“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 28 de setembro de 2014

O petróleo é nosso!

Debates que antecederam a criação da Petrobrás, em 1953, desencadearam uma das maiores mobilizações populares da história do país
Sérgio Lamarão
     Marcam a origem da Petrobrás os tensos debates sobre os rumos do desenvolvi­mento do Brasil da segunda metade da década de 1940. Na época, duas correntes se destacaram. De um lado, os desenvolvimentistas, que defendiam a intervenção do Estado na econo­mia, tanto nos setores de infraestrutura quanto na­queles em que o capital privado, por falta de recur­sos ou tecnologia, não tivesse condições de atuar. A segunda corrente defendia a aplicação de princípios do liberalismo econômico, sendo contrária ao in­centivo do Estado à indústria nacional e favorável ao amplo ingresso de capitais estrangeiros na eco­nomia brasileira.
    A Constituição de 1946 havia estabelecido que as riquezas do subsolo pertenciam à União. Sua exploração dependeria de concessão federal a brasileiros ou "sociedades organizadas no país", expressão vaga o suficiente para incluir empresas estrangeiras, já que o texto não limitava a concessão a brasileiros natos. No início de 1947, uma comissão foi encarre­gada de rever as leis existentes, à luz da nova Constituição, e determinar diretrizes para a explo­ração do petróleo no país. Enviou-se um anteprojeto de lei ao Congresso para discussão, mas em um ponto havia consenso: o conteúdo nacionalista e estatizante da legislação estadonovista teria de ser ra­dicalmente alterado.
     De acordo com o anteprojeto, conhecido como Estatuto do Petróleo, o Conselho Nacional do Petróleo (CNP), criado em 1938, continuaria a re­gular o setor. Os fundos para exploração, produção e refinamento viriam de fontes internas e de em­préstimos de governos estrangeiros. O refinamento e o transporte ficariam a cargo de empresas públi­cas ou companhias mistas, nas quais as empresas es­trangeiras poderiam deter até 40% do capital. Uma vez atendidas as necessidades internas de abastecimento, as empresas internacionais poderiam expor­tar o petróleo ou seus derivados.
     A intenção do governo era montar uma indústria nacional de petróleo com tecnologia e recursos externos, atendendo assim a todos os interesses. Mas isto não foi possível: os trustes estrangeiros queriam uma legislação que lhes permitisse o controle majo­ritário no refinamento e no transporte, e liberdade quanto ao abastecimento do mercado externo. Já os defensores da solução estatizante e os que apoiavam o capital privado nacional temiam que as grandes companhias acabassem controlando a indústria brasileira de petróleo, em função de seu poder eco­nômico e da pressão política dos Estados Unidos.
     Em 1947, enquanto a comissão ainda discutia o assunto, o confronto entre liberais e desenvolvimentistas tornou-se público. Os militares tomaram a iniciativa de discutir a política do petróleo, promo­vendo uma série de conferências no Clube Militar. O primeiro conferencista foi o general Juarez Távora, ligado aos militares que davam sustentação ao governo Dutra. Defendendo a tese da "coopera­ção internacional", Távora considerava que o Brasil, carente de recursos técnicos e financeiros, deveria aproveitar o interesse dos Estados Unidos em ex­pandir seus negócios na área de petróleo, oferecen­do atrativos para que as empresas norte-americanas aqui se instalassem. Ele também se referiu a motivos de ordem militar e estratégica, como a necessidade de defesa do continente contra o perigo comunista.
     O principal opositor de Juarez Távora foi o gene­ral Júlio Caetano Horta Barbosa, ex-presidente do CNP, para quem o problema do petróleo deveria ser encarado como uma questão de soberania nacional e segurança militar, o que tornava indispensável o monopólio estatal. As teses de Távora eram respal­dadas por oficiais ligados à Escola Superior de Guerra e veteranos da Segunda Guerra Mundial, que naturalmente se identificavam com os modelos de organização norte-americanos. Mas a maioria dos oficiais apoiava as ideias de Horta Barbosa, preocupados sobretudo em manter a soberania so­bre os recursos naturais brasileiros.
     A polêmica em torno desses debates foi o ponto de partida para uma das maiores mobilizações populares da história do país. Reunindo militares, tra­balhadores, intelectuais, políticos e estudantes, a campanha "O petróleo é nosso" ganhou as ruas com o intuito de combater o Estatuto do Petróleo. Em fevereiro de 1948, quando o documento foi apre­sentado no Congresso, os partidários do monopólio estatal já se estavam organizando. Em abril, funda­ram, no Rio de Janeiro, o Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional (CEDPEN), com o objetivo de coordenar a luta. Em setembro, a entidade promoveu a Ia Convenção Nacional de Defesa do Petróleo.
     Os discursos pronunciados na sessão inaugural, realizada na Associação Brasileira de Imprensa, reiteravam a necessidade de o país resistir às investidas dos trustes internacionais e basear a exploração no controle estatal. Ao final da sessão, os cerca de 300 participantes se dirigiram à Cinelândia, onde depositaram flores junto à estátua do marechal Floriano Peixoto. Apesar de a marcha ter sido violentamente dispersada pela polícia, os trabalhos prosseguiram, adotando-se, inclusive, no encerramento da con­venção, a tese do monopólio estatal para todas as fa­ses da indústria do petróleo.
     Em maio de 1948, Dutra encaminhou ao Con­gresso o chamado Plano SALTE, que, na prática, ve­dava o setor petrolífero ao capital estrangeiro, mas não às empresas privadas nacionais. Essa postura aguçou a luta entre os setores nacionalistas da buro­cracia estatal e os empresários brasileiros, que desde 1945 tentavam construir uma refinaria em Manguinhos, no Rio de Janeiro, e outra em Capuava, próxima de São Paulo.
     Em 1951, o arquivamento do Estatuto do Petróleo na Câmara dos Deputados tornava urgente a definição de um planejamento nacional para o setor. Devido ao extraordinário crescimento do transporte rodoviário, o consumo de derivados entre 1945 e 1950 praticamente triplicou. Fora isso, excetuando a inauguração da refinaria de Mataripe (BA), a criação da Frota Nacional de Petroleiros, em 1950, e a descoberta de alguns campos novos no Recôncavo Baiano, havia pouco o que comemorar no setor petrolífero.
     Esse foi o quadro encontrado por Getúlio Vargas ao voltar à Presidência, em janeiro de 1951, dessa vez pelo voto popular. Seu retorno trouxe uma pro­funda revisão da orientação econômica adotada pe­lo governo Dutra. Atribuindo uma importância de­cisiva à industrialização, o novo governo apostava na maior intervenção do Estado na economia, so­bretudo em energia, transporte e indústrias de base.
     Em dezembro de 1951, o Executivo enviou ao Congresso o projeto de lei propondo a criação da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobrás, então com acento agudo no a), empresa de economia mista com con­trole majoritário da União. O projeto não estabele­cia o monopólio estatal: permitia que até um déci­mo das ações da empresa pertencesse a estrangeiros, contrariando assim uma das principais teses nacio­nalistas. Neste ponto, obedecia à Constituição de 1946, que limitava a brasileiros natos a exploração do subsolo, mas estendia a prerrogativa às empresas organizadas no país, dando margem à participação acionária de grupos estrangeiros.
     Depois de examinado pelas comissões técnicas parlamentares, o projeto foi enviado em maio de 1952 ao plenário da Câmara. Nas ruas, a União Nacional dos Estudantes e o CEDPEN relançaram o slogan "O petróleo é nosso". A campanha ganhou um indisfarçável ar de contestação a Vargas, denunciado como "aliado do imperialismo" por comunistas e militares nacionalistas. Vargas contra-atacou. Em 23 de junho, em discurso pronunciado em Candeias, centro petrolífero da Bahia, chamou os udenistas de "conhecidos advogados dos monopólios econômi­cos estrangeiros" e os comunistas de "arautos dum falso nacionalismo que mal encobre uma filiação ideológica, visando novos imperialismos".
     Ainda em junho, a polícia reprimiu a tiros um co­mício realizado no centro do Rio de Janeiro, e em ju­lho foi proibida a realização da 3a Convenção Nacio­nal de Defesa do Petróleo convocada pelo CEDPEN. Mas, com os protestos da oposição, o governo voltou atrás e a convenção acabou sendo realizada.
     Pressionado pela opinião pública, Vargas optou fi­nalmente pelo monopólio estatal, autorizando a abertura das negociações no Congresso. Em 21 de se­tembro, o projeto foi aprovado em sua redação definitiva. Em 3 de outubro de 1953, depois de sete anos de luta e de intensa mobilização popular, Vargas san­cionou a Lei n° 2.004, que criava a Petróleo Brasileiro S.A. - Petrobrás, empresa de propriedade e controle totalmente nacionais, com participação majoritária da União, encarregada de explorar, em caráter mono­polista, diretamente ou por subsidiárias, todas as eta­pas da indústria petrolífera, menos a distribuição.
     Nascia assim, há pouco mais de 50 anos, essa holding hoje pujante, que é também símbolo dos ideais nacionalistas de várias gerações de brasilei­ros. A Petrobrás é hoje a maior empresa do Brasil e a 15a do mundo, na área de petróleo. Fruto de deci­são política, sua criação corresponde também, so­bretudo, a um dos raros momentos na nossa histó­ria em que o interesse da nação prevaleceu sobre os propósitos de grupos políticos e empresariais.

Sérgio Lamarão é pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas.

Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 04 – Fevereiro/2004

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sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Passagem para o purgatório

Segundo uma velha tese, o Brasil foi colonizado por criminosos, uma escória condenada em Portugal ao degredo nos trópicos. Os documentos revelam, no entanto, que não foi bem assim.
Geraldo Pieroni
          Nos séculos XVI e XVII, em Portugal, ser degredado para alguma terra "d'além-mar", particularmente o Brasil, significava atravessar o oceano e viver durante três, cinco ou dez anos num mundo diferente e periférico. A Inquisição considerava o degredo para as terras brasileiras uma pena a ser aplicada nos casos dos delitos mais graves. A vida na colônia, para o súdito expulso do paraíso portu­guês, equivalia a um verdadeiro purgatório.
          Teria razão o jesuíta Antonil, ao reafirmar em 1711 o provérbio de que o Brasil seria “o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mula­tos e das mulatas”?
          O que sabemos é que, muito antes do ilustre autor de Cultura e opulência do Brasil, a colônia já era malvista pelo português reinol, como era conhecido aquele que vivia na metrópole. Este sentimento de rejeição foi expresso por Gil Vicente nos seus autos. Em 1510, ele cantou no Auto da fama: "Com ilhas mil, deixai a terra do Brasil." No seu célebre Auto da barca do purgatório, de 1518, Gil Vicente deixou claro que ser transferido da metrópole para a colônia significa­va um destino infeliz. Nessa peça, uma vendedora de peixe responde ao Diabo: "E marinheiro sodes vós? Ora asi me salve Deus e me livre do Brazil..."
          Em 1581 - primeiro ano da união das duas coroas da península ibérica, quando Lisboa acolheu seu no­vo soberano, Filipe II, com uma grande festa -, a co­lônia brasileira foi simbolicamente representada por uma jovem mulher tendo nas mãos uma cana-de-açúcar e uma inscrição onde se lê: “Fui desterro pa­ra os culpados”. Teriam tais visões remotas influen­ciado historiadores brasileiros no século XX?
          O Brasil como terra para os banidos portugueses -"criminosos e malfeitores" - é, sem dúvida, uma imagem construída por historiadores que difundiram certas conclusões exageradas, fundadas muito mais nas próprias suposições do que sobre uma pesquisa sistemática. Frequentemente os degredados são apontados por eles como a "escória" vinda de Portugal.
          Afonso Ruy disse que "não bastavam as faltas dos degredados que, em assustador crescendo, eram enviados para o Brasil, esvaziando as prisões e lim­pando as ruas do Reino". Ruy Nash não foi menos nefasto ao afirmar que "... quase tudo quanto Portugal fez pelo Brasil foi enviar duas caravelas por ano a vomitar em seu litoral esses resíduos da socie­dade..." Alberto Silva, por sua vez, referiu-se aos de­gredados como "o povilhéu rafado [faminto] dos enxurdeiros [lamaçais] lisboetas, a arraia-miúda anônima e miserável de todos os tempos..."
         Todas essas descrições, mais imaginárias que históricas, con­duziram Pedro Calmon a dizer que a "história do Brasil teria o que refletir sobre este desequilí­brio de origem". Teria mais razão Hélio Viana, quando, adotando uma posição mais crítica com relação às interpretações rápidas sobre os degredados, comentou: "Desses primeiros povoadores merecem especial atenção os de­gredados e os criminosos homiziados, quer pelo número, relati­vamente elevado, dos que apor­taram à nova terra, nos dois pri­meiros séculos, quer pelas exage­radas conclusões a que têm che­gado, a seu respeito, alguns dos comentadores desse aspecto do sistema colonial português."
          De fato, os processos do Santo Ofício, onde se de­cidia a pena de degredo, não retratam ilícitos terrí­veis, monstruosos, semelhantes aos que podemos en­contrar na imprensa de hoje. É que os inquisidores tinham outras preocupações além das terrenas - principalmente aquelas relacionadas à defesa da fé e à manutenção da ortodoxia religiosa. O primeiro cri­me previsto no Livro 5 das Ordenações Filipinas tra­ta, justamente, Dos Hereges e Apóstatas: "O conheci­mento do crime da heresia pertence principalmente aos juízes eclesiásticos (...) se al­gum cristão leigo, quer antes fosse judeu ou mouro, quer nas­cesse cristão, se tornar judeu ou mouro, ou a outra seita e assim lhe for provado, nós tomaremos conhecimento dele e lhe dare­mos a pena segundo direito."
          Os países católicos estabelece­ram seus tribunais inquisitoriais para combater a propagação, por menor que fosse, dos ideais e prá­ticas religiosas dissidentes ou ori­ginárias fora da Mater Ecclesia.
          A manutenção da ordem reli­giosa através da correção dos delinquentes pecadores foi uma das grandes preocupações dos juízes do tribunal da fé. No dia 23 de maio de 1536, a Inquisição recebeu autorização para fun­cionar em Portugal. Em 1540, realizou-se a primeira cerimônia pública de auto-de-fé em Lisboa. No en­tanto, por motivos de divergências diplomáticas en­tre a Monarquia portuguesa e a Cúria romana, foi so­mente no dia 16 de junho de 1547, através da bula do papa Paulo III - Meditatio Cordis -, que o tribunal foi definitivamente estabelecido.
          É quase inútil buscar uma lógica nas penas que a Inquisição aplicava. A arbitrariedade dos juízes se conjugava com a disparidade dos direitos, dos costumes e das normas: por um mesmo tipo de crime o réu poderá sofrer penas tão diferentes dependendo das decisões e arbítrio dos eclesiásticos magistrados dos tribunais inquisitoriais. Independentemente da gravidade de seu crime, a reparação tinha de ser fei­ta. Era desejada pelos cristãos velhos e cobiçada pe­los juízes que almejavam restabelecer a paz social que a heresia dos indesejados abalou.
          Por tudo o que se lê nos processos do Santo Ofício, a afirmação de uso corrente de que o Brasil foi povoa­do por criminosos, malfeitores e desclassificados, pas­sa a ser vista, no mínimo, com desconfiança.
Ser degredado não significava necessariamente que o condenado era um criminoso no sentido das ideias modernas. Punia-se com a deportação delitos não infamantes e mesmo as simples ofensas cometi­das por pessoas consideradas de boa reputação. Não existe nenhum fundamento nem motivos para duvi­dar do fato de que muitos banidos eram pessoas mo­ralmente sãs, punidas, como evidencia Gilberto Freyre, "pelas ridicularias por que então se exilavam súditos, dos melhores, do Reino para os ermos".
          Muitos deles, sobretudo os provenientes dos tribu­nais inquisitoriais, foram culpados por crimes de peso secundário. Os delitos dessa natureza abundam nos muitos títulos e parágrafos das Ordenações do Reino e dos Regimentos do Santo Oficio. Constata-se, de ma­neira evidente, que todos foram banidos, basicamente, por causa do rigor religioso que imperava na épo­ca. Enfim, leis, normas e regulamentos, assim como punições, castigos e penitências, são procedentes de seu tempo e como tal devem ser entendidos.
          Os degredados provinham das três ordens da so­ciedade, mas a partir do momento em que eram acusados, não importando a origem, todos viravam heterodoxos, cujos desvios em relação à fé esperada de um cristão a máquina inquisitorial devia corrigir. Os nobres tinham certos privilégios, eram dispensa­dos dos açoites, mas raramente podiam livrar-se das condenações.
          O degredo representava para os condenados por­tugueses uma dupla provação: além de perderem todo o seu patrimônio, que era confiscado pelo Santo Ofício, ainda tinham de aprender às pressas novos hábitos e formas de se inserir no mundo pro­dutivo para poder sobreviver nas terras d'além-mar que os acolheriam.
          É verdade que a maioria dos degredados era cons­tituída de homens e mulheres modestos, como revelam seus apelidos pitorescos e pouco delicados: "o Cobra", "a Cavala", "a Má carne" - alcunhas que evo­cavam sua rude condição de artesãos, camponeses ou de domésticas. Certos acusados traziam, no entanto, nomes e títulos de famílias nobres, como Cristóvão Rodrigues, cavaleiro professo e comendador da Ordem de Cristo. Outros eram tratados como dom ou dona, o que atestava condição de nobreza.
          Do ponto de vista administrativo, é certo que es­tes degredados, quem quer que fossem, eram na colônia trabalhadores temporários, de certa maneira vigiados e controlados, mas tudo indica que eles também se dissimularam na massa, fazendo-se pas­sar por simples colonos.
          Numa terra imensa como o Brasil, até onde che­gava o controle das autoridades locais sobre os degredados? Foram numerosos aqueles cujas pistas se perderam? Foram muitos aqueles que fugiram, penetrando no interior das terras, constituindo famí­lias, tornando-se bons brasileiros e, posteriormente, qualificados como descendentes de gloriosos ances­trais portugueses, bravos marinheiros ou co­merciantes ambiciosos?
          Conhecer a vida quotidiana dos degredados no Brasil é uma tarefa difícil. No período do cumprimento da pena, os processos dos réus pouco ou quase nada revelam acerca de suas vidas no degredo, mas tais documentos continuam sem­pre a registrar suas súplicas comoventes, feitas ain­da antes do embarque ou já no território de desti­no. Desembarcados no Brasil, muitos deles não pensavam senão em retornar à pátria. Arquitetavam os seus planos para conseguir a clemência dos juízes da fé. Lamentavam sofrimentos, doenças e misérias encontrados no Brasil. Pagavam os seus crimes na colônia e ansiavam retornar à metrópole. Estavam com o corpo no Purgatório mas o olhar no Paraíso. Banir deriva de ban, antigo vocábulo germânico que significava proclamação pública. Acompanhava o condenado um toque da corneta, para que a pena de expulsão se tornasse notória. O banimento é uma das mais antigas penalidades e foi frequentemente apli­cado entre muitos povos antigos. Em Atenas, chamou-se ostracismo; em Roma, deportação ou degre­do. A antiga legislação francesa prescrevia o exílio. Em Portugal, além de degredo, usava-se também o termo expulsão do reino. Diversos povos utilizaram o banimento com o objetivo de fazer sair do país aquele que violasse as suas leis.
          Da mesma forma que na Antiguidade e na Idade Média, a expulsão do indesejado era acompanhada pelo toque das cornetas, o banimento proveniente dos tribunais inquisitoriais era também acompa­nhado por um cenário magistral. Esta teatralidade contribuía para a sacralização do ato da partida, do rompimento definitivo ou temporário com a comu­nidade de origem.
          O ritual encenado antes do embarque para a colônia exercia o papel de promover na opinião pública a necessidade de lembrar aos cidadãos que a sanção outorgada aos "criminosos" não devia ser esquecida. Seu desempenho é aquele de servir de exemplo puni­tivo para os que desvirtuarem a ordem estabelecida.
          O banimento degradava o condenado à infâmia. Frequentemente era açoitado, punham-lhe a mitra da difamação na cabeça e vestiam seu corpo com uma túnica condenatória. Algumas vezes o senten­ciado, "com baraço e pregão", era exposto pelas ruas onde a ritualização do cortejo, através do auto-de-fé, acontecia. O público participava do suplício lançan­do injúrias, pedras e lixo. O povo estava ali não pelo mórbido e perverso gosto pela violência, mas para autorizar a exclusão.
          Nessa época, o motivo essencial que justificava a punição daqueles que infringiam a lei divina era a salvação de suas almas, mesmo que para isso fosse ne­cessário excluí-los do corpo social, da mesma maneira que se separa a erva daninha do bom grão de trigo. Para reintegrar uma minoria dissidente na sociedade católica, a Inquisição do Santo Ofício, com extrema vigilância, recorreu ao castigo e à catequização: meios pedagógicos da reintegração social e religiosa.
          Entre todas as normas ditadas pelas legislações portuguesas, seja as ordenações do reino ou os regimentos inquisitoriais, a exclusão do culpado era, pe­lo menos teoricamente, o meio mais utilizado como instrumento punitivo. O banimento implicava o afastamento físico e excluía o culpado da convivência dos seus compatriotas, privando-o de seus direitos, sobretudo a prerrogativa da sua participação na vida corporativa e familiar.
          Uma vez residentes no Brasil, é evidente que nem todos os banidos agiram da mesma maneira. Os arquivos da Inquisição conservaram suas lamentações e pedidos de perdões ou de comutações das penas originais. São súplicas de degredados mal adaptados, sem trabalho, sem esperanças, deprimidos pela distância de seus entes queridos, obcecados pelo desejo de voltar para Portugal.
          Madalena da Cruz, casada com o alcaide de uma prisão, foi sentencia­da a cinco anos de degredo no Brasil, em 1682, por fazer, usando seus pri­vilégios, chegar mensagens a conde­nados em troca de recompensas. Não conseguiu adaptar-se aos rigo­res da colônia. Tanto implorou que os juízes lhe reduziram a pena, em 1685, e ela voltou, gravemente doen­te, para Portugal.
          André Vicente, que se preparava para ser padre, foi condenado em 1632 a uma permanência força­da de três anos no Brasil. Entre outros delitos, foi acusado de utilizar os panos do altar "como lenços de assoar e noutras imundícies". Acabou retornando à metrópole, por conta própria, dez anos depois, "com dinheiro e escravos", e até obteve do Santo Ofício permissão para ordenar-se sacerdote.
          Fora o caso do venturoso André Vicente, temos poucos exemplos de degredados bem-sucedidos. Todavia, a assimilação do degredado à vida de colo­no era possível: o Brasil tinha sede de braços e de homens corajosos. O esforço colonizador exigia tra­balhadores intrépidos e rudes.
          A ortodoxia da religião católica à época só podia ser preservada pela rejeição dos membros considerados indesejáveis, minoria social e religiosa que repre­sentava os pecados da comunidade e por isso deveria ser enviada para o deserto: terra maldita onde Deus não exercia a sua ação fecundante, terra de relegação para os inimigos de Yahvé. Como o bode expiatório da antiga tradição hebraica, os degredados simbolizavam a rejeição e a condenação do pecado: o mal era ba­nido junto com eles.
          Os cristãos-novos acusados de criptojudaísmo (práticas religiosas judai­cas clandestinas) são os que figuram com mais frequência nas listas dos autos-de-fé. Em número bem inferior são aqueles que delinquiram contra a moral católica, também eles punidos com o degredo: bígamos, sodomitas, padres sedutores. Causa de desordem são também os feiticeiros, os visionários, os blasfemadores. Todos eles representam uma preocupação para o fortalecimento da unidade social, política e religiosa do reino, defen­sor do seu catolicismo romano. Na colônia, embora distante, os rumores sobre sua condição de degreda­dos circulavam de boca em boca. A ladainha de seus hereges delitos acompanhava sua passagem. Eram confundidos com os criminosos. As autoridades utili­zavam a popularidade deste pejorativo discurso para reforçar, ainda mais, o seu poder de coerção.
          A imagem do degredado no contexto deste ima­ginário tornou-se a sua verdadeira identidade. Consequentemente, sua estigmatização era radical. Tratar alguém de "banido" era uma injúria desonrante que continha em si a exclusão, a excomunhão, o ser indesejado. Esta imagem estereotipada se cris­taliza no eixo do corpo social. Imagem que se con­funde com a dor, pois o degredo em si mesmo é fonte de padecimento: a evocação do país longínquo, a separação dos lugares da infância, a insegu­rança do desconhecido. O tempo do degredo cons­titui o tempo da purificação.
Geraldo Pieroni é professor da Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade
Tuiuti, do Paraná. É autor de Os excluídos do Reino (UnB, 2000) e Banidos: A Inquisição e a lista dos cristãos-novos condenados a viver no Brasil (Bertrand Brasil, 2003).

Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 04 – Fevereiro/2004

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Saiba Mais – Documentário
A Estrela Oculta do Sertão
A Estrela Oculta do Sertão é um documentário de 2005, dirigido pela fotógrafa Elaine Eiger e pela jornalista Luize Valente. O tema central é a prática judaica mantida por algumas famílias do sertão nordestino, juntamente com a busca de sua identidade religiosa por vários marranos, a partir do momento que tomam consciência de sua condição. São descendentes dos chamados cristãos-novos (marranos), judeus forçados a se converterem ao cristianismo durante o período da inquisição em Portugal, graças a um decreto do rei D. Manuel, estabelecido em 1497.
Durante a invasão holandesa ao Brasil, no século XVII, a Coroa holandesa que atuava na vanguarda do movimento de reforma do catolicismo, adota a política de acolher perseguidos religiosos de várias partes da Europa. A maioria dos judeus emigrantes que se estabelece no país vive na penúria. Com a tomada do Recife pela Holanda, esses grupos são atraídos pela oportunidade de progredir na mais rica capitania portuguesa da época, e navios fretados por judeus passam a chegar quase todo mês no Recife, evadindo-se posteriormente para o interior, após a retomada dos portugueses.
O documentário conta com consultoria e depoimentos da historiadora da USP Anita Novinsky, uma das maiores autoridades em inquisição no Brasil, o genealogista Paulo Valadares, e o antropólogo do Collège de France, Nathan Wachtel.
Direção: Elaine Eiger e Luize Valente
Ano: 2005
Áudio: Português
Duração: 84minutos

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O Brasil de todos os pecados

Erotismo e religião se mesclavam nos tempos da colônia
Ronaldo Vainfas
     “Não existe pecado do lado de baixo do equador!” Este ditado que corria na Europa no século XVII e que se tornou verso de Chico Buarque é quase um lugar-comum quando se fala da liberdade sexual nos tempos coloniais. Já Gilberto Freyre, um dos maiores intérpretes do Brasil antigo, dizia que os portugueses aqui desembarcavam "escorregando em índia nua", que neles se esfregavam, fogosas e ar­dentes. Um verdadeiro clima de "in­toxicação sexual" teria explodido já no século XVI, o que nosso grande pernambucano não deixou de cele­brar com a linguagem libérrima de sempre. Afinal era a primeira prova da vocação do português e da índia, depois da negra e da mulata, para a mistura de raças que marcou nossa história desde 1500.
     Gilberto Freyre celebrou o frenesi sexual do período colonial, mas foi durante muito tempo uma voz solitá­ria. Muitos historiadores, antes e de­pois dele, lastimaram profundamente este clima de liberdade excessiva que todos julgavam existir na infância do Brasil. Um deles, Paulo Prado, autor de Retrato do Brasil, dizia que um dos grandes males de nossa for­mação foi a luxúria, palavra que usou, aliás, para dar nome a um dos capítulos do livro. Escreveu Paulo Prado que, também por causa desta desenfreada libidinagem, o brasileiro se tornou um povo triste. Sexo excessivo, desânimo, preguiça. Paulo Prado até citou um provérbio latino para ilustrar sua convicção: post coitum animal triste, nisigallus qui cantat (após o coi­to os animais ficam tristes, exceto o galo, que canta).
     A opinião implacável de Paulo Prado, que escreveu na década de 1920, parece repetir o desespero dos je­suítas e de outros cronistas do tempo colonial, sempre incansáveis em denunciar e lastimar a "dissolução de costumes" que grassava na terra. Américo Vespúcio, o célebre navegador, disse que tamanha luxúria era culpa dos índios, pois eles tinham tantas mulheres quantas qui­sessem, "o filho se unindo com a mãe, o primo com a prima e o encontrado com a que encontra". Grande exagero, sem dúvida, do florentino que deu no­me ao continente, pois os Tupinambá observavam vários tabus sexuais. Mas o português Gabriel Soares de Sousa, que escreveu no meado do século XVI, carregou nas tintas contra os índios. Deu a um de seus capítulos o título "Que trata da luxúria destes bárbaros" dizendo que, entre eles, enquanto as velhas ensinavam aos rapazes as artes do sexo, os homens costumavam pôr no pênis o pêlo de um bicho peçonhento, "que lho faz logo inchar, com o que se lhe faz o seu cano tão disforme de grosso, que os não podem as mulheres esperar, sem sofrer..." (Tratado descriti­vo do Brasil em 1557).
     Manuel da Nóbrega, primeiro provincial dos jesuí­tas no Brasil, em 1549, ficou tão desesperado com o que via, portugueses e índias gemendo pelos matos, que suplicou ao rei o envio urgente de mulheres brancas para casar com os portugueses. Nem que fos­sem "mulheres de má vida", isto é, prostitutas - dizia o jesuíta -, desde que viessem para casar! O recente filme Desmundo mostrou, por sinal com muito realismo e plasticidade, o destino que aguardava essas "ór­fãs" que desembarcavam no Brasil daquele tempo, obrigadas a casar com qualquer um que as quisesse. Nem por isso o ardor geral esfriava. Tempos depois de Nóbrega, outro je­suíta, este italiano, exclamou num ser­mão: "Oh! Se pudessem falar as ruas e becos das cidades e povoações do Brasil! Quantos pecados publicariam, que encobre a noite, e não descobre o dia! (...) Porque ainda a pena treme e pasma de os escrever" (Economia cris­tã dos senhores no governo dos escravos, 1700). Por essas e outras, frei Vicente do Salvador, que escreveu o primeiro livro chamado História do Brasil, ain­da em 1627, disse que não vingou por aqui o nome Terra de Santa Cruz que se lhe dera em 1500. Para o frei, fora tudo obra do Diabo, que, empenhado em remover o nome cristão da terra, trabalhou para que triunfasse outro nome, no caso o de "um pau de cor abrasada e vermelha" (o pau-brasil), mais ade­quado a seus propósitos.
     Brasil, terra de pecados, que muitos cronistas e historiadores associaram, em tom moralista, à liber­dade sexual e à ausência quase completa de religião. Afinal, nosso clero aqui sempre foi escasso, a Igreja desorganizada e muitos padres mal ligavam para seu ofício espiritual. Padres mal preparados e poucos, com a exceção quase solitária dos jesuítas, vale insis­tir, que Gilberto Freyre chamou, com bom humor, de "donzelões intransigentes" - incansáveis no propósi­to de propagar a fé e moralizar os costumes.
     Mas teria sido assim mesmo? Corria solto o pecado sem o menor vestígio de religião? Outro exagero é o que nos mostram os documentos da Inquisição que, por volta de 1591, mandou um visitador do Santo Ofício ao Brasil para averiguar a quantas andava a fé e o comportamento dos colonos. O que tais documentos revelam, antes de tudo, é o sentimento de culpa que atormentava - ou podia atormentar - os próprios portugueses, sabedores do quanto pecavam na terra, sobretudo com as índias. Mas como é possível saber o que se passava na consciência daqueles portugueses há 500 anos? A resposta está num tipo de denúncia que a Inquisição recolheu, naquele tempo, contra os que di­ziam que fornicar não era pecado: muitos colonos acusavam os que diziam, sobretudo em conversas masculinas nas tavernas, engenhos e vilas, regadas a vinho, que fornicar não era pecado. Narrando suas aventuras sexuais, muitos riam, enquanto alguns po­lemizavam, dizendo que fornicar era pecado sim, e pe­cado mortal que condenava ao inferno.
     Nessas polêmicas cotidianas é possível flagrar, sem dúvida, a evidência de que os portu­gueses viviam mesmo entre as índias, dando-lhes qualquer coisa em troca, um espelhinho, um pano, um mimo. Mas é também possível flagrar algum escrúpulo e o medo que todos tinham do inferno. Só o fato de discutirem muito este assunto, como era o caso, já dá mostra do quanto Deus e o Diabo impregnavam o cotidiano desses ho­mens. As reações dos fornicários mais presunçosos não deixa de ter interes­se. Uns diziam que fornicar só era pe­cado venial, mas não mortal. Outros diziam que dormir uma ou duas vezes com índia - que chamavam de negra da terra - não era pecado mortal, nem condenava ao inferno. Mas se dormisse sete vezes, aí sim, o inferno era certo. Alguns diziam que tinham mesmo que fornicar neste mundo, pois o Diabo ha­veria certamente de fornicá-los no Além, sendo ne­cessário compensar de antemão.
     O mais significativo, porém, é que quase todos que diziam não haver pecado tão grave assim na tal fornica­ção alegavam que só fornicavam com índias, pois eram elas "mulheres públicas", mulheres de má vida, prostitutas. Se fosse com virgens - diziam - com mulheres ca­sadas ou, principalmente, com mulheres brancas, aí sim o pecado era grave. Machismo e racismo, com algum verniz de moralismo cristão, eis o que se pode extrair, em doses variadas, dessas conversas masculinas no primeiro século do Brasil. Mais do que isto, mistura forte de libidinagem com religião, mesmo entre homens que se vangloriavam de sua virilidade, useiros a dormir com as índias nas redes, nos matos, onde fosse.
     Religião e sexo andaram juntos, pois, durante mui­to tempo no Brasil Colonial. E não é só neste caso de fornicários que encontramos a prova disto. Os docu­mentos da Inquisição nos revelam inúmeras outras situações semelhantes, uma vez que o Santo Ofício esta­va mesmo empenhado em policiar os costumes da po­pulação colonial. Entre denúncias e confissões, há ca­sos interessantíssimos de mistura entre as coisas da fé e as pulsões do desejo. A começar pela sexualização das figuras divinas, isto é, do próprio Cristo e da Virgem Maria. Tais documentos nos contam estórias como a de certa mulher que, flagelada por um temporal na Bahia, gritou que "Deus mijava sobre ela e que a queria afogar", e outra, de língua espanhola, na mes­ma situação, bradou: "Bendito sea el carajo de mi senor Jesu Christo que agora mija sobre mi".     Acusadas de blasfêmia, ouviram do visitador que "Deus não mi­ja, que é coisa pertencente ao homem e não a Deus". O mais importante disso é menos a evidente blasfêmia, mas a sexualização do Cristo, a figura do Cristo fálico que povoava a imaginação dos homens e mulheres da­quele tempo. O mesmo vale para Maria, Nossa Senho­ra, cuja virgindade perpétua era matéria de discussão cotidiana. Maria fora sempre virgem - Virgo semper - antes, durante e depois do parto? Polemizava-se. Para uns, sempre virgem, para outros nem sempre, para al­guns jamais. Houve muitos que a chamaram diretamente de puta - usando mesmo este palavrão para dizê-lo. E um grande poeta daquele tempo, homem da­do a deboches, não hesitou, certa vez, em jurar "pelo pentelho da Virgem!" Blasfêmias dos colonos? Sem dúvida, mas também prova cabal de que o sagrado podia conviver com desejo e sexo.
     Os moradores do Brasil colonial sexualizavam o di­vino, portanto. Não é de admirar que divinizassem o sexo que faziam na prática. Uns punham o crucifixo de­baixo da cama, outros diziam as palavras da missa em pleno ato sexual. Aliás, era bem difundida a crença de que dizer as palavras da consagração da hóstia na boca de maridos, esposas ou amantes, de preferência duran­te a relação sexual, era coisa que dava excelentes resul­tados. Acreditava-se que tais palavras encantadas pren­diam o ser amado, ou amansavam maridos violentos, e talvez por isso as mulheres usassem muito este artifício nas suas lides conjugais.   Havia, porém, um detalhe pre­cioso: as palavras tinham que ser ditas em latim! Hoc est eram corpus meum, ou seja, Isto é o meu corpo. Era isto, portanto, o que se dizia nas noites e dias das "cidades e povoações do Brasil": nada menos que as palavras sa­gradas da eucaristia, entre sussurros e gemidos.
     A linguagem de sedução seguia, assim, a sina da religião, entre o Cristo fálico e a Virgem fêmea, ou por meio das sacralidades que temperavam os ardo­res sexuais. Embebida de religião, a linguagem do amor e da sedução era povoada por diversos santos, por Deus e, decerto, pelo Diabo, ou por vários deles, todos eventualmente irmanados para levar os enre­dos amorosos a bom termo.
     Um expediente corriqueiro estava no uso de certo amuleto amoroso, as chamadas cartas de tocar, magia ibérica que consistia em encostar na pessoa desejada um objeto gravado com seu nome e outras palavras próprias para seduzir. No Brasil usavam-se papéis, às vezes papeizinhos miúdos contidos em "bolsas de mandinga", para "fechar o corpo". Na visitação do Santo Ofício que mencionamos, várias bruxas, pois assim foram chamadas, viram-se acusadas de vender as tais "cartas" e divulgar outras magias eróticas. Uma dessas bruxas era conhecida pelo sugestivo no­me de "Maria Arde-lhe o Rabo". Outra, de nome Isabel, possuía alcunha menos sensual: a "Boca Torta". No século XVIII mineiro, uma certa Águeda Maria tinha um papel com algumas palavras e cru­zes, "carta" que servia para as mulheres tocarem em homens desejados sexualmente. No Recife, era um certo Antônio Barreto quem levava um papel com signo salmão e credo escrito às avessas, que servia para fechar o corpo e facilitar mulheres: "Qualquer mulher que tocasse a sujeitaria à sua vontade."
     Além das cartas de tocar, recorria-se, com idênticos propósitos, às orações amatórias, práticas muito comuns na colônia e universalmente conhecida. Segun­do a historiadora Laura de Mello e Souza, essas orações eram um ramo da magia ritual em que era irre­sistível o poder de determinadas palavras e, sobretudo, o nome de Deus, mas que não dispensava o conjuro dos demônios. Tudo com o fim, ao mesmo tempo, de conquistar, seduzir e apaixonar. Uma das bruxas baia­nas do século XVI mandava rezar junto ao amado: "João, eu te encanto e rencanto com o lenho da vera cruz, e com os anjos filósofos que são 36, e com o mouro encantador, que tu te não apartes de mim, e me digas quanto souberes e me dês quanto tiveres, e me ames mais que todas as mulheres." Não tão melo­diosa como esta era a oração que, no século XVII no Pará, fazia Maria Joana, cruzando os dedos: "Fulano, com dois te vejo, com cinco te mando, com dez te amarro, o sangue te bebo, o coração te parto. Fulano, juro-te por esta cruz de Deus que tu andarás atrás de mim assim como a alma anda atrás da luz, que tu pa­ra baixo vires, em casa estares, e vires por onde quer que estiveres, não poderás comer, nem beber, nem dormir, nem sossegar sem comigo vires estar e falar."
     Eram inúmeras as rezas com fins eróticos que alu­diam às almas, ao leite da Virgem, às estrelas, a Cristo, aos santos, aos anjos e demônios. Mas como as orações nem sempre bastavam, as empreitadas eróticas vinham também acompanhadas do uso de poções, filtros amorosos, como se dizia, que misturavam um cristianismo popular com crenças pagãs, o que aqui se viu adensado pelos ingredientes culturais indígenas e africanos. Poções e filtros para "fazer querer bem", seduzir, reter a pessoa amada. E neles, diferentemente das cartas de tocar ou das orações amatórias, sobressaía o baixo corporal, as partes ge­nitais, o líquido seminal. Ao ensinar a uma de suas clientes um modo de viver bem com seu marido, uma das bruxas do século XVI man­dou que ela furtasse três avelãs, en­chesse os buracos abertos com pêlos de todo o corpo, unhas, raspaduras da sola dos pés, acrescentasse uma unha do dedo mínimo da própria bruxa e, feita a mistura, engolisse tudo. Ao "lançá-los por baixo" - imagine-se de que modo! - pusesse tudo no vinho do marido. No entender da bruxa, pa­ra as coisas correrem bem, bastava fa­zer isto. Outro artifício ensinado pela bruxa envolvia o sémen do homem amado. Ao terminar o ato sexual, a mulher devia retirar de sua própria vagina o sémen do homem e colocá-lo no copo de vinho do parceiro. A bruxa garantia: beber sémen "fazia querer grande bem, sendo do próprio a quem se quer".
     Uma característica importante deste autêntico mercado de linguagens eróticas, onde se trocavam ou vendiam saberes e magias sexuais, era a quase absoluta separação entre o mundo masculino e o femini­no. Nos documentos da Inquisição, em que são des­critas as circunstâncias de cada fato denunciado, vê-se bem que as mulheres protagonizavam o vaivém de poções, cartas de tocar, rezas sedutoras. Já nas con­versas desabridas sobre fornicações, quando surgia a polêmica se fornicar era ou não pecado mortal, só homens estavam presentes, tudo na base do "erotis­mo grosso" que Gilberto Freyre viu nos costumes masculinos portugueses. Não havia também a cum­plicidade ou solidariedade entre os envolvidos, pois as mulheres eram acusadas, por suas próprias clien­tes, de ensinar ou vender poções, enquanto os ho­mens eram acusados de celebrar seus feitos de macho pelos amigos de ontem, que com eles beberam vinho e contaram aventuras sexuais. A Inquisição vivia da desunião entre amigos, parentes, amantes.
     O certo, porém, é que o pecado no Brasil Colônia não corria livre como muitos pensaram. Os jesuítas estavam sempre a reprovar os excessos. Os inquisido­res a perseguir os mais afoitos. E todos, a bem dizer, viviam mais ou menos atormentados, temendo os castigos do céu e da terra. De mais a mais, era tudo muito exposto naquele tempo, pois os espaços das casas não eram claramente definidos e, quando o eram, nas casas-grandes, por exemplo, mal havia portas separando cômodos. De maneira que era frequente, mesmo entre casais unidos pelo matrimônio, que muitos vissem as relações sexuais de vizinhos, parentes ou moradores da casa.
     Um caso exemplar - conforme re­gistrou literalmente o escrivão no ma­nuscrito número 6.366 da Inquisição de Lisboa - foi o de certa moça cha­mada Maria Grega, mameluca casada com um alfaiate, na Bahia quinhentis­ta, que correu para acusar o marido ao inquisidor de que ele só a possuía pe­lo ânus, nunca pelo "vaso natural". Perguntada pelo inquisidor se alguém podia testemunhar sobre o caso, disse sem nenhuma cerimônia que a irmã dela sempre viu tudo, pois dormia numa rede ao la­do. . .Outro caso espantoso diz respeito a um certo Baltazar da Lomba, morador em Per­nambuco, homem já dos seus 60 anos, que gostava de dormir com índios. Numa dessas foi pego em flagrante por um ra­paz curioso que "por uma abertura da porta, pôs a orelha e aplicou o sentido", ouvindo Baltazar da Lomba e um índio ofega­rem na rede, acrescentando que um deles gritava "ui, ui, ui".
     Os lugares para fazer sexo no Brasil Colônia eram mesmo devassados. Não admira que o mato fosse lugar de certa privacidade ou que as pessoas mal ti­rassem as roupas quando mantinham relações sexuais. Os documentos da Inquisição - indiscretíssimos - tam­bém nos contam que o mais comum era os homens arriarem seus "cal­ções", como então se dizia, ou levantarem as "camisolas", as mulheres, suas saias, e pronto: cópula consumada. Nem as igrejas escapavam do sexo, como nos conta a histo­riadora Mary del Priore em delicioso texto intitulado "Deus dá licença ao Diabo". Nelas brotavam romances, em meio às missas, o padre entoando as palavras eucarísticas que muitas mulheres repetiriam depois na boca dos maridos. E nas igrejas, muitas vezes, se abrigavam os amantes. Não por acaso, um manual português de 1681, escri­to por d. Christóvam de Aguirre, continha as perguntas: "A cópula tida entre os casais na igreja tem especial malícia de sacrilégio? Ainda que se faça ocul­tamente?" Por aí se pode ter uma ideia de como a igreja poderia funcionar depois do culto.
     Sexo na igreja é algo que nos leva de volta aos pa­dres e de como religião e desejo se mesclavam no cotidiano do Brasil antigo. Muitos padres, por sinal, eram useiros em flertar com mulheres casadas ou solteiras, fazendo-o, inclusive, no próprio ato da confissão. Aproveitavam o fato de a confissão ser se­creta e, portanto, um dos raros espaços de privacida­de naquele tempo, e seduziam as moças. A Inquisi­ção, sempre ela, não dormiu no ponto, especialmen­te porque, neste caso, não se tratava apenas de incon­tinência clerical, mas do uso libidinoso de um sacramento. Por isto eram os tais padres chamados de so­licitantes ad turpia, isto é, solicitavam penitentes com propósitos torpes. O Santo Ofício prendeu e proces­sou vários deles, produzindo com isso documentos formidáveis sobre como os homens seduziam as mu­lheres em tempos idos. Era comum esses padres falarem mal dos maridos, prometendo às mulheres vida melhor, ofertando presentes, ou recitando poeminhas. Um deles mandou à penitente, doublé de mu­lher desejada, uma florzinha entredentes, fazendo-a passar pelas grades do confessionário. Mas esses pa­dres solicitantes pareciam usar de códigos diferentes, conforme a posição social das mulheres que deseja­vam seduzir. Se fossem brancas, cortejavam, diziam versos, ofereciam mimos. Se negras, iam logo pondo as mãos nos peitos, ou por baixo das saias, usando de linguagem chulíssima. Pelo visto, não só de religião o sexo estava embebido naquele tempo, mas também da lógica da escravidão. Seduzir brancas era coisa que merecia poemas e flores. Seduzir negras, cativas ou forras, dispensava tais delicadezas: os padres iam logo apalpando seios, apertando coxas ou mesmo to­cando nas ditas "partes vergonhosas" por meio de palavreado lascivo.
     De um modo ou de outro, é claro que os padres usavam do poder que o cargo lhes conferia para assediar moças incautas. Era o caso, por exemplo, de um certo frei Luís de Nazaré, carmelita da Bahia que viveu no século XVIII. Dizia ter poderes de exorcista, no que muitos acreditavam, e "curava" mulheres doentes através de cópulas, ou por vezes espalhando sémen no corpo das moças, dizendo, com a Bíblia na mão, que aquilo era remédio bom e vinha de Deus. Ao se defender do processo que depois lhe moveu a Inquisição, frei Luís não hesitou em dizer que fazia aquilo não por ser herege, mas porque tinha desejos irrefreáveis e as mulheres do Brasil "eram rudes e simples". "Facilmente se enganavam", disse o frei, "com qualquer cousa que lhes dizem...."
     As sexualidades brasílicas de outrora nem eram tão livres, nem estavam isentas de preconceitos, constrangimentos de todo tipo e, sobretudo, de reli­gião, que irrigava a sociedade inteira. Muita coisa nos soaria estranha, nos dias de hoje, como casais se amando vestidos ou dizendo as palavras sagradas em pleno gozo. Alguns costumes de outrora parecem até bizarros, como um tal "namoro do bufarinheiro", descrito por Júlio Dantas, muito comum em Portu­gal na primeira metade do século XVIII: homens a distribuir piscadelas d'olhos e a fazer gestos sutis com as mãos ou boca para as mulheres que se posta­vam à janela, suspirantes, em dias de procissão reli­giosa, como se fossem eles bufarinheiros a vender suas bugigangas. Ou um tal "namoro do escarrinho", costume luso-brasileiro dos séculos XVII e XVIII, em que o "enamorado" punha-se embaixo da janela da pretendida sem dizer nada, limitando-se a fungar, como se estivesse resfriado, ou mesmo tossir, assoar o nariz e escarrar no chão, à vista da moça.
     Costumes estranhos, alguns. Outros nem tanto, em especial os que envolviam constrangimento, preconceito, assédio. Os documentos da Inquisição es­tão cheios deles. O Brasil era mesmo terra de pecados, mas nem de longe de liberdade sexual. Liberda­de nunca houve por ali - ou por aqui - e entre os ca­sais unidos pelo santo matrimônio poucas vezes se encontra o amor que o século XIX celebraria na literatura romântica. Amor e sexo juntos era coisa rara na Colônia, ao menos nos documentos daquele tem­po, mais empenhados em flagrar delitos do que sen­timentos amorosos. Salvam-se alguns poemas líricos, aqui e ali, como os dos árcades mineiros, no século XVIII, por vezes muito amorosos, mas pouco eróti­cos. Eróticos e amorosos ao mesmo tempo só os poe­mas satíricos - pouquíssimos - como os do célebre Gregório de Matos Guerra, que viveu na Bahia, sécu­lo XVII, de que vale citar uns versos:

"O Amor é finalmente
um embaraço de pernas,
união de barrigas,
um breve tremor de artérias.

Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um rebuliço de ancas,
quem diz outra coisa é besta"

     Não por acaso, celebrando o amor deste modo, entre pernas, veias e ancas, Gregório de Matos seria afamado ou infamado na Bahia como o "Boca do Inferno". Mas o poema tem lá seu valor. Informa, no mínimo, que alguns podiam ficar totalmente nus no encontro dos corpos, entre gemidos e palavras encantadas, o que não era pouca coisa naquele tempo. A bem da verdade, de "boca do inferno", ao menos neste poema, nosso Gregório não tinha nada. Estava mesmo é com o coração na boca.

Ronaldo Vainfas é professor titular de História Moderna da Universidade Federal Fluminense e autor de Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil Colonial, 2a ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1997.

Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 01 – Novembro 2003

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Saiba Mais – Filmes
Desmundo
Filme de época (por volta de 1570) e falado em português arcaico do século 16, é todo legendado no idioma moderno.
Baseado no livro da romancista Ana Miranda e dirigido pelo paulista Alain Fresnot, a narrativa traça um retrato do Brasil colonial visto sob o ponto de vista feminino: no caso, o de Oribela (Simone Spoladore).
Jovem portuguesa, Oribela veio para o Brasil junto com um grupo de órfãs trazidas para cá pelo projeto da monarquia lusitana de oferecer esposas brancas aos colonos, que há tempos se miscigenavam com as índias.
Na época, essa era uma situação completamente desfavorável às mulheres, mesmo às europeias. Afinal, naqueles dias elas valiam menos do que as mulas e tinham menos direito a exercer a própria vontade. Como gado, seus dentes e dotes físicos eram examinados e elas eram arrematadas como num leilão.
Muito devota, mas disposta a tentar algum tipo de escolha, Oribela rejeita com uma cusparada o primeiro e bruto pretendente (Cacá Rosset). Com Francisco (Osmar Prado), ela já é mais conivente, ainda mais que ele se comporta, em princípio, com mais civilidade.
Instalada na remota propriedade do marido com uma sogra estranha (Berta Zemel), uma cunhada deficiente e uma clara insinuação de incesto, Oribela tenta a fuga com a ajuda de um comerciante judeu, Ximeno (Caco Ciocler).
Direção: Alain Fresnot
Duração: 99 min
Ano: 2003
Áudio: Português + Legenda