“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

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quarta-feira, 15 de julho de 2020

Ecos de Mussolini

Nos anos do fascismo, o Brasil se tornou destino de italianos em busca de segurança política e econômica
MARCELLO SCARRONE
              Eram trinta, quarenta, talvez um pouco mais. Vinham de diferentes procedências e tinham variadas orientações políticas. Dialogavam entre si. E, por vezes, tomavam caminhos sem relação com a militância. Esta era a realidade dos refugiados antifascistas italianos no Rio de Janeiro entre as duas guerras mundiais. Um grupo pequeno, sobretudo se comparado com os milhares de compatriotas que já viviam e trabalhavam na capital federal. Mas que buscou movimentar as fileiras da colônia e de setores da sociedade carioca, denunciando as violações e as ilegalidades cometidas no seu país de origem e alertando contra a ameaça que o fascismo podia representar para qualquer nação do mundo.  
               Após anos de violências e intimidações contra sedes de sindicatos, cooperativas e partidos de esquerda, o regime fascista de Benito Mussolini chega ao poder em 1922. Três anos depois, uma série de leis duríssimas retira de seus opositores toda liberdade de expressão, de imprensa e de associação. Aos dirigentes e militantes dos partidos antifascistas não restam mais que dois caminhos. O primeiro, abraçado sobretudo pelo recém-fundado Partido Comunista, será o de uma perigosa atividade clandestina, muitas vezes resultando em anos de prisão ou degredo. O segundo será a emigração. Esta foi a via adotada pela maioria dos líderes políticos e sindicais socialistas e anarquistas, mas também pelos liberais, republicanos e católicos, e por numerosos membros destas agremiações.
               O destino principal do exílio forçado era Paris, que se constituiu no centro do antifascismo italiano no exterior. Inglaterra, Suíça e as Américas também eram alternativas. No Brasil, particularmente São Paulo e Rio de Janeiro se apresentaram como destino de uma viagem em busca de refúgio e segurança econômica e política.
               O termo só se consagrou historicamente no pós-guerra, mas nada retira daquelas pessoas a condição de refugiados. Além de serem perseguidos por seus ideais políticos, foram forçados a sair de seu país por não encontrarem mais condições dignas de vida e trabalho. Os nomes de muitos deles povoavam os informes e os boletins da polícia política fascista. Rede de informantes e, sobretudo, a colaboração das autoridades diplomáticas italianas nas cidades brasileiras vigiavam suas atividades em terra paulistana ou carioca.
               Comerciantes, livreiros, garçons, mecânicos, jornalistas: cada um se reinventa no Brasil como pode. Ao mesmo tempo em que mantêm laços vivos com o centro do antifascismo em Paris, por meio de correspondência e pelos jornais recebidos, estreitam relações com os colegas de exílio em associações tradicionais da imigração italiana no Brasil (como as Sociedades de Beneficência) e outras criadas especialmente para eles – como a Liga para os Direitos do Homem, a Associação Antifascista e a União Democrática.
               Alguns refugiados tiveram atuação destacada. Um deles foi o advogado Libero Battistelli, que chegou ao Rio de Janeiro em 1927. Cruzara a fronteira de seu país após ter casa e escritório em Bolonha destruídos pela milícia do Duce Mussolini por defender numerosos antifascistas. Por aqui, além de liderar várias associações, tornou-se um precioso colaborador de La Difesa, semanário paulistano que funcionava como elo entre as várias vertentes antifascistas. De militância republicana, Battistelli dialogava com socialistas e anarquistas, com comunistas e liberais. No Rio, seu quarto era ponto de encontro e de decisão dos membros da colônia empenhados na propaganda e na ação política.
               Ao obter a naturalização brasileira, o advogado consegue maior liberdade de movimentos. Em 1930, faz uma breve viagem à Europa para arrecadar fundos em favor das organizações criadas no Rio e encontrar os expoentes da oposição exilados na capital francesa. De volta ao Brasil, continua a militância, agora como representante de uma organização antifascista recém-surgida na Itália, Giustizia e Libertá (Justiça e Liberdade). O regime de Mussolini parece cada vez mais inabalável, e só com a chegada de Hitler ao governo da Alemanha em 1933 o mundo começa a perceber a verdadeira periculosidade do fascismo. A guerra civil na Espanha desponta como uma oportunidade de traduzir em prática tantos apelos antifascistas. Em 1936, Battistelli resolve viajar para a França e depois se alista nas milícias antifranquistas na Espanha. No ano seguinte, em ataque em território aragonês, é atingido mortalmente pela artilharia inimiga.  
               Outro expoente daqueles anos foi o anarquista Nello Garavini, que aportou no Rio em 1926 em consequência da feroz perseguição das milícias fascistas na Itália contra muitos libertários. Após anos de trabalho como ascensorista e garçom no Hotel Glória e depois como vendedor de tintas, Garavini adquiriu em 1934 uma pequena livraria na Praça Tiradentes, que logo transformou também em editora. A recém-nascida “Minha Livraria” passou a ser frequentada por estudantes, intelectuais, artistas e um público interessado em conhecer o pensamento da esquerda. Não à toa: em pouco tempo o italiano começou a publicar o que chamava de “manuais de cultura social”, isto é, livros que apresentam os clássicos anarquistas e comunistas, de Malatesta a Bakunin, de Marx a Lenin.
               Pioneira na difusão do pensamento libertário no Brasil, a editora se abre aos poucos à publicação de outros autores. Até porque o estado de sítio introduzido por Vargas após o levante comunista de 1935 aumenta a vigilância policial sobre a livraria e seus volumes. No Brasil daqueles anos, não era confortável a situação dos refugiados italianos antifascistas: além da desconfiança de longa data das autoridades contra expoentes de movimentos e partidos de esquerda, o Estado Novo incrementa a repressão a comunistas e aliados, além de implementar uma legislação que busca disciplinar a presença dos estrangeiros no território nacional. Mais tarde, com a entrada do país na Segunda Guerra Mundial contra as forças do Eixo, o simples fato de ser italiano tornaria o indivíduo suspeito. Nesse período, muitos exilados do fascismo sofrem restrições, inquéritos policiais, prisões e expulsões. O próprio Garavini é obrigado em 1942 a encerrar a atividade editorial, silenciando seus ideais e projetos.
               Além dos exilados que escolheram o Brasil como refúgio em tempos de perseguição, vários membros da colônia italiana se empenharam no esforço de propaganda e luta contra o fascismo. Um deles, chegado ao Rio ainda em 1911, na esteira das tradicionais correntes migratórias, foi o genovês Giuseppe Scarrone. Mestre vidreiro, ele deixou a Itália aos 52 anos, após o enésimo boicote à sua atividade por parte das famílias locais que detinham o cartel da produção. A militância socialista explica seu ostracismo, e o caso demonstra como na figura do emigrante – e na do refugiado – as razões políticas ou religiosas misturam-se frequentemente com motivos econômicos.
               Na capital federal, Scarrone monta a Fábrica Nacional de Vidros no bairro de Vila Isabel, que chega a contar com 500 operários. Ali tenta implementar uma forma de cooperativa de divisão dos lucros com os trabalhadores e os clientes, à luz de seus ideais socialistas, numa experiência que dará certo durante alguns anos. Enquanto isso, produz dezenas de opúsculos, cartas abertas e livrinhos contra o fascismo. É ele mesmo quem escreve, manda imprimir em numerosos exemplares e os envia à Itália, para particulares e autoridades. A ousadia lhe rende, em 1926, uma condenação a dois anos e meio de prisão pela Justiça italiana. O empresário não mais poderá retornar à sua pátria.
               Em carta aos parentes, Emma, esposa de Garavini, resume os sentimentos dos antifascistas em terra brasileira. “Partimos há cinco anos, mas não esquecemos nem um momento do que vocês tiveram que sofrer, amordaçados, atordoados pelo hábito diário da obediência que não encontra consentimento na consciência... Sabemos de tudo, das violências, das bárbaras sentenças, do confinamento, tudo o que de mais feroz um governo pode usar para se sustentar”, escreve.  A vida refugiada, mesmo renovada, não comporta esquecimento.

MARCELLO SCARRONE É PESQUISADOR DA REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL E AUTOR DA TESE “NELLO, LIBERO E GIUSEPPE: DO RIO CONTRA MUSSOLINI. PERCURSOS POLÍTICOS DO ANTIFASCISMO ITALIANO NA CAPITAL FEDERAL (1922-1945)”, (UFRJ, 2013).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 11 - nº 124 - junho 2016

Saiba Mais – bibliografia
BERTONHA, João Fábio. “Sob a sombra de Mussolini. Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945”. São Paulo: Fapesp/ Annablume, 1999.
DROZ, Jacques. “Histoire de l’antifascisme en Europe (1923-1939)”. Paris: La Découverte, 2001.
TRENTO Angelo. “Do outro lado do Atlântico. Um século de imigração italiana no Brasil”. São Paulo: Istituto Italiano di Cultura/ Nobel, 1989.


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sexta-feira, 3 de julho de 2020

De olhos bem fechados

Durante a Segunda Guerra, governo brasileiro não se sensibilizou com o drama dos refugiados do nazismo
FÁBIO KOIFMAN
               Disseminado pela mídia, o drama dos refugiados na Europa comove o mundo. As tentativas desesperadas de fuga e a busca por abrigo em outros países geram relatos e imagens aterradores. Tamanha quantidade de gente forçada a abandonar seu lar por conta de conflitos e perseguições político-religiosas motiva comparações com o período da Segunda Guerra Mundial. Naqueles tempos o mundo fechava as portas aos refugiados, e a falta de solidariedade de então não ajudou a impedir um número assombroso de mortes. Em fins da década de 1930, países de todo o mundo adotavam políticas de restrição à imigração, o que acabaria contribuindo, por omissão e indiretamente, para o Holocausto perpetrado pelos nazistas: cerca de 6 milhões de judeus se tornaram vítimas da política de extermínio de Adolf Hitler. Inicialmente seu objetivo era “livrar a Europa” da presença judaica, ou seja, expulsar todos os judeus do continente. A opção pela execução sistemática veio em meados de 1941, e a chamada “Solução Final” – aniquilação total dos judeus nos territórios ocupados pelo Estado alemão – somente em janeiro de 1942, depois que os nazistas tiveram a certeza de que nenhuma nação receberia aqueles que desejavam expulsar.
               Entre os países com fronteiras fechadas aos judeus estava o Brasil. Se atualmente recebemos refugiados sem nos pautarmos por critérios raciais, no tempo da Segunda Guerra a política imigratória era seletiva e restritiva. A imigração era depositária das esperanças de parte das elites em “melhorar a composição étnica da população”.
               Excetuando as chamadas nações indígenas e seus descendentes, os demais habitantes do Brasil têm ancestrais de fora do continente – sejam eles africanos que vieram na condição de escravos ou europeus exploradores e imigrantes. Ao longo de alguns séculos, os africanos e seus descendentes se tornaram a maior parte da população. Mesmo antes do fim da escravidão, no século XIX, o contingente de negros no país preocupava as elites dirigentes, que se consideravam brancas e culturalmente ligadas às nações europeias. O incentivo à vinda de imigrantes europeus nas últimas décadas daquele século tinha como propósitos substituir a mão de obra escrava e contribuir para o projeto de “branqueamento” da população.
               Tal política teve continuidade no início da República. O novo século trouxe a paulatina absorção de um discurso de aparência científica para justificar projetos de evidente concepção racista. Boa parte dos intelectuais atribuía o atraso do país à “má formação étnica” dos brasileiros. Com o passar das décadas, acreditaram que o imigrante branco se assimilaria aos habitantes não brancos e que essa miscigenação tornaria a população mais clara e, portanto, mais próxima das nações desenvolvidas.
               Mesmo com diferentes pontos de vista, os defensores das teses de branqueamento identificaram-se com o eugenismo, que por aqui ganhou conotação e propostas específicas. Em 1929, o movimento eugenista brasileiro definiu a imigração como boa solução para a “melhoria da composição étnica do povo” e, graças ao seu lobby junto aos constituintes de 1934, conseguiu fazer implantar na Constituição um regime de cotas – cujo principal alvo de restrições eram os imigrantes japoneses. Ao longo do primeiro governo de Getulio Vargas (1930-1945), outros projetos dessa natureza foram colocados em prática. Em discurso de 1932, o presidente mostrou- se favorável ao “aperfeiçoamento eugênico da raça” para “apressar o progresso do país”. Seu governo seguiria essas premissas, acabando por afetar o destino dos refugiados judeus.
               Com a ascensão do nazismo em 1933, a política imigratória passava cada vez mais a ocupar a cúpula do Estado. E entre as justificativas para transformar os judeus em imigrantes indesejáveis estava a “infusibilidade” dessas pessoas: eles seriam inassimiláveis, por não contribuírem para o branqueamento da nação.
               Como os judeus viviam em diferentes países da Europa e o sistema de cotas estabelecido em 1934 não especificava a origem étnica dos indivíduos, alguns meses antes da instauração da ditadura do Estado Novo, em 1937, o governo brasileiro produziu a primeira das Circulares Secretas destinadas a orientar a restrição da emissão de vistos para estrangeiros de origem judaica. Até 1945, outras circulares e decretos foram publicados com o fim específico de impedir que estrangeiros considerados indesejáveis fossem recebidos na condição de imigrantes.
               Desde a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, a Europa vinha enfrentando o aumento da pressão pelo recebimento de refugiados internos. Com o avanço dos exércitos alemães sobre o continente, as ameaças e as perseguições perpetradas pelo nazismo espalhavam-se velozmente, levando cada vez mais pessoas a buscar desesperadamente países que lhes pudessem conceder refúgio e asilo.
               No Brasil, mesmo com as restrições impostas pelo Estado Novo, o contingente de estrangeiros que conseguiam entrar no país (por vezes utilizando-se de vistos temporários) seguiu aumentando até os primeiros meses de 1941. Favorecia-lhes o fato de o governo manter a política imigratória de inspiração eugenista, afinal, novos imigrantes eram considerados necessários ao desenvolvimento do país. A seleção implicava aspectos subjetivos e pouco precisos, o que tornava complexa a tarefa dos cônsules. E havia exceções que permitiam conceder vistos mesmo para os estrangeiros considerados “infusíveis”. Imigrantes “capitalistas” – ou seja, indivíduos com condições de realizar transferência de capital elevado – eram bem vindos, assim como pessoas de comprovada formação acadêmico-científica, que poderiam contribuir para o desenvolvimento do país.
               Essas brechas, porém, geraram críticas de setores do governo e da imprensa ao Ministério das Relações Exteriores, apontado como incompetente na tarefa de restringir a entrada de imigrantes indesejáveis. Se já a partir de 1938 o Brasil dera início a uma política imigratória altamente restritiva e controladora, as fronteiras se fechariam ainda mais com um decreto de 1941, que tirou do Itamaraty e passou para o Ministério da Justiça a responsabilidade de emitir vistos temporários ou permanentes. A partir de então, a imensa maioria dos que tentavam obter um visto em qualquer representação consular brasileira recebia um não diretamente. Raríssimos foram os diplomatas que se sensibilizaram com o drama dos refugiados do nazismo e emitiram vistos a despeito da orientação do governo Vargas – caso do embaixador brasileiro na França, Luiz Martins de Souza Dantas. Aquele ano também foi especialmente significativo em relação ao número de estrangeiros impedidos de desembarcar nos portos brasileiros por serem judeus. Em um único caso, no mês de outubro, cerca de 100 passageiros foram impedidos de desembarcar. Vinham em dois navios, Cabo de Boa Esperança e Cabo de Hornos, e tiveram que rumar para Buenos Aires e outros portos ao sul. Impedidos também de desembarcar ali, iam ser devolvidos à Europa quando uma negociação internacional logrou obter autorização para desembarque temporário na da ilha caribenha de Curaçao.
               Parte dos historiadores afirma que a política imigratória adotada pelo Brasil antes e durante a Segunda Guerra estaria influenciada pelo ideário nazi-fascista. Se isto de fato ocorreu, a quebra das relações diplomáticas com o Eixo, em 1942, deveria ter produzido mudanças no controle de entrada de estrangeiros no país. As evidências, no entanto, indicam que isto não ocorreu. Ao mesmo tempo, com o início da “Solução Final” adotada por Hitler, diminuiu drasticamente o número de pessoas ainda em condições de solicitar asilo, pois a política nazista impedia que os grupos perseguidos saíssem da Europa.
               Novas levas de imigrantes voltaram a procurar o Brasil após o fim da guerra. Mesmo com o término da ditadura Vargas, a política imigratória continuava semelhante ao período do Estado Novo: interessada em imigrantes considerados de boa fusibilidade. Os judeus já não significavam um “problema”: com a derrota do nazismo, sair da Europa não era mais uma questão de sobrevivência física e, a partir de 1948, com a criação do Estado de Israel, ficou afastada qualquer possibilidade de pressão internacional para que o Brasil recebesse mais refugiados daquele grupo.
               Oitenta anos depois do contexto histórico que levou ao Holocausto, são muitas as diferenças do quadro atual. Ainda assim, a responsabilidade humana em evitar a ocorrência de novos genocídios nos chama a perceber continuidades: a persistência de preconceitos e intolerância contribui para que, ainda hoje, muitos países do mundo se neguem a ampliar sua política de recepção a refugiados.

FÁBIO KOIFMAN É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO E AUTOR DE QUIXOTE NAS TREVAS: O EMBAIXADOR SOUZA DANTAS E OS REFUGIADOS DO NAZISMO (RECORD, 2002) E IMIGRANTE IDEAL: O MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E A ENTRADA DE ESTRANGEIROS NO BRASIL (1941-1945), (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2012).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 11 - nº 124 - junho 2016

Saiba Mais – bibliografia
BARROS, Orlando de. Preconceito e educação no Governo Vargas (1930-45). Capanema: Um episódio de intolerância no Colégio Pedro II. Rio de Janeiro: Cadernos avulsos da biblioteca do professor do Colégio Pedro II, 1987.
LESSER, Jeffrey H. O Brasil e a Questão Judaica: Imigração, diplomacia e preconceito. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
MILGRAM, Avraham. Os Judeus do Vaticano. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.            

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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

O delírio de um Brasil nazista

Novo livro de embaixador revela plano de Hitler: dividir a América do Sul, com o apoio da Argentina, em quatro países-satélites do III Reich.
          Durante a Segunda Guerra, numa rua do Rio de Janeiro, um agente secreto inglês esbarrou num cidadão alemão, que teve morte instantânea. Dentro da sua pasta foi encontrado um mapa exibindo um novo desenho da América do Sul. Por ele, vários países desapareceriam, e o território da Argentina, a grande beneficiária da divisão, cresceria consideravelmente, avançando em direção à Amazônia.
          Como os Aliados ganharam a guerra, o delírio nazista de transformar a América do Sul em colônia do III Reich não foi em frente. Mas forneceu ao acadêmico e embaixador Sérgio Corrêa da Costa os elementos para um livro interessantíssimo: Crônica de uma guerra secreta, que está sendo lançado [...] pela Editora Record. Misturando espionagem política, mistério, aventuras e impressões pessoais, o autor faz revelações surpreendentes sobre uma aliança entre a Argentina, na época governada por Juan Domingo Perón, e a Alemanha nazista, com vistas ao domínio da América do Sul.
          Jovem diplomata servindo em Buenos Aires entre 1944 e 1946, Corrêa de Castro teve acesso, "muito antes de James Bond nos ter ensinado o caminho", aos "recintos mais vigiados" do Archivo General de la Nación e conseguiu fotografar documentos ultrassecretos, nas suas palavras "altamente comprometedores do governo argentino".
          De fato, algumas frases de Perón reunidas pelo autor soam hoje quase inacreditáveis. "Uma vez caído o Brasil, o continente sul-americano será nosso", escreveu o então coronel Perón no manifesto do Grupo de Oficiais Unidos (GOU), em 1943, poucas semanas antes de assumir o governo. E acrescentou: "A luta de Hitler, na paz e na guerra, nos servirá de guia". A rivalidade histórica da Argentina em relação ao Brasil ganhou força quando o nazismo ascendeu ao poder na Alemanha.
          A ideia de Hitler não era dominar nosso país militarmente, mas por uma eficiente estratégia de infiltração que incluía pesados investimentos em propaganda. Disse ele: "Não desembarcaremos tropas como Guilherme, o Conquistador, para dominar o Brasil pela força das armas. Nossas armas não são visíveis. Nossos 'conquistadores' [...] têm uma tarefa mais difícil que a dos originais, razão pela qual disporão de armas igualmente mais difíceis".
          A seguir, trechos do capítulo 11 de Crônica de uma guerra secreta, que no livro se intitula "O desmembramento do Brasil". Nossa História agradece ao autor e à Editora Record pela autorização para a publicação.

"Criaremos no Brasil uma nova Alemanha. Encontraremos lá tudo de que necessitamos."
Adolf Hitler, 1933

          O jornalista francês Pierre Dehillotte, antigo redator do Temps e do Journal des Débats, dedicou-se intensamente ao estudo da Gestapo, sua organização, estruturas de comando e, notadamente, as atividades dos agentes enviados ao exterior. Correspondente em Berlim e, a seguir, em Viena e Praga, entre 1932 e 1938, pôde acompanhar muito de perto a ascensão de Hitler e a montagem dos planos nazistas de domínio da Europa. Foi, portanto, testemunha ocular dos dramas que sacudiram, consecutivamente, a Alemanha democrática, a Áustria independente e a Tchecoslováquia livre. Suas antevisões e profecias foram argutas e precisas, evidência de acuidade do observador político.
          Ao analisar o expansionismo alemão, deu-se logo conta de que não se limitava ao continente europeu. Concentrou, por isso, sua alça de mira nas organizações do Partido Nazista no exterior (AO), sob o comando do Gauleiter Ernst Wilhelm Bohle, com sede em Munique, a Auslanddeutschesverein. Como jornalista francês, Dehillotte procurou pretextos para visitar a sede da organização. Observou que nas salas contíguas ao gabinete do Gauleiter trabalhavam equipes de estatísticos, sociólogos, etnógrafos, técnicos e especialistas do Lebensraum (espaço vital) empenhados em planos de organização e emprego das populações nas áreas que integrariam a futura Grande Alemanha.
          O coordenador dos serviços com quem se entreteve chamava-se Herr Kurtfalkenraum, cordial e atento, cabelos grisalhos e uniforme da Wilhelmstrasse. Não recorreu a subterfúgios ou escusas e discorreu, com naturalidade, sobre os trabalhos em curso. Àquela altura - alguns anos antes do início do conflito - parecia normal que o Terceiro Reich procurasse a melhor maneira de dotar o povo alemão do espaço vital de que necessitava. Segundo os slogans hitleristas, uma vez que a distribuição das terras havia sido feita ao azar das conquistas de ontem - portanto de maneira injusta e antieconômica -, o status quo não deixava margem a uma distribuição equitativa das matérias-primas. O continente sul-americano, sobretudo o Brasil, com seus 8 milhões de quilômetros quadrados quase desabitados e inexplorados, bastava para comprovar a validade do teorema nazista dos espaços vitais a conquistar e a redistribuir. "A América do Sul", afirmavam os apóstolos do Lebensraum de ultramar, "fornecerá a solução definitiva ao problema demográfico europeu." Logo que "esse continente de mestiços se tornar um protetorado alemão", expressão atribuída a Adolf Hitler, "a emigração europeia deverá ser intensificada por um organismo especial e se dirigirá de preferência aos países latino-americanos".
          "Aqueles fichários, dossiês e atlas", escreveu Dehillotte, "cogitavam nada menos que da reorganização e emprego das futuras populações conquistadas da Grande Alemanha Nacional-socialista. Nesta seção especial e discreta", concluiu com fino humor, "pacientes estatísticos cortavam e recortavam as peles dos ursos árticos e antárticos antes de tê-los matado."
          (...)
          Como acabamos de ver, é antigo o gosto alemão pela geografia política, posta a serviço de desígnios de expansão territorial. Muito antes da confecção do mapa nazista em que foi redesenhada a América do Sul, outros ensaios foram feitos, invariavelmente levados a sério.
          Começo esta evocação do caso brasileiro pelos estudos do pensador pangermânico, Otto Richard Tannenberg, considerado, nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, o mais autorizado porta-voz do esquema de hegemonia mundial. No seu GrossDeutschland, die Arbeit des 20. Jahrhunderts (A Grande Alemanha, obra do século XX), publicado em Leipzig, 1911, Tannenberg estabelece o princípio da repartição das Américas Central e do Sul entre as grandes potências imperialistas, reservando para a Alemanha a zona subtropical banhada pelo Atlântico.
          Por que tantos "estados" nas Américas Central e do Sul? Simplesmente - pontifica Tannenberg porque Espanha e Portugal "se mostraram incapazes de governar países no ultramar". Ora, continua, os habitantes nada conseguiram de bom, pois tampouco se encontram em condições de se governarem. Um déspota tenta suplantar o outro, o que explica as contínuas revoluções e sangrentas guerras em proveito de algum tiranete, ávido de glória e de riqueza, enquanto se mantém o povo oprimido e na ignorância. Em contraste com a América anglo-saxã, em que os indígenas desapareceram quase por completo, nos demais países são os brancos que se encontram em via de desaparição. No Paraguai e no Peru, exemplifica, constituem apenas 14% da população. No Equador, o percentual desce a 7%, na Colômbia a 6%. O restante da população "se compõe, aproximadamente e em igual proporção, de mestiços e gente de cor, índios ou negros".
          Contra esse pano de fundo, Tannenberg descreve os contornos da grande "Alemanha do Sul", a ser implantada no nosso subcontinente. De acordo com seu mapa, abrangeria todas as terras ao sul de uma linha que começa no litoral atlântico do Brasil, na altura do Rio de Janeiro, e termina no Pacífico, em Antofagasta, o grande porto chileno exportador de cobre e nitratos. País fabuloso, abrangeria o Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul ("onde reina a cultura alemã"), Paraguai, o terço meridional da Bolívia ("por integrar a bacia do rio da Prata"), o Uruguai e as ricas províncias do nordeste argentino:
          "A América meridional alemã nos proporcionará, na zona temperada, um espaço de colonização onde nossos emigrantes conservarão sua língua e autonomia. Exigiremos, porém, que o alemão seja ensinado nas escolas como segunda língua. O Sul do Brasil, o Paraguai e o Uruguai são países de cultura alemã. O alemão passará a ser a língua nacional."
          Seria este o "Primeiro Estado Alemão Americano Independente". Primeiro, porque concebido como pedra angular de um outro, especialíssimo - a "Alemanha Antártica", menina dos olhos de vários geopolíticos alemães.
          Tal como no texto de Tannenberg, o atlas Deutschland und die Welt (Alemanha e o mundo), concluído pouco antes do início da Segunda Guerra, indica também as fronteiras da Alemanha Sul-Americana, em que o Sul do Brasil volta a aparecer, nitidamente, como colônia alemã.
          Ao evocar essa e outras demonstrações do imperialismo germânico, um ilustre pensador político uruguaio, Hugo Fernandez Artucio, assinala que, a despeito das aparências fantasiosas, vinham sendo objeto de séria consideração havia um século, talvez mais. Cita o grande estadista e pensador argentino Domingo Faustino Sarmiento, que transcreveu, no El Nacional, comentário de La Revue Politique et Littéraire, de 13 de maio de 1882, a propósito de dois artigos na revista Deutsche Rundschau sobre as futuras colônias alemãs. O primeiro procura demonstrar a necessidade de a Alemanha dispor de suas próprias colônias para receber os emigrantes que levam trabalho e indústria a países estrangeiros. As províncias do Rio Grande do Sul e do Paraná seriam particularmente adequadas, já dispondo de importante componente germânico. Argentina, Uruguai e Paraguai são também citados como ideais para a colonização alemã.
          "Não será necessário o emprego da força, pois o governo alemão somente interviria para assegurar aos seus nacionais os direitos consagrados nos tratado. A tarefa será empreendida por uma empresa privada, de enorme capital, a qual espalhará suas raízes em toda a Alemanha. O espírito que inspira o empreendimento fará com que, após um certo tempo, os países colonizados se transformem - ipso facto - em colônias alemãs. Tal como disse Bismarck: 'O fato cria o direito'."
          (...)
          Radicados no Brasil segundo planos traçados pelo governo alemão, os colonos encontraram um país em que o governo, se pouco ou quase nada fazia por eles, também não impunha restrições ao desenvolvimento de suas atividades. Portanto, um cenário ideal para os planos de subversão nazista. De modo geral, os colonos manifestavam discreto interesse pelo país, evitavam disputar cargos eletivos, procurando seguir com muito maior interesse o que se passava na mãe pátria. Casos como os de Lauro Muller e Adolfo Konder, governadores de Santa Catarina, eram relativamente raros. Lauro Muller, ministro das Relações Exteriores em 1913, renunciou ao cargo em protesto contra a decisão brasileira de romper com o Império Alemão, na Primeira Guerra Mundial.
          (...)
           A conjuntura brasileira em 1933-34 - primeiros anos do reinado de Hitler - oferecia um cenário particularmente favorável aos planos sinistros do nacional-socialismo. Os efeitos da depressão americana de 1929 ainda se faziam sentir. Nossas exportações continuavam em níveis baixíssimos, o governo Vargas ainda buscando se consolidar no poder, uma vez vencida a guerra civil paulista, porém sem lograr inverter a persistência de distúrbios aqui e acolá no imenso país. (...)
          Em São Paulo, os nazistas se deram conta de que se impunha cautela especial, por julgarem ser o estado mais "democrático" do país e representar a mais vigorosa oposição ao regime Vargas. O Partido Nacional-socialista, representado por K. von Spanus, era organizado em círculos, blocos e células. Chr. Wifler era o responsável pelos círculos, sendo os principais os do norte, leste, sul e oeste do estado, sob os codinomes "Sellge", "Syanpius", "Andriessen" e "Eisdendecker". As ordens do partido eram transmitidas exclusivamente por mensageiros e cada responsável usava um codinome e número de telefone também em código. Durante certo tempo, o partido chegou a manter colaboração estreita com a polícia estadual, o que não escapou ao atilado major Aurélio da Silva Py. Sua detida investigação da infiltração fascista no Sul do país revela que se alguém ousasse levantar a voz contra o Partido Nazista em reunião sindical, ou em qualquer outra, no estado de São Paulo, seria pouco depois detido pela polícia para averiguações. Líderes trabalhistas, estudantes e intelectuais de esquerda foram sequestrados, porém invariavelmente dados como "desaparecidos". O caso de maior repercussão foi o do assassinato de Tobias Warchawski, denunciado pela imprensa independente como mais um crime monstruoso de nazi-integralistas.
          Para a Alemanha, os imigrantes e seus descendentes - um milhão, ou quase, de pessoas de raça ariana - eram súditos do Reich, portanto com os mesmos direitos e obrigações dos que viviam na mãe pátria. Nessa dicotomia, obviamente, se encontrava a principal razão de choque com as leis brasileiras. Segundo o raciocínio alemão, Buenos Aires e Montevidéu, onde contavam com apoios amplos e seguros, somados a São Paulo, a Detroit sul-americana, ofereciam a possibilidade de transformar, a curto prazo, os respectivos parques industriais em potente indústria bélica. (...)
          Como já assinalei, um dos programas de Adolf Hitler era a incorporação pura e simples à Alemanha de todos os territórios onde houvesse minoria alemã. Em primeiro lugar, na Europa. Logo a seguir, na América do Sul, onde as atenções se concentraram na Argentina, no Brasil e no Chile, todos já com uma apreciável base étnica germânica. Dos três, a Argentina mereceu atenção prioritária. Além de ser o único país europeu na região, culturalmente superior aos demais, não tinha, por exemplo, o complicador do gigantismo brasileiro.
          O gigantismo, porém, poderia ser facilmente corrigido. Desde logo, os três estados do Sul, já devidamente germanizados, não tinham por que permanecer atrelados ao imenso complexo luso-afro-ameríndio. O Reich não abriria mão do milhão de Reichsãeutschen ou Volksdeutschen radicados no Brasil, todos sob proteção alemã. "Cada gota de sangue alemão precisa ser preservada", proclamava Ernst Wilhelm Bohle, Gauleiter da organização dos alemães no exterior. "Não pode haver pecado maior que o de renunciar voluntariamente ao sangue alemão!"
          Megalomania ou não, o fato é que as tensões teuto-brasileiras criadas pelo nosso programa de nacionalização das áreas de forte presença estrangeira deram lugar a reações extremas, inclusive à cogitação de - a curto prazo - separar do Brasil os estados sulinos. Em estranho relatório enviado a Berlim, o embaixador Karl Ritter estuda a posição geopolítica e estratégica desses estados, salientando a "inexistência de comunicações ferroviárias com o resto do país". Assim sendo, as autoridades centrais não teriam condições de restabelecer o controle sobre a região "em caso de ataque argentino (sic). Nesse caso", conclui, "somente os Estados Unidos poderiam opor-se a um ataque de Buenos Aires". Não se trata de invenção minha. O que acabo de assinalar se encontra, com todas as letras, em Documentos Diplomáticos da Alemanha, dossiê "Politische Abteilung", doe. N. Pol. IX, 341, de 3 de março de 1938.
          Nesse mesmo relatório, o embaixador Ritter comunica a existência de uma corrente no seio da colônia alemã, de que seria porta-voz um certo senhor Plugge, convencido de que a única possibilidade oferecida ao Reich de proteção ao elemento alemão consistia em separar a região do resto do país. Em outras palavras, os três estados do Sul se transformariam em colônia de Berlim, expressão literal usada. (...)
          Dizer que a Argentina poderia ter sido o trampolim para uma invasão do Sul do Brasil, com apoio alemão, e que o Rio Grande, Santa Catarina e Paraná, então isolados fisicamente do Brasil, viessem a constituir uma colônia alemã deve nos parecer hoje fantasia. Não, porém, se tivermos em mente que, em 1940-41, o Terceiro Reich era senhor absoluto da Europa, dispunha de bases na África, justo em frente do Brasil, frotas de submarinos, e contava com a cooperação das poderosas e bem-organizadas colônias alemãs na Argentina e no Sul do Brasil, já com seções do Partido Nazista em plena atividade.
          Não é segredo que gerações sucessivas de militares brasileiros estiveram persuadidas da inevitabilidade de uma guerra com a Argentina. Nossa região militar mais bem-equipada foi sempre a terceira, no Rio Grande do Sul, e o traçado de nossas estradas visou, por muito tempo, a não facilitar a penetração do inimigo.
          O fato de o Brasil ter mais do que o triplo da área e da população da Argentina constituiu, naturalmente, motivo de preocupação para gerações consecutivas de homens públicos, empenhados na reversão dessa cruel realidade.
          (...)
          Mesmo se Hitler perdesse - era o raciocínio -, os súditos do Eixo poderiam se deslocar com seus recursos financeiros e técnicos para a Argentina. Mas, se ganhasse, a Argentina seria a única nação americana com o direito de atravessar fronteiras e resolver definitivamente seus problemas geopolíticos, firmando-se no continente como a nação líder. Comentário de Mário Martins, o jornalista que renunciou à função burocrática no nosso escritório comercial em Buenos Aires para se concentrar na investigação do que estava realmente acontecendo à sua volta: "A Casa Rosada acompanhava a guerra na Europa como se fosse um espetáculo de bolsa de valores". A fórmula encontrada foi a cooperação subterrânea, via pseudoneutralidade que permitisse montar na América um trampolim contra as nações vizinhas, a começar pelo Brasil, que se preparava para lutar na Europa pela causa aliada, deixando as costas desguarnecidas e voltadas para as baionetas de Buenos Aires.

Fonte: Revista Nossa História - Ano 1 nº 12 - Outubro 2004

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Sem Palavras
Sem Palavras resgata as vivências dos descendentes de alemães sobre a perseguição ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial no Sul do Brasil, região colonizada por alemães no século 19. A Campanha de Nacionalização do presidente Getúlio Vargas e a entrada do Brasil na Guerra em 1942, contra os países do Eixo, aumentou a repressão aos estrangeiros e imigrantes daqueles países. O documentário mostra um dos lados da história, relatado por quem era criança e descendente de alemão nos anos 1940. A memória é subjetiva, porém verdadeira, mesmo quando parece distorcida dentro da história oficial, essa sim muito mais complexa.
 Direção: Kátia Klock
Ano: 2009
Áudio: Português
Duração: 52 minutos

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Era Vargas: 1930 - 1935

O período mais determinante da história brasileira no século XX é o assunto da coleção Era Vargas. Partindo da tomada do poder daquela que foi a personalidade brasileira mais marcante do século passado, o cineasta Eduardo Escorel aborda causas e consequências da transformação política que conduziu Getúlio Vargas à presidência, contextualizando os momentos marcantes do período, como o Tenentismo, a Revolta dos 18 do Forte, a chegada ao poder em 1930 e a Revolução Constitucionalista de 1932. Utilizando filmes inéditos e entrevistas atuais, a obra esclarece quais os fatores que facilitaram a ascensão de Vargas e como ele habilmente consolidou o seu poder, deixando um legado que definiu os rumos políticos e econômicos do Brasil pelas décadas seguintes. Era Vargas – De 30 a 35 é um documento definitivo para quem quer entender Brasil.
Para finalizar os documentários que vão de 1930 a 35, Escorel levou duas décadas. O diretor explica: “nesse tempo todo tudo muda, principalmente a concepção das coisas. E eu gosto de dizer que um trabalho como esse não é feito sozinho. Teve muita gente envolvida, muita pesquisa histórica. Ou seja, levamos 20 anos para contar cinco anos da história do Brasil”.

Direção: Eduardo Escorel
Ano: 1992
Áudio: Português
Duração: 196 minutos/Total
Parte 1 - 1930 - Tempo de Revolução / 48 minutos
Parte 2 - 1932 - A Guerra Civil / 48 minutos
Parte 3 - 1935 - O Assalto ao Poder / 98 minutos

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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A Humanidade segundo Hannah Arendt

Filme retrata produção de famoso livro da filósofa alemã em sua busca por responder qual é o caráter principal do Homem.
     O que torna um homem, Homem? Seriam os aspectos biológicos, uma junção de células que criam carnes, ossos, tendões, tecidos dos mais variados? Ou haveria algo além da mera questão evolutiva? Um caráter de humanidade, que diferencia o homem dos demais animais? Uma das mais importantes discussões que perpassa toda a história da filosofia, esta questão é o tema principal do filme “Hannah Arendt”, da diretora alemã Margarethe Von Trotta.
     O longa-metragem, que, em certos momentos peca por um certo exagero dos atores, o que tira a naturalidade das cenas, não é exatamente uma cinebiografia da filósofa alemã de origem judia que migrou para os EUA para fugir da Segunda Guerra Mundial. Foca em um determinado episódio na história da autora de As origens do totalitarismo que ilumina, provavelmente, a principal discussão da sua vida: qual é A condição humana [não por acaso, nome de outro de seus clássicos]?
     Trata-se de uma tentativa desafiadora de reconstituição dos caminhos percorridos pelo pensamento da filósofa na construção do que ela chamou de “banalidade do mal”. Desafiadora, porque instalada no campo do pensamento, do “indizível”. Daquilo que exigirá do expectador não apenas a compreensão racional de um diálogo despreocupado com a incompreensão do grande público, mas uma “epistemologia do tato”, como dizem alguns estudiosos do período renascentista. O olhar cuidadoso para a singularidade do humano em um fenômeno histórico que se tornaria paradigma universal da maldade.  
     Já morando em Nova York e com a sua vida completamente estabelecida, entre aulas na universidade, amigos e um marido a quem ela demonstra muito carinho, Hannah Arendt recebe a informação de que o famoso nazista Adolf Eichmann tinha sido preso pelo serviço secreto israelense em Buenos Aires e seria levado para julgamento em Israel. Ela, mesmo que não tivesse qualquer ligação direta com o caso, envia uma sugestão para a conceituada revista “The New Yorker” se oferecendo para cobrir, por eles, o processo.
     Já na “terra sagrada”, ela assiste à dura rotina de depoimentos de testemunhas, de vítimas que passam mal em júri, e do próprio Eichmann. Em vez de admitir qualquer culpa no extermínio de milhares de homens e mulheres, o alemão se declara um mero cumpridor de ordens, um homem que simplesmente obedecia ao Führer. Mesmo que para isso tivesse que matar o próprio pai, naquele momento, ele era um soldado sem direito a retrucar as ordens enviadas. Hitler era a lei.
     Para o julgamento, a diretora optou pelas imagens de época, absolutamente impactantes. Toda a vasta historiografia sobre o nazismo se vê confrontada com a espontaneidade do sujeito gripado, enjaulado diante do júri a dizer que sua função era fazer os vagões que traziam os judeus apenas seguirem seu curso. Através dos olhos fixos de Arendt não se vê a História do nazismo em julgamento, a tragédia humana do assassinato dos seis milhões de judeus em discussão, mas um homem, um burocrata, expropriado de sua capacidade de pensar.
     Hannah Arendt fica impressionada, com o argumento e com o aspecto do réu. Ele parece tão normal, tão comum, tão banal, tão humano... E se ele não é o autor da ordem, seria ele o responsável pelas mortes dos judeus nos campos de concentração? Se ele é apenas o instrumento da ação de um Estado totalitário, ele seria igualmente culpado pelos crimes?
     “As perguntas precisam ser feitas”, ela diz. Hannah Arendt passa a maior parte do tempo buscando a origem do incômodo que aquele sujeito provoca nela. A ausência de soberania do homem e não o julgamento da ilegalidade do Estado que ele poderia, naquele momento, representar. Na contramão da cultura ocidental que criou os conceitos de universalidade, identidade e homogeneidade, ao ponto de permitir a formação do totalitarismo, Arendt nos leva ao estranhamento do óbvio, do mais simples cálculo histórico que gerou a dicotomia demonização/vitimização como explicativa das catástrofes do século XX.
     A resposta para todas as questões apresentadas até o momento neste texto é a mesma, e é insinuada logo no início do filme.
     No início de sua vida intelectual, ainda bem antes da Segunda Guerra, Arendt decide ir estudar com um dos maiores filósofos do século XX, o igualmente alemão Martin Heidegger. Mesmo que anos depois Heidegger tenha colaborado com o regime nazista, os dois se aproximam e tem um caso de amor. Apesar das diferenças no campo político, os dois mantém uma relação bastante próxima durante toda a vida, “depois de 46 anos, como desde sempre”, ela diria em uma das inúmeras cartas trocadas entre ambos.
     Na cena em que a jovem Hannah se encontra com o já renomado professor, ele lhe pergunta: Então você quer aprender a pensar? Com a confirmação de Hannah, ele responde: O pensamento é algo solitário, e não é apenas racional, mas envolve as mais variadas emoções.
     A filósofa, já de volta a Nova York, se instala sobre o divã, fumando. Fica pensando o caso. Pensando o que tinha visto no julgamento, pensando as conversas que tinha tido com o seu mentor: “a morada do pensamento é um lugar de silêncio”.
     Em fins de 1969, ela chega a escrever sobre a importância da recordação para a história do pensamento. É o “aproximar-se da distância” que garante, segundo a filósofa, a possibilidade do pensar como uma aptidão mental.
     Hoje, talvez, a “distância” de Arendt em relação aos fatos possa ser considerada um tanto precoce. Foram apenas 15 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial até que ela pudesse afirmar, entre outras coisas, que a estratégia nazista consistiu em despersonalizar a sociedade e desumanizar suas vitimas ao ponto de criar uma zona ambígua entre a colaboração e a resistência, dentro e fora dos campos de concentração. Exemplos de como esse processo acontecia em todos os lugares, e não apenas nos campos, são os casos da maior parte dos países latino-americanos que criaram legislação para impedir a entrada de refugiados judeus. Ou a França de Vichy, que discute incansavelmente e sofre até hoje com suas dores de consciência.
     Com essa pequena “distância” de tempo, mas já tendo estourado o seu prazo, e demonstrando arrogância com as pessoas de fora do seu círculo de amizade, uma atitude quase exótica àquela personagem dócil de dentro de casa, Arendt entrega o texto final. Logo depois, esta obra seria transformada no livro "Eichmann em Jerusalém" e causaria a provável maior controvérsia na sua vida.
     Fazendo uma reportagem filosófica, digamos assim, Hannah Arendt não apenas desenvolve teses sobre o que viu ou pensou, mas também descreve o cotidiano do julgamento. Em uma de suas descrições, ela fala que houve uma espécie de conivência entre as lideranças judias e os comandos nazistas. Conivência essa que talvez tenha sido vista como uma forma de sobrevivência num primeiro momento, mas que, para ela, causou mais mortes no fim das contas.
     Essa passagem, que não era nem próximo do ponto principal a que ela se agarrava, lhe causou uma inundação de cartas e ameaças. Judia, ela era acusada de trair o movimento sionista. Mesmo que ela dizia que sua pátria não era a Alemanha, Israel ou os EUA, mas os seus amigos. “Nunca me senti como uma mulher alemã e já deixei há muito de me sentir como uma mulher judia”, afirmava desde os anos de 1950.
     Ao que parece, o pensamento construído por Arendt não resulta de um conflito de consciência, ou de um dever moral, mas de uma questão existencial. O que a filósofa queria deixar claro era que, para ela, Eichmann, assim como todos os homens e mulheres afetados diretamente ou indiretamente pelo nazismo, tinham perdido o dom mais precioso de suas vidas: a humanidade. Pensar não é uma atitude contemplativa, “é um ofício austero, longo e rigoroso”, é o que torna o ser Humano. E o totalitarismo tinha retirado a capacidade dos homens e mulheres de pensar, do jeito que Heidegger sugeriu. Essa é uma das características principais do totalitarismo.
     Fossem nazistas ou judeus, alemães ou poloneses, os homens e as mulheres se transformaram em seres sem vida, que ou repetiam ordens sem refletirem sobre, ou lutavam única e exclusivamente por sua sobrevivência. Para Arendt, o homem não sobrevive, o homem vive. Daí, de uma maneira geral, o totalitarismo nazista teria atingido a todos, sem determinações geográficas.
     O filme sugere que o que torna um homem, Homem é o ato de pensar, não no sentido de repetir automaticamente as decisões racionais, mas se envolver com as questões de maneira mais profunda, mais emotivamente, em suma, de maneira mais humana.
     Em uma carta de Hannah Arendt para Martin Heidegger datada de setembro de 1969, ela parece confirmar esse raciocínio:
     “Estamos tão habituados à antiga contraposição entre razão e paixão, espírito e vida, que nos espantamos em certa medida com a representação de um pensamento apaixonado, no qual pensar e viver se unificam. Este pensamento que se alça enquanto paixão a partir do simples fato de ter-nascido-em-um-mundo e então ‘procura seguir com o pensamento o sentido que vige em tudo o que é’ comporta tão pouco uma meta derradeira - o conhecimento ou o saber – quanto a própria vida.”
     E completa em seguida:
     “O fim da vida é a morte, mas o homem não vive por causa da morte. Ele vive porque é uma essência vital; e ele não pensa por causa de um resultado qualquer, mas porque é uma essência ‘pensante, isto é, meditativa’”.
     Ao fim, à janela, e fumando e pensando, como sempre, o ciclo do pensamento se fecha com o que parece ser mais próprio da filosofia partilhada por Hannah Arendt e Martin Heidegger. “De todas as críticas que recebi, ninguém foi capaz de me fazer aquela única que eu respeitaria. O mal não pode ser banal e radical ao mesmo tempo”.  Esta é a “qualidade cáustica” do pensamento: “ele deve se comportar em relação aos seus próprios resultados de maneira caracteristicamente destrutiva ou crítica”.

Direção: Margarethe Von Trotta
Ano: 2013
Áudio: Inglês/Alemão/Legendado
Duração: 113 minutos

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Filosofia em tempos sombrios
Para compreender a terrível novidade política do século XX – o totalitarismo e o Holocausto – a filósofa Hannah Arendt elaborou conceitos inéditos
     Quando as teorias conhecidas se tornam incapazes de dar conta dos horrores da realidade, é preciso imaginar novas formas de pensar. Hannah Arendt foi uma das poucas personalidades da história intelectual do século XX a se propor esta tarefa. No seu caso, isto se deu de forma articulada com sua trajetória pessoal, já que ela, judia, acompanhou de perto o que se passou na Alemanha de Hitler.
     Hannah Arendt nasceu em 1906, em uma família judaica, de Koenisgberg, na Alemanha oriental. Teve uma educação laica e muito cedo se interessou por filosofia, teologia e literatura. Aos 18 anos entrou para a universidade em Marburgo, onde conheceu um jovem professor, Martin Heidegger (1889-1976), com quem teve um relacionamento e de quem ficaria próxima até sua morte, com alguns longos intervalos, inclusive por causa da colaboração do filósofo com o regime nazista. A influência de Heidegger sobre seu pensamento é enorme. Na época, ele preparava Ser e tempo, que viria a ser o seu livro mais importante, publicado em 1927. Pode-se imaginar que Hannah Arendt tenha sido uma leitora atenta do texto em elaboração.
     Ela estava em Berlim quando os nazistas tomaram o poder, em 1933. Foi presa e conseguiu escapar para Paris, onde viveu até 1940. Com a invasão da França, foi recolhida em um campo de refugiados. De novo escapou, chegando finalmente a Nova York em março de 1941.
     Foi nos Estados Unidos, em 1943, que tomou conhecimento da existência dos campos de concentração na Europa. A descoberta foi decisiva para a elaboração de toda a sua obra, como ela afirmou em uma entrevista de 1964. Explicou a certa altura: “Foi na verdade como se um abismo se abrisse diante de nós... Auschwitz não poderia ter acontecido. Lá se produziu alguma coisa que nunca chegamos a assimilar”. A filósofa constatou que não dispunha de recursos conceituais para explicar a terrível novidade. Todas as noções herdadas da tradição se mostravam inadequadas para descrevê-la. Nos anos seguintes, Hannah Arendt concentrou esforços na preparação de uma interpretação da experiência política central do século XX: o totalitarismo.
     Seu livro Origens do totalitarismo, lançado em 1951, logo chamou a atenção. Nele, mostrava que os regimes totalitários eram os únicos a explorar politicamente a situação de solidão do homem de massas surgido nas sociedades industriais. O totalitarismo é mais radical que qualquer forma de tirania ou de ditadura. Estas dependem do isolamento político dos homens, mas mantém intactas tanto a esfera privada quanto as atividades intelectuais. O nazismo e o comunismo – as duas experiências a que Hannah Arendt aplica o conceito de totalitarismo – devassaram a vida privada e reduziram toda a produção intelectual às ideologias, explicações fechadas do mundo. Com sua lógica implacável, as ideologias têm a função de justificar o terror nos regimes totalitários.
     A interpretação de Hannah Arendt contrariava uma visão corrente que definia o totalitarismo como forma exacerbada de autoritarismo. A filósofa, muito ao contrário, entendeu que o totalitarismo surge da quebra da autoridade política. Os regimes totalitários são a expressão da crise da política, acentuada no final do século XIX com as várias formas de imperialismo.
     Nos anos seguintes, Hannah Arendt ampliou seu diagnóstico dos impasses vividos no mundo moderno. Ela afirmou que nossa civilização se funda em um tripé formado pela religião, pela tradição intelectual e pela autoridade política. Desde o século XVI, em momentos diferentes, cada uma destas bases ruiu. A Reforma Protestante provocou o abalo da religião, as descobertas científicas do século XVII puseram por terra a maneira tradicional de pensar e, por último, o surgimento dos regimes totalitários desvendou a dimensão política da crise da modernidade.
     O principal livro em que Hannah Arendt tratou da crise do século XX foi Entre o passado e o futuro (1961), no qual reuniu ensaios sobre temas tão diversos como história, autoridade, tradição, liberdade, cultura e educação. Para a autora, esses textos eram exercícios de pensamento e, por isso, apresentavam mais indagações do que respostas. O cenário do mundo contemporâneo, que surge nestes ensaios, é o de um tempo sombrio, a exigir uma severa reconsideração da história.
     Hannah Arendt alinhava-se assim a autores como Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Walter Benjamin (1892-1942), de quem fora amiga. Como eles, avaliou com rigor os impasses da contemporaneidade e expôs sua perplexidade. Ao mesmo tempo, os três não foram filósofos negativistas. Entenderam que a experiência de crise tem também uma dimensão liberadora, e se indagaram: quem sabe, depois do colapso da tradição, poderemos ver com os olhos livres e ter acesso a novas formas de agir e de pensar?
     Há nos escritos de Hannah Arendt esta dupla preocupação: propor um diagnóstico de sua época e abrir caminho para definições inovadoras da política e da própria atividade do pensamento. Publicado em 1958, o livro A condição humana é considerado sua maior contribuição para a teoria política. Além de ter um viés histórico, presente sobretudo no último capítulo, “A Vita Activa e a  Era Moderna”, que aponta o fenômeno da alienação como principal característica da modernidade, seu objetivo central é elaborar uma teoria da ação, a atividade humana que constitui a matéria-prima da vida política.
     A vita activa, como ela chamou, abriga todas as atividades do homem no seu contato com o mundo. Elas são três: o labor, isto é, o processo biológico responsável pela manutenção da vida; o trabalho, que cria um ambiente estável e duradouro para os homens; e a ação, que se dá quando os homens estabelecem relações entre si. É na vida política que os homens experimentam sua capacidade de agir. Hannah Arendt destacou dois aspectos centrais da ação para a conceituação da experiência política: a imprevisibilidade e a irreversibilidade. Nunca somos senhores dos processos que desencadeamos com nossas iniciativas e, diferentemente do que ocorre no contato com a natureza, não podemos desfazer as ações que começamos.      Os únicos recursos para lidar com isto são a nossa capacidade de prometer e conseguir alguma estabilidade e de perdoar e estabelecer um novo começo.
     Hannah Arendt dedicou-se também a examinar a história das revoluções modernas, a francesa e a americana, em Sobre a Revolução (1963). O livro antecipa em muitos pontos a revisão do significado da Revolução Francesa, que seria feita nas décadas seguintes e abalaria o tom exclusivamente entusiástico da história oficial. Esta continua sendo uma das obras mais brilhantes sobre história moderna, apesar do tom desencantado dos últimos capítulos.
     Renomada nos Estados Unidos desde a publicação de Origens do totalitarismo, Hannah Arendt era muitas vezes chamada a debater temas daqueles tempos – o conflito racial, a corrida espacial, o movimento estudantil, a política do Pentágono, a tensão na Palestina, a situação alemã do pós-guerra, o Estado de Israel. Sua correspondência com o mestre e amigo Karl Jaspers é um precioso depoimento sobre o mundo no segundo pós-guerra.
     Em 1960, foi incumbida de uma missão inédita e histórica: como correspondente da revista The New Yorker, viajou para Jerusalém para assistir ao julgamento do nazista Adolf Eichmann. Sua série de reportagens foi reunida, três anos depois, no livro Eichmann em Jerusalém, que trazia o subtítulo Um relato sobre a banalidade do mal. A publicação provocou uma longa e tensa polêmica envolvendo basicamente o significado do subtítulo do livro. A autora foi acusada de considerar banais os crimes de Eichmann, quando na verdade o que fazia era chamar a atenção para a futilidade de suas motivações. Abatida com as reações negativas ao livro, inclusive as de amigos próximos, ela também sofreria naqueles anos a perda do marido, Heinrich Blücher, e de Karl Jaspers, seu orientador de doutorado e interlocutor de longa data.
     Nos últimos anos de vida, Hannah Arendt retornou à filosofia. Deu início à obra A vida do espírito, em que se ocuparia do pensar, do querer e do julgar. Toda atividade do espírito, especialmente o pensamento, depende da interrupção do contato imediato com o mundo. Esta postura desinteressada é fundamental para serem postos em questão os preconceitos e os hábitos mentais estabelecidos. Por isso mesmo, ela argumentava que Eichmann praticara seus crimes porque fora totalmente incapaz de tomar distância e criticar as ordens que recebia. A vida do espírito descreve um movimento em dupla direção: de um lado, o pensamento promove o afastamento do mundo, do outro, o juízo assegura uma aproximação. Hannah Arendt dedicava-se à última parte, sobre o juízo, quando morreu, em 1975, em Nova York.
     No prefácio do belo livro Homens em tempos sombrios, em que retrata algumas figuras centrais do século XX, Hannah Arendt afirma que essas personalidades são como pequenas luzes a servir de orientação em épocas de sofrimento e perplexidade. Trata-se de uma definição perfeita para ela mesma. Em nossa própria época, sua figura é iluminadora.
Eduardo Jardim é autor de A duas vozes: Hannah Arendt e Octavio Paz (Civilização Brasileira, 2007) e Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início (Civilização Brasileira, 2011).

SAIBA MAIS - Bibliografia
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
SOLJENÍTSIN, Alexandre, Arquipélago Gulag. São Paulo e Rio de Janeiro: Difel, 1976.