelo de exploração colonial. A ação dos padres administradores/procuradores, que organizavam e davam impulso às atividades produtivas, revela que muitos deles deveriam possuir, além de um arcabouço espiritual, conhecimento profundo do sistema produtivo a que estavam vinculados. Esta configuração revelou, não raras vezes, as relações com o poder administrativo dos membros da Companhia, sujeitos, em algumas circunstâncias, aos ataques e às críticas de seus próprios pares, por adotarem condutas que se distanciariam do ideal jesuítico. Setores da sociedade colonial alertavam para o fato de que o temporal e espiritual possuíam interesses divergentes.  Na medida em que os olhos dos jesuítas se voltavam para os bens terrenos, viravam as costas para as questões espirituais. Na verdade, a Companhia de Jesus prosperou sem perder o discurso do pioneirismo e da ação heroica dos primeiros tempos. A instituição somente acrescentou aos seus registros dados temporais da produção, administração, balanços, débitos e créditos. Os funcionários de Deus trabalhavam orando, cultivando, contando e ampliando a seara divina.
     Em cartas, relatórios e outros documentos dirigidos aos padres superiores, procuradores, prefeitos e reitores dos colégios de Lisboa, Porto, Coimbra e outras localidades do território português, eles registraram a forma como eram administradas as diversas propriedades da ordem, ao mesmo tempo em que destacavam a necessidade e a importância da manutenção das propriedades produtivas para o bom funcionamento da instituição. Esta farta correspondência permite reconstituir e compreender o pano de fundo do contexto social em que os religiosos atuaram. Os documentos revelam um complexo jogo político e econômico envolvendo jesuítas, nobreza, monarca, funcionários da Coroa, mercadores e escravos, em relações nem sempre amistosas e tranquilas. Possibilitam-nos entender quem eram aqueles homens que viveram entre o temporal e o divino, na fronteira entre os "exercícios espirituais" e a gerência de suas propriedades.
     A Companhia de Jesus, revelam as cartas, soube interagir com o universo produtivo colonial, produzindo gêneros de consumo para suas residências e colégios. Envolvidos com a produção de açúcar, eles adotaram práticas administrativas similares às dos grandes senhores de engenho. Este comportamento é esboçado nos registros, onde são demonstradas as preocupações como a falta de liquidez, dependência de crédito, manutenção dos meios de produção, o transporte e encargos de distribuição. A tudo isso se acresciam seus deveres espirituais.
     Os livros ou rol de contas, elaborados pelos religiosos, registravam as transações das propriedades com detalhes. Esses informativos eram enviados ao padre-procurador para análise. A prestação de contas a cada safra e a inspeção das finanças eram de fundamental importância para se saber como estavam os recursos dos colégios e se as propriedades estavam sendo bem administradas. Também permitiam ao padre provincial tomar as decisões econômicas mais acertadas. Este tinha abaixo do seu comando os padres-reitores dos colégios de suas províncias e os padres-procuradores. Os primeiros controlavam os irmãos-dos-colégios e os padres-administradores. Havia também os padres-visitadores, cuja função era verificar se as "Constituições da Companhia de Jesus" estavam sendo seguidas conforme as práticas espirituais e temporais.
     O padre-procurador, além de suprir as necessidades dos bens dos colégios e residências do Brasil, era responsável por um minucioso exame dos relatórios e contas enviados pelos padres-administradores das propriedades. Por meio dessa documentação, era possível verificar a totalidade das operações realizadas: produção de pães-de-açúcar, arroz, fumo, especiarias e outros produtos; quantidade de cabeças de animais e de negros; os gastos com reposição dos instrumentos de produção, com as doenças da escravaria, com os fretes dos produtos que iam da colônia para o reino e vice-versa. Portanto, o padre-procurador era aquele que centralizava os papéis de todas as transações efetuadas, podendo mensurar a queda ou o aumento da rentabilidade. A obrigatoriedade de relatórios demonstra um sistema de controle e fiscalização atuante.
     As unidades produtivas procuravam ser autossuficientes, atendendo as necessidades dos estudantes, dos jesuítas e dos trabalhadores escravos e assalariados que compunham a estrutura da Ordem. O excedente produzido era vendido com lucro e utilizado para a compra de outros produtos necessários para manter as unidades funcionando. Num universo de incertezas, os religiosos tinham de lutar para que a produção açucareira, entre outras, gerasse lucro. Um trabalho inglório e difícil, pois além dos problemas inerentes ao processo produtivo, tinham de se preocupar com as variações climáticas, as oscilações do mercado e o jogo da política internacional.
     Regulamentos referentes à administração das unidades produtivas eram elaborados pelos padres-procuradores contendo orientações àqueles que assumiam funções administrativas. Continham as diretrizes básicas para uma boa gestão, entre estas o aconselhamento ao procurador para assegurar-se de que todos os títulos de propriedade e os direitos de possessão estivessem em acordo com as normas prescritas por lei e a recomendação de que visitasse com frequência as propriedades para assegurar o andamento das atividades. Entre outras orientações, devia cuidar para que os "exercícios espirituais" e a "doutrina" estivessem sendo bem praticados e evitar a presença de mulheres nas residências. Os regulamentos indicavam um forte controle, centralizado no padre-provincial e no padre-reitor. Estes deveriam ter conhecimento de todas as atividades empreendidas pelos seus subordinados, os quais não poderiam agir, principalmente no âmbito do plano temporal, sem a sua autorização.
     A aquisição de mais terras visando a uma maior produção de açúcar e outros produtos foi a solução encontrada para atender as necessidades do mercado consumidor, que demandava bens, ou para manter as condições de produção adequadas a um fluxo constante e estável. Os jesuítas demonstraram que compartilhavam de práticas de um capitalismo comercial, em que a tomada de decisão implicava correr riscos que deveriam ser criteriosamente evitados.
     A fusão da imagem dos jesuítas com a dos senhores de engenhos não foi difícil de ser estabelecida. Os propósitos dos "companheiros de Cristo" tinham sido alterados com o decorrer do tempo, deixando-os sujeitos aos mecanismos do contexto secular, e uma nova imagem da instituição surgira daí, misturando fé, missionarismo, fortuna e poder. Nicholas Cushner, estudioso das propriedades jesuíticas da América espanhola, já afirmava que as críticas às atividades mercantis da Companhia de Jesus, na Europa e na América, eram em parte fruto de uma mentalidade econômica medieval, que entendia serem determinadas práticas - por exemplo, a venda de produtos visando ao lucro -, ilícitas por natureza. Isso não combinava com o modelo idealizado de caridade cristã construído pela sociedade para as ordens religiosas.  Os próprios inacianos tiveram, aliás, a mesma preocupação, ao questionarem quais comportamentos seriam mais condizentes com os preceitos religiosos que defendiam. Conscientes de que as obra de educação, catequização e assistência espiritual deveriam continuar a existir, e eles precisavam de suas propriedades para mantê-las, os religiosos lutaram, assim, para preservar o que haviam conquistado.
Uma particularidade da administração dos jesuítas é que ela gozava de alguns benefícios reais que lhe permitiam autonomia em relação às obrigações impostas pelo sistema colonial, pois a Coroa reconhecia o papel fundamental que esses religiosos exerciam na defesa do cristianismo. Tais privilégios favoreceram suas propriedades, cuja produção era praticamente toda comercializada com isenção de taxas e de impostos. Contudo, no início do século XVIII, verificaram-se sensíveis sinais de decadência na instituição; em parte causada pela situação econômica enfrentada localmente pelas suas unidades produtivas; em parte por problemas de relacionamento com os poderes políticos e econômicos de diversas partes da Europa e da América.
     Considerou-se afinal que os direitos e privilégios conquistados pela Ordem comprometiam a economia do Estado português, e tal argumento justificou as ações antijesuíticas do marquês de Pombal, o poderoso ministro do rei d. José I (1750-1777). Pela lei de 3 de setembro de 1759, o monarca ordenou que todos os religiosos da Companhia fossem "tidos, havidos e reputados como desnaturalizados, proscritos, e exterminados do território português e de todas as terras de além-mar". Rompeu-se assim uma união de mais de dois séculos entre os jesuítas e a Coroa, sempre marcada por uma tumultuada relação de interesses entre o poder temporal e o poder espiritual.

Paulo de Assunção é professor de História na Universidade São Judas Tadeu, do Centro Universitário Capital (UN1CAPITAL) e do Centro Universitário Assunção (UNIFAI) e autor de Negócios jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: Edusp, 2004.
Fonte: Revista Nossa História - Ano II nº 19 - Maio de 2005

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terça-feira, 14 de abril de 2015

Medida provisória... até hoje

     Tema constante na imprensa atual, as relações comerciais do Brasil com o mundo devem uma especial reverência ao documento conhecido como a carta de Aber­tura dos Portos. Sua importância está destacada em todos os livros da nossa história. O que poucos sabem, no entanto, é que este do­cumento nasceu provisório, nun­ca foi revogado e representou uma grande surpresa apresentada ao príncipe d. João logo que chegou na Bahia em 1808.
     Assim que desembarcou em Salvador, com a Família Real e a Corte portuguesa, após atraves­sar o Atlântico para fugir da inva­são francesa em Portugal, d. João foi recebido por uma comitiva de comerciantes. Eles pediam a libe­ração do comércio com portos não portugueses porque os ar­mazéns estavam repletos de cai­xas e caixas de açúcar, rolos de ta­baco e muitos produtos encalha­dos desde o fechamento dos por­tos de Lisboa e Porto, com o blo­queio imposto por Napoleão Bonaparte.
     A iniciativa da recepção foi atribuída a José da Silva Lisboa, intelectual baiano bem aceito pela administração portuguesa, para aproveitar o fato de d. João estar desacompanhado de seus conse­lheiros - uma tempestade separou os navios da comitiva real! Sem as resistências do Conselho de Esta­do seria mais fácil a aprovação de uma medida daquele alcance.
     A carta foi assinada no dia 28 de janeiro de 1808, uma semana após a chegada do príncipe regen­te. E a ausência dos conselheiros provocou o aspecto mais curioso do texto, que é o seu teor "interino e provisório": talvez uma alternati­va para d. João voltar atrás em sua decisão, já que o impacto provoca­do pelo documento seria grande. Apesar de seu caráter provisório, a carta jamais foi revogada, nem mesmo após a retirada dos france­ses de Portugal, em 1811.
     As medidas aprovadas regula­vam, basicamente, as entradas e saídas de produtos das capitanias brasileiras. A partir de então quaisquer mercadorias transpor­tadas em navios de países em paz com Portugal - que pagassem uma taxa de 24% sobre o valor dos produtos - eram admitidas nas alfândegas. E súditos portu­gueses ou comerciantes estran­geiros poderiam também expor­tar suas mercadorias para qual­quer porto.
     A abertura dos portos às nações amigas, ou seja, aquelas que não haviam declarado guerra a Portugal, além de evitar conturbações sociais diante da dificuldade de es­coar a produção, também traduziu as tentativas, por parte da Coroa portuguesa, de racionalizar uma política administrativa e econômi­ca que adotasse princípios como os da liberdade de comércio. Para al­guns historiadores, a abertura dos portos não rompeu com o mono­pólio porque não havia controle rí­gido da Coroa sobre o comércio. Mas é evidente a importância das medidas. Em Portugal, a perda da posição de centro no comércio co­lonial europeu gerou forte crise nas finanças. E no Brasil, a abertu­ra dos portos e a vinda da Corte desencadearam o processo de se­paração política entre metrópole e colônia, consumada em 1822, quando a Independência foi ofi­cialmente declarada.
O documento pertence ao acervo da Biblioteca Nacional.

Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 3 - Jan. 2004