“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 22 de outubro de 2017

Especiarias da China

Trazidos para cultivar chá no Rio de Janeiro, os primeiros imigrantes chineses a desembarcar no Brasil sofreram com o preconceito e as más condições de vida.
Geraldo Moreira Prado e Rael Fiszon Eugênio dos Santos
      Se, a despeito da globalização, os modos e cultura chineses ainda causam estranheza entre nós, imagine-se então no começo do século XIX! As fontes históricas disponíveis sobre o Rio de Janeiro, naquela época, mostram que a população da cidade era composta de comerciantes, trabalhadores livres, nobres luso-brasileiros, viajantes europeus e, em sua maioria, de escravos africanos. Mas, como destacam alguns historiadores, jornalistas e naturalistas que visitaram o Brasil no século XIX, havia também chineses, trazidos ao Brasil para cultivarem o chá na Real Fazenda de Santa Cruz, situada na Zona Oeste da cidade, e no Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
      A este grupo de chineses se devem as primeiras experiências brasileiras de cultivo da planta conhecida pelo nome científico de Camellia sinensis, nativa da China. Alguns poucos livros, como o clássico D. João VI no Brasil, do historiador pernambucano Oliveira Lima, destacam a presença chinesa no Brasil. O mais comum entre os autores, no entanto, é apontarem os suíços que se estabeleceram na região serrana de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, em 1818, como a primeira força de trabalho estrangeira, e livre, a atuar no país cuja economia era então sustentada pelo braço escravo. Ao lado dos suíços, os colonos chineses também tiveram papel relevante, protagonizando um projeto que seria a menina-dos-olhos de d. João VI, mas cujos resultados acabaram infelizmente ficando bem aquém das expectativas.
      O hábito de tomar chá chinês (dito inglês) surge por aqui a partir da chegada da família real portuguesa, em 1808, que introduz na acanhada colônia hábitos europeus mais sofisticados. A ideia de d. João, príncipe regente e futuro rei de Portugal, era cultivar o produto por aqui mesmo, dispensando as importações e transformando-o em fonte de riqueza. O número de trabalhadores chineses que ficaram no Brasil no período com esse propósito, bem como suas origens, não são exatos. Benedicto Freitas se refere a uma centena, mais ou menos, e seriam eles provenientes de Macau e Cantão. Sabe-se que primeiramente desembarcaram 45 colonos, em 1815 - e, segundo Fania Fridman, provenientes de Macau. Mas havia também chineses de outras regiões. Johann Luccock, viajante que chegou ao Brasil em meados de 1808, referindo-se ao chefe dos lavradores residentes na Fazenda Santa Cruz, diz ser ele originário de Nanquim.
      Pelos relatos que ficaram, a fazenda, naquela época, principalmente graças aos cuidados de d. João, pessoalmente empenhado no projeto, parecia algo muito próximo do paraíso. Na visita ao local, a viajante Maria Graham, além de testemunhar o interesse do monarca português pelo assunto, descreve um cenário que mistura trabalho, sonho e fantasia. Segundo ela, d. João mandara construir na Fazenda Santa Cruz portões e cabanas, em estilo chinês, que ficavam próximos a canteiros abrigando arbustos da erva, de folhas escuras e brilhantes e flores semelhantes às da murta. Tais canteiros eram cercados por caminhos onde se misturavam laranjeiras, roseirais e uma linda espécie de mimosa, formando belos jardins. Desse modo, a "China de Santa Cruz", escreveu Maria Graham, se tornara um dos pontos mais aprazíveis para os visitantes.
      No diário de viagem escrito durante sua estadia nas cortes de d. João VI e d. Pedro I (1821 a 1823), Maria Graham registra que introduzir o chá da China no Brasil era de fato um dos projetos favoritos de d. João, cujo entusiasmo foi também testemunhado por Johann Luccock. Para compor o cenário físico da Fazenda Santa Cruz, há os registros pictóricos do artista inglês Thomas Ender (18171818) mostrando a peculiaridade no modo de vestir e nos hábitos - particularmente o de fumar cultivados pelos chineses. O pintor também registrou a arquitetura diferenciada do local. Nos desenhos do príncipe Maxiliano Wied-Neuwied, datados de 1815, é possível perceber detalhes das cabeças de chineses em poses de perfil, sentados às margens dos caminhos ou segurando um caniço.
      Tudo parecia que ia muito bem, mas não era verdade. O clima supostamente idílico da Fazenda Santa Cruz não duraria muito. Contra os chineses e o projeto de d. João se levantariam em breve duas forças imbatíveis: o preconceito e as leis do mercado. Houve quem criticasse as peculiaridades comportamentais dos chineses na relação do trabalho e no modo de assimilar as informações recebidas. Luccock, por exemplo, achava que eram meticulosos no modo de lavrar e que alguns chineses demonstravam rapidez de assimilação. Considerava, no entanto, que a maioria deles era extremamente ignorante, "como jamais se viu em outra raça". O preconceito em Luccock ia ainda mais além: "Tais como os gregos modernos, a inteligência deles se desviou e o caráter envileceu". As condições que cercaram a vinda dos chineses já eram reveladoras de um futuro nada promissor. Não puderam trazer mulheres, para que seus traços orientais não passassem a descendentes brasileiros, e, aqui, eram proibidos de se aproximar da senzala, a fim de se evitar eventuais relações íntimas com escravas.
      Os resultados negativos desse regime de opressão a que foram submetidos, certamente agravado pela barreira da língua, surgiram quatro anos após a chegada dos primeiros imigrantes. Em 1819, 51 chineses subscreveram um abaixo-assinado que foi referendado por José Bonifácio e enviado a d. João VI. No texto, solicitavam um intérprete para auxiliá-los nos tribunais. É que alguns deles haviam virado réus, em consequência de fugas verificadas na colônia chinesa de Santa Cruz. Segundo a acusação, grupos de chineses que haviam deixado a lavoura de chá saíam pela cidade cometendo "abusos" e "desordens". As fugas eram consequência das condições a eles impostas na fazenda, pois, como escreveu Maria Graham em seu diário, "ninguém foge de onde vive bem".
      Segundo Fania Fridman, a relação de trabalho desses chineses tinha na verdade características escravocratas, pois "recebiam apenas 160 réis por dia, não podiam comerciar nem ir à cidade, dormir fora da colônia ou receber visitas". Graham, no entanto, considerou que o salário tinha um valor significativo na época. Não se pode afirmar que a força de trabalho chinesa no Brasil se submetia às características clássicas do escravismo. Havia, sim, relações de hierarquia que tinham de ser observadas e a presença de feitores, típicas do regime escravocrata. Documento de 1817 nomeia um chinês de nome "Bexiga" como feitor de Santa Cruz. Sua tarefa era controlar os conterrâneos rebeldes.
      Em 1825, o chinês João Antônio Moreira (nome adotado), que vivia no Brasil há mais de 11 anos e trabalhava há cerca de seis em Santa Cruz, enviou requerimento ao intendente da polícia, Francisco Alberto Pereira Aragão (1824-1827), solicitando sua nomeação para o cargo de capitão, a fim de auxiliar as autoridades no controle dos abusos cometidos por conterrâneos. Segundo o referido requerimento, certo número de chineses, tendo abandonado o cultivo do chá, desenvolveu total relaxamento dos costumes, formando "partidos" (leia-se bandos) e cometendo roubos. O intendente recomendou ao imperador d. Pedro I recusar o pedido, alegando que os chineses estavam suficientemente habituados ao país e não precisavam portanto de tratamento diferenciado: "Procedimentos errados deveriam ser tratados nos moldes da lei", afirmou.
      Percebe-se, na análise do documento, que os primeiros chineses do Brasil não constituíam um grupo homogêneo. O próprio João Antônio Moreira, considerado chinês, deveria pertencer a um determinado partido, pois denunciava os "abusos" de seus compatriotas que se organizavam em três grupos ou "partidos" denominados Cantão, Macau e Chá. O tempo passou e com ele algumas diferenças se dissiparam. O rígido controle da Coroa não impediu que em 1825 alguns chineses conseguissem licenças para mascatear na cidade do Rio de Janeiro e em outras cidades do sudeste brasileiro. Sobre isso, fontes históricas registram que durante o século XIX o território brasileiro foi palco de muitas experiências similares com trabalhadores livres estrangeiros. Nestes contingentes se encontravam também chineses, que a partir do decênio de 1833 se fixaram em vários pontos do país, particularmente o interior dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná.
      Quanto ao cultivo do chá, o sonho tão acalentado por d. João VI, virou frustração. Frei Leandro, primeiro diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, em sua obra Memória econômica sobre o cultivo e preparo do chá (1825), reclama do despreparo dos agricultores brasileiros no cultivo da planta. Por este motivo, o chá não se disseminou no Brasil e na colônia chinesa de Santa Cruz malogrou. Em vez do chá, a economia preferiu o café, que continuou sendo produzido, exportado, acumulando e reproduzindo a riqueza das elites "nobiliárquicas" brasileiras. O fato é que o chá chinês deixou de ser produzido no Brasil e passou a ser importado da Inglaterra.
      Na análise de Maria Graham, os custos do investimento para o cultivo de chá eram muito elevados para a Coroa. Como os salários pagos aos chineses incidiam no preço de venda final do produto, a baixa produção, quase artesanal, não era suficiente para garantir o investimento. Analisando-se o caso pela perspectiva de hoje, é possível supor que a iniciativa de d. João VI tenha fracassado por falta de planejamento inicial, evidenciado pela desigualdade na concorrência com o café, cuja produção, para exportação, já ocorria em ampla escala, consolidando-o como o "produto-rei" da economia agrária brasileira, como afirmou a professora Maria Yedda Linhares.
      O hábito de tomar chá, no entanto, persistiu. O pioneiro da venda do produto no Rio de Janeiro foi o comerciante José Praxedes Pereira Pacheco, que fundou a Loja da China "à Rua da Candelária, 18, defronte da Igreja", conforme nos informa o Almanak Laemmert, de 1845. Segundo a propaganda, o estabelecimento tinha "o mais completo e variado sortimento de chá verde e preto, e também chá nacional das províncias de S. Paulo e Minas". Não encontramos registros sobre o plantio do chá em Minas, mas, em São Paulo, o produto começou a ser cultivado a partir de 1833, pelo marechal José Arouche de Toledo Rendon.
      Se os planos de d. João não deram certo, serviram pelo menos de "teste" para estimular a entrada de trabalhadores estrangeiros livres no Brasil. A partir daí, e pelo restante do século XIX e século XX, mais chineses iriam criar raízes no solo brasileiro. Em 15 de agosto de 1900 foi oficializada a entrada de 107 imigrantes chineses no país, radicados, em sua maioria, na cidade de São Paulo e um pouco menos no Rio de Janeiro. Intelectuais cariocas da década de 1920, como João do Rio, Benjamin Costallat e Álvaro Moreira, comentavam sobre chineses morando miseravelmente no Centro do Rio de Janeiro, nas proximidades da Praça XV, e ainda consumindo ópio.
      Com a revolução socialista chinesa de 1949, ocorreu uma diáspora para o Brasil, especialmente para a cidade de São Paulo. Nos últimos anos, eles se espalharam pelas principais capitais brasileiras, e São Paulo continua reunindo o maior contingente, mais de 130 mil pessoas (incluindo-se aí os descendentes), segundo dados apresentados pela Folha de S. Paulo, de 22/3/2005. Distribuídos pelos bairros da Liberdade, Vila Mariana, Cambuci, Aclimação e Vila Olímpia, dividem espaços com a comunidade japonesa e contribuem também para a diversidade da culinária brasileira com suas famosas lojas de pastéis e caldo de cana.
Geraldo Moreira Prado é historiador, PhD em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, e pesquisador do CNPq.
Rael Fiszon Eugênio dos Santos é graduando em História pela Universidade Federal Fluminense.

Fonte: Revista Nossa História - Ano III nº 36 - Outubro 2006

Saiba Mais – Bibliografia
ENDER, Thomas. Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender (1817-1818). Petrópolis, RJ: Kapa Editora, 2000.
FREITAS, Benedicta Santa Cruz: fazenda jesuítica, real, imperial. Vol. II: Vice-reis e reinado (1760-1821). Rio de Janeiro, 1987.
FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor e Caramond, 1999.

OLIVEIRA UMA, Manuel de. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Operação Condor - O Voo Mais Longo da Repressão

Multinacional clandestina da perseguição política na década de 1970, para seus agentes não existiam fronteiras. Sua missão era caçar, prender e muitas vezes matar os inimigos dos governos militares da América do Sul, onde quer que estivessem.
Samantha Viz Quadrat
           Na noite de 13 de julho de 1976, 15 policiais comandados por um oficial uruguaio, o major José Nino Gavazzo, invadiram uma casa da Rua Juana Azurduy, no bairro de Belgrano, em Buenos Aires. Dentro, Sara Mendez e sua amiga Asilu se preparavam para dormir. Sara, de 32 anos, trazia nos braços seu filho, o bebe Simon, de apenas 20 dias. Foi levada com Asilu a um centro clandestino de tortura, onde lhe tomaram a criança. Ela só voltaria a ver Simon 25 anos depois.
          Esta e muitas outras histórias, igualmente dramáticas, fizeram a fama da chamada Operação Condor, nascida no Chile com o objetivo de varrer do Cone Sul tudo o que fosse considerado "subversivo" pelos militares então instalados no poder, pelo uso da força, em vários países do continente, inclusive o Brasil.
           O coronel chileno Manuel Contreras, chefe da DINA, a polícia política do governo de Augusto Pinochet, tomou a iniciativa de convidar os principais representantes do setor de informações dos países do Cone Sul para uma reunião secreta, realizada em Santiago do Chile, entre os dias 25 de novembro e 1º de dezembro de 1975. Foi o primeiro passo para a montagem do aparato repressivo.
          Os acordos firmados nesse primeiro encontro visavam basicamente ao funcionamento da operação, que aliás ainda não tinha nome. Foi batizada de "condor" por sugestão do representante uruguaio. Figura simbólica do brasão chileno, o condor é a maior ave de rapina da América do Sul, capaz de alcançar altas e longas distâncias. O nome foi bastante apropriado. O voo do condor, como queriam os que batizaram a nova estratégia, não ficou restrito aos territórios dos países membros da operação.
          Nesse primeiro momento o Brasil, então governado pelo general Ernesto Geisel, não enviou nenhum representante à reunião secreta. Aparentemente havia resistência do governo brasileiro a envolver-se na operação. Teria aceitado apenas participar do intercâmbio de informações. A participação brasileira, contudo, não foi tão restrita quanto se pensava.
          Um dos episódios de maior destaque, nesse período, ocorreu justamente em território brasileiro. Em novembro de 1978 executou-se a chamada Operação Sapato Velho - resultado de uma parceria entre o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), de Porto Alegre, e oficiais do exército do Uruguai. O objetivo era o sequestro dos uruguaios Lilian Celiberti - junto com seus dois filhos menores, Camilo e Francesca - e Universindo Rodriguez Diaz. Presos no Brasil, Lilian e Universindo foram torturados e interrogados no DOPS de Porto Alegre. As crianças, entregues a uma avó. A salvação do casal se deve à imprensa brasileira, no caso representada pelos jornalistas Luís Cláudio Cunha e João Batista Scalco. Eles identificaram policiais envolvidos e denunciaram o sequestro.
          Entre as ações da Operação Condor fora da América do Sul figura o assassinato, num atentado a bomba ocorrido no dia 21 de setembro de 1976, de Orlando Letelier, ex-ministro de Salvador Allende e uma das principais lideranças de oposição à ditadura de Pinochet no exterior. O caso chama especialmente atenção por ter ocorrido na capital dos Estados Unidos, considerada um dos lugares mais seguros do mundo, ao mesmo tempo em que sugere a conivência de agentes norte-americanos.
          Os órgãos de inteligência norte-americanos tinham conhecimento de todas as violações ocorridas nos países do Cone Sul sob ditaduras. Além disso, os Estados Unidos despendiam vultosas verbas no treinamento de militares da América Latina, tanto no seu território como na Escola das Américas, situada no Panamá. Este centro de treinamento militar ficaria conhecido como "Escola dos Assassinos", por haver acolhido e formado inúmeros militares que mais tarde se envolveriam, nos respectivos países, em ações hediondas de violação de direitos humanos.
          O longo voo do condor alcançou também o Velho Mundo. Em 6 de outubro de 1975 Bernardo Leighton, ex-vice-presidente do Chile e alto dirigente do Partido Democrata Cristão, sofreu um atentado a bala na capital italiana. Esta e outras ações foram comandadas pelo norte-americano Michael Townley, um ex-informante da CIA que se tornou um seguidor fiel de Contreras, o chefe da DINA.
          A despeito de todas as vítimas que fez desde 1975 até o final das ditaduras nos anos 80, a Operação Condor acabou se tornando, paradoxalmente, passado o tempo das ditaduras sul-americanas, um dos principais trunfos na luta internacional contra a impunidade. Alguns países, como França e Itália, têm julgado os crimes cometidos contra seus cidadãos ou pessoas com dupla nacionalidade. Outros, como a Espanha, têm-se utilizado da lei que garante que os crimes contra a humanidade podem ser julgados em seus tribunais. E já que esses tribunais não reconhecem as leis de anistia decretadas nos países da América do Sul depois da chamada guerra suja, promovem-se hoje batalhas judiciais em vários países com o objetivo de prender e punir os culpados, por mais longe que estejam.
Samantha Viz Quadrat é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense e Coordenadora do Núcleo de Estudos Contemporâneos desta mesma Universidade.     

Fonte – Revista Nossa História - Ano I nº 2 - Dez. 2003

Saiba Mais – Bibliografia
GUENA, Márcia. Arquivo do horror. Documentos secretos da ditadura do Paraguai (1960-1980). São Paulo: Fundação Memorial da América Latina,1996.
MARIANO, Nilson. As garras do condor. Petrópolis: Vozes, 2003.
MIRANDA, Nilmário e TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. São Paulo: Perseu Abramo/Boitempo, 1999.
SÁBATO, Ernesto (org). Nunca mais. Porto Alegre: L&PM, 1984.

Saiba Mais – Links

Documentário
Condor – O Filme
Condor foi o nome dado à sinistra conexão entre governos militares sul-americanos, com o apoio da CIA, que culminou com a morte de cerca de 30 mil pessoas nos anos 70. Outros 400 mil foram presos e 4 milhões exilados. Roberto Mader conta essa história através de depoimentos emocionantes e surpreendentes de generais e ativistas políticos, torturadores, vítimas e parentes dos desaparecidos. Condor foi filmado em quatro países e traz um material de arquivo, acompanhado de belas composições de Victor Biglione.

Direção: Roberto Mader
Ano: 2007
Áudio: Português
Duração: 110 minutos



domingo, 15 de outubro de 2017

Condenado ao desprezo

Difamado pela direita e pela esquerda e subestimado nos meios acadêmicos apesar de sua importância histórica, João Goulart foi o único presidente brasileiro a morrer, de tristeza, no exílio.
Jorge Ferreira
      João Belchior Marques Goulart, o Jango, foi uma das personalidades políticas mais importantes no Brasil do século XX. Reconhecido pelas esquerdas e pelo movimento sindical como líder reformista e nacionalista, era identificado pela população como o herdeiro político de Getúlio Vargas e do trabalhismo. No entanto, após o golpe civil-militar que o derrubou da Presidência da República, em 1964, a imagem de Jango foi relegada ao esquecimento. Diferentemente de Getúlio ou de Juscelino Kubitschek, pouco se fala dele - e, quando se fala, fala-se mal. Como explicar que uma liderança popular tão importante tenha sido esquecida pela sociedade?
      Sua trajetória política começou com o retorno de Getúlio Vargas a São Borja, em 1945, após ter sido afastado pelos militares da Presidência. Abandonado por amigos, pouca gente além de Jango o visitava, nascendo entre os dois forte amizade. Getúlio o aconselhou a ingressar no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Em 1947, foi eleito deputado estadual e, em 1950, deputado federal, mas assumiu a Secretaria do Interior e Justiça do governo gaúcho. No entanto, Vargas, agora presidente eleito, necessitava do amigo por perto. Assim, Goulart assumiu a presidência do PTB em junho de 1952 e, um ano depois, foi nomeado ministro do Trabalho.
      O novo ministro tomou medidas que beneficiaram os trabalhadores, como fiscalizar o cumprimento das leis sociais. Jango procurava soluções para as greves na mesa de negociação e, uma vez por semana, recebia trabalhadores e sindicalistas para conversar. Os políticos conservadores ficaram chocados. Afinal, um ministro estava recebendo, em seu gabinete, gente de origem social humilde. Na imprensa, Carlos Lacerda desferia-lhe ataques violentos, chamando-o de "despreparado", "ignorante", "demagogo", "corrupto", "manipulador dos operários" e frequentador de cabarés. Sua última iniciativa foi a de propor que o salário mínimo, muito corroído pela inflação, fosse duplicado. Com um manifesto, militares criticaram o governo e o ministro. Para preservar Getúlio, Jango combinou com ele a própria demissão. Deixou o ministério em fevereiro de 1954, com grande prestígio no movimento sindical e no PTB.
      Goulart estava afinado com a conjuntura europeia de valorização da democracia e do modelo de Estado de bem-estar social e com o sentimento antiimperialista latino-americano. Seu projeto de trabalhismo era o de firmar um pacto social entre empresários e trabalhadores, ampliando o mercado interno e distribuindo a renda, tendo o nacionalismo como matriz para o desenvolvimento do país.
      Para as eleições presidenciais de 1955, PSD e PTB lançaram Juscelino para presidente e Goulart para vice. Visando a prejudicar Jango, Lacerda apresentou carta falsificada atribuída ao deputado peronista Antonio Brandi, afirmando que Goulart preparava uma guerra civil no Brasil. Mesmo difamado pela direita, ele comprovou seu prestígio. Concorrendo à vice-presidência, teve 600 mil votos a mais que Juscelino - na época, os votos para presidente e vice não eram vinculados. Em 1960, Jânio Quadros venceu as eleições e Goulart foi novamente eleito vice-presidente. Meses depois, com a renúncia do primeiro, a cúpula militar vetou sua posse. Deu-se, a partir daí, um dos episódios mais marcantes de toda a República. No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola defendeu os direitos de Jango com a Campanha da Legalidade. Empresários, sindicalistas, a UNE, a OAB, a CNBB, os partidos políticos e a imprensa alinharam-se pela defesa da Constituição. O próprio Exército se dividiu. A saída conciliatória surgiu com a adoção do parlamentarismo como novo sistema de governo. Contrariado, Goulart aceitou a mudança de regime. Afinal, o país estava dividido.
      No dia 7 de setembro de 1961, ele assumiu a Presidência, sob gravíssima crise militar e política, com as contas públicas descontroladas e tendo que administrar um país endividado. Seu programa de governo tinha por objetivo alterar as estruturas econômicas e sociais do país - eram as chamadas "reformas de base". Entre estas constavam as reformas bancária, fiscal, urbana, tributária, administrativa, agrária e universitária, além da extensão do voto aos analfabetos, o controle do capital estrangeiro e o monopólio estatal de setores estratégicos da economia.     Jango tinha uma dupla estratégia: sabotar o parlamentarismo e ampliar sua base política com a aliança entre PTB e PSD. Quanto ao primeiro item, obteve sucesso. No plebiscito de 6 de janeiro de 1963, sua vitória foi avassaladora: dos 11,5 milhões de eleitores, 9,5 milhões aprovaram o retorno do presidencialismo. Mas no segundo encontrou resistências. O movimento sindical, as esquerdas e setores radicais do PTB exigiam que Goulart governasse somente com eles, excluindo o PSD. Os tempos não eram de diálogo, mas de radicalização. Sob a liderança de Leonel Brizola, seu cunhado, as organizações de estudantes, camponeses, sindicalistas, sargentos e grupos da esquerda exigiam "reforma agrária na lei ou na marra". Os parlamentares do PSD, assustados com a radicalização, aproximaram-se de membros da União Democrática Nacional (UDN) - que fazia forte oposição ao governo de Goulart -, formando uma aliança conservadora dentro do Congresso.
      Vitorioso no plebiscito, Goulart apresentou seu programa de estabilização econômica. Formulado pelo economista Celso Furtado, o Plano Trienal era inovador: previa primeiro o controle da inflação seguindo os acordos com o FMI; depois, a implementação da reforma agrária. As esquerdas atacaram o projeto e os empresários também se opuseram. Sem apoio político, o plano fracassou. Como alternativa, Jango apresentou o projeto da reforma agrária. Embora o PSD aceitasse medidas moderadas, as esquerdas exigiam uma reforma radical, sem indenizações. Ao mesmo tempo, o governo norte-americano bloqueou os créditos ao Brasil, exigindo o combate à inflação com arrocho salarial e recessão. Jango preferiu regulamentar a Lei de Remessa de Lucros. Do capital que as empresas estrangeiras investissem no país, o dispositivo limitava em apenas 10% ao ano o envio dos lucros para o exterior.
      Em outubro de 1963, sob feroz ataque de Carlos Lacerda, o presidente propôs o estado de sítio, o que implicava a suspensão temporária de certas garantias constitucionais. Ao mesmo tempo, políticos, empresários e militares de direita, organizados no complexo Ipes-Ibad, se articulavam para conspirar contra o governo, desencadeando ampla campanha anticomunista.
      Goulart enfrentava grandes dificuldades. O governo norte-americano estava determinado a estrangular financeiramente o Brasil. A estratégia de coligar os "pessedistas" com os trabalhistas não avançou. Para a ala radical do PTB e as esquerdas, buscar o apoio do PSD não passava de "política de conciliação". Foi no afastamento entre o centro e a esquerda, marcada por crescente radicalização, que as direitas civis e militares golpistas cresceram.
      No comício de 13 de março, na Central do Brasil, Goulart aliou-se às esquerdas, adotando a estratégia de entrar em confronto com os conservadores. A proposta era a de mobilizar os trabalhadores contra o Congresso, obrigando os parlamentares a aprovar as reformas. Na avaliação de Maria Celina D'Araujo, o projeto reformista incluía a tomada do poder pelos setores mais radicais do PTB.
      Após o comício, Jango apresentou ao Congresso as reformas de base, inclusive a reforma agrária sem indenizações. A partir daí, o conflito entre esquerda e direita se radicalizou ainda mais. Para a cientista política Argelina Figueiredo, as forças da direita sempre estiveram dispostas a romper com a ordem democrática, utilizando-as para defender seus interesses. Mas as esquerdas, por sua vez, também lutavam pelas reformas a qualquer preço, inclusive com o sacrifício da democracia. Dias depois, marinheiros rebelaram-se contra o comando da Marinha de Guerra. A anistia que receberam do governo atingiu a integridade profissional das Forças Armadas. Para os militares, tratava-se da quebra da disciplina e da hierarquia, com apoio governamental. Os oficiais legalistas finalmente cederam aos argumentos de seus minoritários colegas conspiradores. Rapidamente a direita golpista cresceu e ganhou o apoio de amplos setores civis e militares.
      No dia 1 de abril de 1964, o presidente foi deposto. Jango não resistiu ao golpe civil-militar por duas razões. A primeira é que os envolvidos no golpe não imaginavam que uma ditadura se imporia por 21 anos. Pesquisas comprovam que a coligação militar-civil golpista era contra as esquerdas, mas não a favor de ditaduras. Goulart imaginou que o golpe repetiria a trajetória do ocorrido em 1945: o presidente é deposto, conhece o exílio dentro do país e depois retoma os caminhos normais da vida política.
      A segunda razão que o fez desistir da resistência foi sua percepção da extensão do movimento. Participavam do golpe a maioria dos comandos das Forças Armadas, governadores de importantes estados, representantes de meios de comunicação, ampla coalizão partidária no Congresso, empresários e setores das classes médias. Fato mais grave: Jango soube que o governador Magalhães Pinto declararia Minas Gerais em "estado de beligerância", o que permitiria o apoio diplomático e militar dos Estados Unidos.
      Ao saber que uma frota norte-americana estava no litoral brasileiro, tomou a decisão de não resistir. Na sua opinião, iria expor a população a uma guerra civil, com risco até da divisão territorial do país. Na avaliação do jornalista Zuenir Ventura, "Jango teve um dos seus momentos mais bonitos ao evitar aquilo que imaginava que viria a ser uma guerra civil com um milhão de mortos. Conta pontos para ele não querer resistir dessa maneira. Não acho, como muitos achavam e ainda acham, que a atitude de Jango tenha sido covarde, que ele tenha fugido da luta, que ele tenha fugido do país. Chegou um momento em que ele deve ter visto que aquela seria uma luta sangrenta (...). Teve a grandeza de evitar que houvesse muitas mortes".
      Contudo, a partir daí, uma outra história sobre Goulart começou a ser contada. Os militares e civis golpistas vitoriosos amplificaram os insultos que Lacerda lançava contra ele desde 1953: "ignorante", "despreparado", "demagogo" e "corrupto", acrescentando "fraco" e "subversivo". Às ofensas dos direitistas juntaram-se os ataques das esquerdas: "paternalista", "conciliador", "covarde", "traidor da classe trabalhadora", "dúbio e vacilante devido à sua origem de classe". A seguir, setores da intelectualidade brasileira acrescentaram outra palavra ao conjunto de ofensas: "populista". E mais insultos foram formulados: "medíocre", "incompetente", "golpista" e "alcoólatra". Com o passar do tempo, Jango recebeu o desprezo político e acadêmico e foi condenado ao esquecimento. Nos livros didáticos, ele merece duas ou três linhas; na televisão, não aparece; nos jornais, sumiu de vez; nas pesquisas do Ibope, só estão Vargas, Juscelino e Sarney; na pesquisa universitária, surge como a síntese do que havia de pior no "populismo".
      Exilado no Uruguai, Jango sempre se sentiu inconformado com a proibição de seu regresso. Em 1967, Lacerda e Juscelino, deixando de lado os ressentimentos, se uniram a ele na luta pela redemocratização, formando a chamada Frente Ampla. A ditadura, no entanto, declarou a organização ilegal. No início do exílio, Goulart conseguiu dissimular sua tristeza. Mas nos dois últimos anos de vida, abandonado por todos, não tinha como disfarçar a amargura. Não conseguia compreender o ódio que os militares brasileiros lhe dedicavam se, durante sua vida pública, não perseguiu ninguém. Em 1969, sofreu um infarto.
      Com o golpe militar no Uruguai em 1973, passou a sofrer humilhações. No ano seguinte, mudou-se para a Argentina, no momento em que a extrema direita daquele país recorria a atentados. A seguir, a Operação Condor começou a eliminar líderes esquerdistas do continente. Em 1976, Goulart se sentia acuado e decidiu regressar ao Brasil. Na noite do dia 5 dezembro, dormiu com a mulher, Maria Thereza, em sua estância na Argentina. Seu objetivo era acordar, pegar o carro e viajar para São Borja, mesmo correndo o risco de ser preso. Contudo, horas mais tarde, na madrugada do dia 6, Maria Thereza, assustada, percebeu que Jango estava morto, vítima de outro infarto.
      Algumas versões falam em assassinato, por agentes da Operação Condor. Mais prudente é lembrar que Jango era cardíaco. Vale também considerar a avaliação de seu ministro da Justiça, Abelardo Jurema. Para ele, o exílio é uma experiência muito dolorosa e, se o exilado não tiver forças, ele sofre de "mal-triste". "Mal-triste é uma doença que dá no boi que sai de uma região para outra. O boi começa a ficar triste e morre." Jango, em sua avaliação, morreu de "mal-triste". "Ele não aguentou". A ditadura militar, num exemplo de mesquinharia política, quis impedir que seu corpo entrasse no Brasil e fosse sepultado em São Borja. Amigos, políticos do MDB e a população gaúcha se mobilizaram. Seu enterro foi um ato de protesto contra a ditadura. Foi o único presidente da República a morrer no exílio.

Jorge Ferreira é professor de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e organizador do livro O Populismo e Sua História (Civilização Brasileira, 2001)

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional - Edição nº 3 - Setembro de 2005

Saiba Mais – Bibliografia
BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
D'ARAUJO, Maria Celina. Sindicatos, carisma e poder. Rio de Janeiro: Editora da FGV. 1996.
FIGUEIREDO, Argelina. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
OTERO, Jorge. João Goulart. Lembrança do exílio. Rio de Janeiro: Casa Jorge, 2001

Saiba Mais – Links

Saiba Mais – Documentário
Jango
O documentário de Sílvio Tendler acompanha a vida política de João Belchior Marques Goulart (1918-1976), o Jango, de 1950 a 1976, de seu primeiro cargo importante, como Ministro do Trabalho no governo de Getúlio Vargas, até o exílio no Uruguai e Argentina, depois do golpe de 1964. Tendler explora a vida de Jango, gaúcho de São Borja e único presidente brasileiro a morrer no exílio, apresentando imagens de filmes caseiros, documentários antigos, fotos e entrevistas, e, depoimentos importantes, como os do general Antônio Carlos Muricy, de Leonel Brizola, de Aldo Arantes, de Afonso Arinos, de Magalhães Pinto, de Frei Betto, de Celso Furtado, entre outros.
Há uma grande quantidade de imagens inéditas, como as viagens de Goulart à Russia e à China, Jango discursando na ONU,  e do comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, que, antecede ao golpe militar de 31 de março.
Documentário vencedor dos prêmios: Música Original (Milton Nascimento e Wagner Tiso), Melhor Filme (Júri Popular) e Prêmio Especial do Júri, XII Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, RS, 1984. Prêmio Especial do Júri para Documentário, Festival Novo Cinema Latino-Americano, Havana, Cuba, 1984. Melhor Filme do Público, Festival de Nova Delhi, Índia, 1985.
Direção: Sílvio Tendler
Ano: 1984
Áudio: Português
Duração: 115 minutos

"Dossiê Jango"
Documentário reabre a discussão sobre o suposto assassinato do ex-presidente João Goulart, em 1976, e reinterpreta o período mais obscuro da história brasileira. Em clima de thriller político, a trama traz à tona novas informações para a reconstrução dos fatos. Com depoimentos de Carlos Heitor Cony, Flávio Tavares, Ferreira Goulart, Geneton Moraes Neto, João Vicente Goulart e Maria Thereza Goulart, entre outros.
O filme faturou os prêmios de Melhor Documentário pelo Júri Popular no Festival do Rio 2012; Melhor Filme de Longa Metragem pelo Júri Popular no 16º Festival de Tiradentes 2013; Melhor Documentário pelo Júri Popular e Oficial no 17º FAM.
Direção: Paulo Henrique Fontenelle
Ano: 2012
Áudio: Português
Duração: 102 minutos

sábado, 24 de junho de 2017

A guerra do vintém

Exploradas por militantes republicanos, manifestações contra taxa sobre transporte urbano tumultuam capital do Império e deixam mortos e feridos pelas ruas.
José Murilo de Carvalho
      No dia 28 de dezembro de 1879, a capital do Império viu algo inédito desde 1863, quando o Brasil rompeu relações com a Inglaterra por conta da Questão Christie: a multidão protestando na rua. A manifestação aconteceu no campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, em frente ao palácio imperial. Cerca de cinco mil pessoas, lideradas por um militante republicano, o médico e jornalista Lopes Trovão, reuniram-se para entregar a d. Pedro II uma petição solicitando a revogação de uma taxa de 20 réis, um vintém, sobre o transporte urbano, ou seja, bondes puxados a burro. O vintém era moeda de cobre, a de menor valor da época. A polícia não permitiu que a multidão se aproximasse do palácio. Enquanto os manifestantes se retiravam, o imperador mandou dizer que receberia uma comissão para negociar.
     Mas Lopes Trovão e outros militantes republicanos, buscando tirar o máximo proveito político da ação da polícia, recusaram o encontro. Divulgaram um manifesto dirigido ao soberano, convocando-o a ir ao encontro do povo. A Gazeta da Noite de Lopes Trovão e panfletos distribuídos pela cidade passaram a pregar o boicote da taxa e a incitar a população a reagir com violência, arrancando os trilhos dos bondes. Outra manifestação foi convocada para o dia 1º de janeiro, data da entrada em vigor da taxa, agora no centro da cidade, no Largo do Paço, hoje Praça 15 de Novembro.
     Nesse dia, a taxa estava sendo paga até que, ao meio dia, a multidão se reuniu no local previsto. Percebendo talvez a enrascada em que se metera, Lopes Trovão não incitou a multidão à ação. A massa moveu-se, então, pelas ruas do centro aplaudindo as redações dos jornais de oposição e se dirigiu ao Largo de São Francisco, ponto final de várias linhas de bonde. Em frente ao prédio da Gazeta da Noite, o próprio Trovão fez um apelo aos manifestantes para que se dispersassem. Mas àquela altura ele já perdera o controle dos acontecimentos. A massa popular concentrou-se nos arredores da Rua Uruguaiana e do Largo de São Francisco. O delegado que comandava as tropas da polícia pediu reforços ao Exército, mas, antes que a ajuda chegasse, ordenou à polícia que dispersasse a multidão a cacetadas.
     A um grito de “Fora o vintém!”, os manifestantes começaram a espancar condutores, esfaquear mulas, virar bondes e arrancar trilhos ao longo da rua Uruguaiana. Dois pelotões do Exército ocuparam o Largo de S. Francisco, postando-se parte da tropa em frente à Escola Politécnica, atual prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. O povo, que só detestava a polícia, aplaudiu a tropa. Mas alguns mais exaltados passaram a arrancar paralelepípedos e atirá-los contra os soldados. Por infelicidade, um deles atingiu justo o comandante da tropa, tenente-coronel Antônio Enéias Gustavo Galvão, primo de Deodoro da Fonseca, militar que uma década depois se tornaria o primeiro presidente do Brasil. O oficial descontrolou-se e ordenou fogo contra a multidão.
     As estatísticas de mortos e feridos são imprecisas. Falou-se em 15 a 20 feridos e em três a dez mortos. Entre os últimos, estavam estrangeiros e o flautista Loló, condutor da Cia. de São Cristóvão, atingido por uma pedrada. A multidão dispersou-se e, salvo pequenos distúrbios nos três dias seguintes, estava findo o motim do vintém. A cobrança da taxa passou a ser quase aleatória. As próprias companhias de bondes pediam ao governo que a revogasse. Desmoralizado, o ministério caiu a 28 de março. O novo ministério revogou o desastrado tributo.
     A capital do Império estava acostumada a distúrbios de rua. Vivera em quase permanente agitação entre 1820 e 1840. Nessa última data, o povo exigiu na rua a maioridade do imperador. A partir daí, no entanto, refletindo a estabilização política do Segundo Reinado, reduzira-se muito a agitação. A tranquilidade das ruas só fora quebrada nos protestos contra Christie, quando a multidão, liderada por Teófilo Otoni, ameaçou comerciantes ingleses e aplaudiu a ação do imperador. O que a trouxe de volta em 1879?
     Em 1878, depois de 10 anos de domínio conservador, subira ao poder o gabinete liberal de Sinimbu, encarregado de fazer a reforma eleitoral. Dividido por conflitos internos, desagradou a gregos e troianos. Os republicanos estavam furiosos com Lafaiete Rodrigues Pereira, ministro da Justiça, que assinara o Manifesto Republicano de 1870, e agora se bandeava para o campo liberal. A principal fonte de insatisfação, no entanto, vinha da política fiscal do ministro da Fazenda, Afonso Celso de Assis Figueiredo, futuro visconde de Ouro Preto, que tinha fama de excelente administrador e financista. Para enfrentar as dificuldades financeiras geradas pelos enormes gastos com a grande seca de 1877 no norte do país, propôs ele no projeto de lei orçamentária de 1879, aprovado pela Câmara, vários aumentos de impostos antigos e a introdução de alguns novos. Atingiu o bolso de todos, proprietários de escravos, aspirantes a títulos nobiliárquicos, fumantes, amantes do vinho, comerciantes e simples cidadãos. As medidas mais irritantes foram o novo imposto sobre vencimentos dos funcionários públicos, o antepassado do imposto de renda, e a taxa de um vintém sobre o valor das passagens no transporte urbano.
     O novo imposto e a taxa atingiram diretamente duas categorias, os funcionários públicos e os usuários de bondes. Em 1870, a capital tinha 192 mil habitantes na área urbana, dos quais 11 mil funcionários públicos, entre civis, militares e eclesiásticos, já que naquela época o catolicismo era a religião oficial do Estado. Havia quatro grandes companhias de ferro-carris urbanos, ou de bondes, como ficaram conhecidos: a Botanical Garden Co., que cobria a zona sul, saindo da rua Gonçalves Dias, a Cia. de São Cristóvão, concentrada na zona norte, com ponto final no Largo de São Francisco,  a Ferro-carril de Vila Isabel, que partia da Praça Tiradentes, e a Cia. de Carris Urbanos, que atendia ao centro, incluindo a zona portuária.
     O bonde era um transporte de massa. Cada carro, puxado por animais sobre trilhos, transportava 30 passageiros. Só as três primeiras companhias acima listadas transportaram em 1879 mais de 20 milhões de passageiros. É óbvio que a taxa do vintém jogava muita gente contra o governo, sobretudo contra o Afonso Vintém, como ficou conhecido o ministro da Fazenda. Para atingi-los, foram atacadas no dia primeiro as companhias de bondes, com exceção da Botanical Garden, de propriedade norte-americana, que se prontificou a pagar ela mesma a taxa.  
     Desse clima de insatisfação, tiraram vantagem os agitadores republicanos. Ao que parece, na demonstração de São Cristóvão estavam presentes, sobretudo, pessoas de melhor situação social, certamente muitos funcionários públicos. Na do dia 1º, teria entrado em ação a massa dos usuários mais pobres, acrescida da tropa barra-pesada do centro e da zona portuária. Não por acaso, os líderes do movimento perderam o controle da multidão nesse dia. 
     Embora legal, a taxa do vintém era profundamente impolítica, como se dizia na época. O ministro fora alertado para as possíveis reações. Mas Afonso Celso era tão competente quanto teimoso. Pagou por isso alto preço em 1880, como pagaria em 1889, por ocasião da proclamação da República. A reação da polícia foi infeliz em 28 de dezembro, ao não negociar a audiência com o imperador, e imprudente em 1º de janeiro. A do Exército, simplesmente desastrada.
     Os acontecimentos chocaram o Imperador. Em cartas à condessa de Barral e ao conde de Gobineau, afirmou que em 40 anos de reinado nunca tinha sido usada a força contra o povo da capital do Império. Não lhe escapou mesmo a conotação republicana dos incitadores do motim. Afirmou à condessa que seria mais feliz como presidente de uma república.
     Mas a revolta não foi republicana, afirmaram seus próprios líderes. Muitos interesses feridos nela se fundiram, de grandes e de políticos, de gente miúda e de simples cidadãos. Uma grande explosão social, detonada por um pobre vintém.

José Murilo de Carvalho é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro da Academia Brasileira de Letras, do IHGB e da Academia Brasileira de Ciências e autor de D. Pedro II: ser ou não ser. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

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sábado, 27 de maio de 2017

Retrato de um rei

Apesar dos seus defeitos, d. João VI enfrentou tempos difíceis, revelou habilidade política e não merecia tornar-se objeto de chacotas
Lúcia Maria Bastos P. Neves e Guilherme Pereira das Neves
      Ainda há alguns anos, o filme Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (1995), de Carla Camuratti, encarnou d. João em um Marco Nanini balofo e tolo, mais preocupado com os franguinhos que devorava sem cessar do que com os negócios de Estado. Muito difundida, essa imagem tendeu a ser favorecida pelo físico ingrato do personagem, pouco condizente com a figura de um soberano. D. João era baixo e gordo, de coxas roliças, sem qualquer distinção no rosto ou no olhar. Além disso, o lábio inferior proeminente acentuava uma expressão desgraciosa. Tendo ascendido à condição de herdeiro da Coroa portuguesa somente por força da morte do irmão primogênito, não se beneficiara da educação esmerada de que este fora objeto, nem tinha inclinação para tal. No entanto, como o filho Pedro, futuro imperador do Brasil, não era o ignorante que se costuma julgar. Embora fosse avesso aos feitos militares e às festas brilhantes da corte, na juventude apreciava cavalgar e, durante a vida toda, amou a música, como a maioria dos Bragança. Espírito retraído, indeciso por natureza, seu reinado ocorreu num período de intensa turbulência econômica, política e social, que deu origem ao mundo contemporâneo, obrigando-o a tomar decisões importantes e evitar consideráveis obstáculos.
      D. João nasceu em 1767. Em 1785, casou-se com uma infanta espanhola, a turbulenta Carlota Joaquina, dez anos mais moça, de cuja união vieram à luz nove filhos, ainda que provavelmente não fosse o pai dos últimos. Seu relacionamento conflituoso com Carlota Joaquina levou-o eventualmente à separação de corpos e a um antagonismo crescente sobretudo após a chegada ao Brasil. Aos 25 anos, em 1792, a doença mental de sua mãe, d. Maria I, exigiu que d. João assumisse a regência.
      Portugal, como toda a Europa, vivia então o impacto causado pela Revolução Francesa (1789), logo ampliado, em janeiro de 1793, pela execução do rei Luís XVI. Como resultado, assumiram maior visibilidade os setores conservadores, que se opunham às reformas iniciadas pelo marquês de Pombal (1750-1777) e que, bem ou mal, tinham prosseguido no reinado de d. Maria I, favorecendo a difusão das novas ideias características do século XVIII, as Luzes. Em termos internacionais, obcecado pelo fantasma da União Ibérica (1580-1640), ainda que longínquo, Portugal, tradicional aliado da Inglaterra, temia sobretudo que uma aproximação da Espanha com a França pudesse colocar sua existência em xeque.
      Diante dessa situação, as atitudes de d. João até 1807 mostraram se ambivalentes. No plano interno, manteve o gabinete herdado de sua mãe, recusou a convocação de cortes para referendarem sua regência, oficializada em 1799, e, diante da conjuntura revolucionária, reforçou a censura e a repressão, mas não deixou de apontar na direção das reformas. Realizou melhorias urbanas em Lisboa, inaugurou a Biblioteca Pública e, em 1796, indicou Rodrigo de Souza Coutinho, que servira vinte anos como representante português em Turim e estava a par de todas as novidades do pensamento da época, para seu secretário da Marinha e Ultramar.
      Cercado por auxiliares naturais da América portuguesa, d. Rodrigo considerava que a existência de Portugal dependia de seu império ultramarino e sobretudo do Brasil. Para evitar que ele seguisse o caminho apontado pela independência das antigas colônias inglesas que em 1776 tornaram-se os Estados Unidos da América, achava indispensável a adoção de medidas racionalizadoras, que aliviassem as obrigações sobre os colonos e estreitassem seus laços com a metrópole, de acordo com a concepção de um grande império luso-brasileiro unindo a colônia à metrópole. Contudo, d. João foi incapaz de sustentar as iniciativas de seu brilhante ministro d. Rodrigo, que se viram em grande parte tolhidas pela enferrujada máquina administrativa lusa e pela oposição dos setores mais conservadores, temerosos de qualquer ideia nova.
      No plano externo, embora Portugal, carente de recursos militares adequados, procurasse manter posição de neutralidade, as guerras no continente europeu geraram um dilema. Conservar a aliança britânica implicava a possibilidade de se ver envolvido no conflito e acabar invadido pela Espanha, como se esboçou em 1801 com a chamada Guerra das Laranjas, em que foi perdida a praça de Olivença. Aproximar-se da França, por outro lado, significava correr o risco de a Inglaterra, com sua esquadra, cortar as relações com o Brasil e até mesmo invadi-lo. Em função dessa situação, formaram-se na corte dois partidos. Inicialmente, predominaram os anglófilos, liderados por d. Rodrigo. Com a ascensão de Napoleão Bonaparte a partir de 1799 e suas campanhas militares vitoriosas, Antônio de Araújo de Azevedo, futuro conde da Barca, o chefe dos francófilos, assumiu um papel cada vez mais preponderante, vindo a substituir d. Rodrigo, em 1803.
      Desse momento em diante, o príncipe regente passou a andar numa espécie de corda bamba. No ambiente da corte, multiplicaram-se as intrigas palacianas, promovidas em parte por sua própria esposa, valendo-se de seus contatos espanhóis e de suas ligações com os setores mais retrógrados do reino. Motins na tropa em 1803 e uma conspiração fracassada, em 1805, para remover d. João da regência, colocando Carlota Joaquina em seu lugar, indicam o grau de tensão a que se chegou. Na diplomacia, as seguidas concessões à França tornavam cada vez mais delicada a aliança com a Inglaterra. Em 1806, a decretação do bloqueio continental por Napoleão deixou Portugal ainda mais vulnerável.
      Esquivando-se, como era seu costume, d. João adiou uma decisão até o último momento. No entanto, a assinatura em outubro de 1807 do Tratado de Fontainebleau entre a França e a Espanha e um ultimato de Bonaparte, seguido pela concentração de tropas francesas na fronteira espanhola, obrigaram-no a escolher uma saída há muito aventada pelo padre Antônio Vieira, nos tempos difíceis da Restauração de 1640, e agora defendida por d. Rodrigo, o anglófilo, que voltava a ter grande influência: a retirada da corte para o Brasil. Embora forçada pelo avanço dos soldados napoleônicos sobre Lisboa, a decisão não foi assim imprevista. No dia 29 de novembro de 1807, a esquadra portuguesa, com 36 navios abrigando o corpo burocrático, arquivos, móveis e utensílios, um prelo tipográfico e cerca de 15 mil pessoas, zarpou, sob escolta inglesa, rumo ao Rio de Janeiro. As consequências seriam de longo alcance para as regiões portuguesas de ambos os lados do Atlântico.
      No Rio de Janeiro, os contemporâneos saudaram a chegada de d. João como um "dia memorável", em que começava a brilhar em toda a América portuguesa "a aurora da felicidade, prosperidade e grandeza", pois o "bondoso soberano" viera criar um "grande Império". De fato, a presença de d. João, o primeiro rei europeu a pisar no Novo Mundo, emprestava, no imaginário da época, uma outra dimensão ao projeto de império luso-brasileiro de d. Rodrigo, que voltara a integrar o gabinete, nele permanecendo até sua morte em 1812. Ao tornar-se o Brasil sede da Monarquia e cabeça do Império, Portugal ficava reduzido à condição de simples domínio e sem o monopólio do comércio entre as duas regiões por efeito da abertura dos portos às nações amigas, decretada em 1808, durante a curta escala da corte na Bahia, e dos tratados de 1810 com a Inglaterra.
      Do outro lado do Atlântico, foi difícil avaliar a situação até 1811, quando as tropas francesas abandonaram definitivamente o reino. Não obstante, a orfandade ocasionada pela partida do príncipe, se motivou em alguns segmentos anseios sebastianistas (isto é, de júbilo pela volta do rei, tal como no passado se esperava o retorno de d. Sebastião, morto numa batalha em 1578), em outros reavivou antigas insatisfações, levando membros da alta nobreza a compactuar com os franceses e a propor que a coroa fosse assumida por Junot, o general invasor, antigo ajudante de ordens de Napoleão. Contidas pelas autoridades britânicas, que assumiram nos anos seguintes o virtual controle do país, essas tendências revelam a posição delicada de d. João em seu refúgio americano.
      Com a derrota de Napoleão e a paz na Europa, a reunião do Congresso de Viena para reorganizar o mapa do continente, em 1815, inaugurou uma nova conjuntura. Do Rio de Janeiro, a política adotada por d. João continuou assumindo um caráter oscilante ou bifronte, na expressão do historiador português Valentim Alexandre. De um lado, tratava-se de preservar a posição de Portugal no concerto das nações europeias e recuperar a praça de Olivença, tomada pela Espanha; mas, de outro, cabia atender aos interesses americanos, intervindo militarmente na Cisplatina (atual Uruguai), em 1816, para forçar as negociações na Europa, resistindo às pressões inglesas para abolir o tráfico de escravos e assegurando a manutenção da fronteira norte do Brasil contra as pretensões francesas no Amapá, para o que servia de moeda de troca a Guiana ocupada desde 1808. Nesse tabuleiro de xadrez, jogado a distância por d. João e seus ministros, a maioria dos objetivos foi alcançada, mas não foi possível evitar que as tensões aumentassem.
      Com a finalidade de reforçar a posição portuguesa nas negociações em Viena, o Brasil fora elevado a Reino Unido a Portugal e Algarves, em 16 de dezembro de 1815. Somado esse fato à recusa de d. João de retornar à Europa, motivada por sua notória aversão a tomar uma decisão e pela opinião corrente nos círculos do poder no Rio de Janeiro de que era preferível conservar-se como uma potência no Novo Mundo a sujeitar-se à condição de satélite de terceira ordem da Inglaterra, ficava evidente que a corte enraizava-se na América. No Brasil, porém, a revolta de Pernambuco em 1817 revelou que o processo gerava crescentes tensões entre as províncias e o Rio de Janeiro, enquanto, em Portugal, uma reação fez-se sentir, no mesmo ano, com a conspiração de cunho liberal liderada por Gomes Freire de Andrada.
      Contra esse pano de fundo, após o falecimento de d. Maria I em 1816 ocorreu a aclamação de d. João como rei de Portugal, Brasil e Algarves, no início de 1818. Tratava-se de uma cerimônia inédita na América, que reforçava o peso político da parte brasileira no império português e a ascendência do Rio de Janeiro sobre o restante do reino brasileiro. Melindrado, o jornal O Português passou a denominar a corte no Brasil de "governo Tupinambá". Seguiram-se medidas paliativas para tirar Portugal do abatimento econômico em que jazia. Sem resultado. Em 24 de agosto de 1820, um movimento conhecido como Regeneração Vintista propunha, a partir do Porto, mas logo ganhando Lisboa e o restante do território português, o fim do Antigo Regime, a convocação de cortes para a elaboração de uma constituição e o restabelecimento do lugar que Portugal julgava merecer no interior do império.
      Como sempre indeciso, d. João VI ainda hesitou em retornar a Portugal, (onde era convocado), e aventou a possibilidade de enviar o filho para Lisboa e permanecer na América, de modo a preservar as instituições do Antigo Regime. Também pesava o gosto pelo Brasil que adquirira nos 13 anos passados no Rio de Janeiro. Mas acabou cedendo. Embarcou em abril de 1821, quando o movimento constitucional já alcançara o Brasil, dando início ao processo de independência, que seria conduzido, em grande parte, por seu filho d. Pedro, conforme d. João desejara. Em Lisboa, passou a enfrentar a oposição das cortes, que, embora o reconhecessem como monarca, o queriam submisso, já que agora eram elas as detentoras da plena soberania. Em maio de 1823, contudo, um movimento militar chamado da Vila Francada restabeleceu o absolutismo em Portugal e, novamente, d. João VI se viu às voltas com as intrigas de Carlota Joaquina e do filho caçula, d. Miguel, preferido da mãe, absolutista empedernido, que promoveram um outro golpe, em 1824. Desgastado, após reconhecer a independência do Brasil no ano seguinte, faleceu em 1826, aos 59 anos, deixando o reino à beira de uma guerra civil, que colocaria em campos opostos os dois irmãos, d. Pedro e d. Miguel, e contribuiria para a abdicação do primeiro imperador do Brasil e para a crise das regências.
      Essa trajetória não faz de d. João VI, certamente, um estadista de larga visão e profundas iniciativas. Mas, apesar disso, como observou Oliveira Lima, o historiador que melhor o compreendeu, se não foi um grande soberano, de quem se podem exaltar "brilhantes proezas militares ou golpes audaciosos de administração", revelou-se um rei que soube combinar dois predicados: "um de caráter, a bondade; o outro de inteligência, o senso prático de governar". Sua seriedade e aplicação na rotina burocrática da administração política joanina, e também as transformações que promoveu no Rio de Janeiro com a mudança da fisionomia urbana, o incremento do comércio, os inícios de uma vida cultural, a introdução da imprensa e de novos hábitos, como os banhos de mar a 200 réis em balsas flutuantes fundeadas na baía da Guanabara defronte ao Paço, talvez tenham sido os fatores responsáveis pelo lugar que sua figura veio a ocupar no imaginário dos brasileiros, como salientou o antropólogo Roberto DaMatta. Por isso, torna-se preocupante que o filme Carlota Joaquina, Princesa do Brasil tome d. João VI, sem qualquer fundamento, para objeto de chacota, desprezando as muitas facetas positivas desse personagem enredado em um período decisivo da nossa história.

Lúcia Maria Bastos P. Neves e Guilherme Pereira das Neves são professores, respectivamente, dos departamentos de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense.

Fonte – Revista Nossa História - Ano I nº 1 - Nov. 2003

Saiba Mais – Bibliografia
LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil. 3a ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
MARQUES, A. H. de Oliveira. D. João VI. In: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. D. João VI e o seu tempo: Catálogo da Exposição no Palácio Nacional da Ajuda (maio-julho 1999). Lisboa. 1999.
NEVES, Guilherme P. D. João VI. In: R. Vaínfas (dir.). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
TOSTES, Vera Lúcia Bottrel (ed.). Anais do seminário internacional - D. João VI, um rei aclamado na América. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000.

Saiba Mais – Links

Saiba – Mais - Filme 
Carlota Joaquina
O filme conta, satiricamente, parte da história da monarquia portuguesa, e a elevação do Brasil, de colônia do império ultramarino português, a reino unido com Portugal. Também faz referências a monarquia espanhola. A morte do rei de Portugal D. José I de Bragança, em 1777, e a declaração de insanidade da filha herdeira do precedente, a rainha D. Maria I, em 1792, levam seu filho, o então príncipe D. João de Bragança e sua esposa, a infanta espanhola Carlota Joaquina de Bourbon, ao trono real português. Em 1807, para escapar das tropas napoleônicas que invadiam Portugal, a corte portuguesa e o casal transferem-se às pressas para o Rio de Janeiro, onde a família real e grande parte da nobreza portuguesa vivem exiladas por 13 anos. Na colônia aumentam os desentendimentos entre Carlota Joaquina e D. João VI, que após a morte da mãe, D. Maria I, deixa de ser príncipe-regente e torna-se rei de Portugal e, posteriormente, rei do reino unido de Portugal, Brasil e Algarves
Direção: Carla Camurati
Ano: 1995
Áudio: Português
Duração: 100 minutos

Saiba Mais - Documentário
A Corte no Brasil
Reportagem: Sandra Moreyra e Mônica Sanches
Ano: 2009
Áudio: Português
Duração: +- 20 minutos (cada episódio)




1º episódio – A fuga dos Reis – 
O Tejo tema de tantos e poemas, ponto de partida das viagens que levaram aos grandes feitos e descobertas dos navegadores lusitanos, foi testemunha de um embarque inusitado 200 anos atrás.

2º episódio – Nobreza e política  No início do século XIX, a amizade entre Portugal e Inglaterra já tinha 500 anos. A mais duradoura aliança entre dois países. Parceiros no comércio navegavam juntos contra os piratas e os inimigos.

3º episódio – Um reino sem Rei – Um povo abandonado. Depois da partida da família real a dor tomou conta dos portugueses. Uma tristeza do fado, este sentimento de orfandade, faz parte da história de Portugal.

4º episódio – A travessia Ha 2900 km do Brasil, uma ilha vulcânica se ergue no meio do Oceano Atlântico. Na Santa Helena, um Napoleão derrotado pelos ingleses, dita suas memórias a dois companheiros, Admite que a invasão da Península Ibérica foi um erro, reconhece que o príncipe D.João de Portugal, foi o único que conseguiu enganá-lo, quando embarcou para o Brasil.

5º episódio – Chegada à Bahia A viagem da corte portuguesa, já durava quase dois meses desde a partida no porto de Lisboa em Novembro de 1807. Um típico por de sol em Salvador, fez o soldado de plantão no forte, no dia 21 de janeiro de 1808, levar um grande susto e correu para contar a novidade. Ao norte, quatro embarcações que parecia ser de guerra se aproximavam, a primeira no horizonte tinha a bandeira da Inglaterra. João de Saldanha da Gama, o conde da Pontem governador geral da Bahia recebeu a notícia e ficou em pânico. No diário que escreveu, ele relata o medo de uma invasão inglesa até o outro de que as outras naus eram portuguesas e uma trazia o pavilhão real.

6º episódio – O desembarque no Rio de Janeiro O brique voador era a nau mais veloz da frota portuguesa. A tripulação do voador fora designada uma importante missão. Chegar ao Brasil o quanto antes. O voador partiu de Portugal na véspera do embarque da corte. No navio seguiam documentos, com algumas decisões do príncipe regente D. João, um comunicado que ia deixar o Rio de Janeiro em polvorosa.

7º episódio – A economia do tempo de D. João  O Brasil já era a economia do futuro em 1808. Um território imenso a ser explorado, o interior ainda desconhecido, um extenso litoral com portos apropriados para o comércio. Um mercado consumidor praticamente vigente. Ansioso para receber novidades estrangeiras. Muitas eram as possibilidades e infinitas as dificuldades para o governo de D. João.

8º episódio – A política no tempo de D. João  No tempo de D. João, governar Portugal era viver na defesa. Temer constantemente os vizinhos, maiores, mais fortes e poderosos. No Brasil o soberano destas vastas terras, descobriu que havia uma enorme diferença. Naquela época, tamanho era documento, a conquista de territórios, uma carta na manga, para negociar a qualquer momento em períodos de guerra ou quando chegasse a paz.

9º episódio – A corrupção No Brasil colonial ostentar riqueza era proibido. Nas roupas, nada de tecidos nobres ou ricos bordados, nas casas muita simplicidade. Tudo isso mudou com a chegada da corte. O luxo nas festas, os gastos descontrolados, a troca de favores, a burocracia aliada a corrupção, tinham exemplos que vinham de cima, do trono e dos fidalgos que cercavam a monarquia aqui instalada.

10º episódio – Arte e ciência, o Reino do saber  Quando Napoleão perdeu a guerra, a família real portuguesa não voltou para a Europa. O Brasil naquela altura dos acontecimentos, tinha se tornado o melhor lugar para se chamar de lar, onde sede do Império Colonial Português. Faltava apenas arrumar a casa, enfeitar o Rio de Janeiro, dar uma sofisticação a este reino tropical, foi o que fez D. João.

11º episódio – Templo dos livros e da música  As catedrais e as bibliotecas são até hoje templos imponentes em Portugal. Em 1808, na nova corte do Rio de janeiro, D. João fez que são de cultivar as duas paixões da Família Bragança. Quando voltou para Lisboa, deixou os tesouros na Real Biblioteca no Rio de Janeiro. Enquanto viveu no Brasil contratou músicos, maestros e cantores trouxe atrações internacionais. Duzentos anos atrás, encontramos as raízes das nossas bibliotecas públicas e da música brasileira.

12º episódio – O retorno da corte A família de D. João VI, viveu uma saga surpreendente até os momentos finais. O Rei não queria deixar o Rio de Janeiro, em Lisboa a rainha Carlota Joaquina e seu filho, príncipe Miguel, comandaram um governo de terror. Duas crianças, filhos de D. Pedro, receberam as coroas do Brasil e de Portugal. Duzentos anos depois com o fim da monarquia no Brasil, ficaram os herdeiros do trono que não existe mais.