“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Questão de fé

Ideais de liberdade religiosa e ensino laico puseram a Maçonaria em rota de colisão com a Igreja Católica, num conflito que, no Brasil, culminou com a prisão de bispos em 1874.
Eliane Lúcia Colussi
          A historiografia brasileira dedicou pouco espaço aos estudos sobre a Maçonaria. Em 1939, Gustavo Barroso (1888-1959) chamou a atenção sobre a importância da instituição maçônica na sua História secreta do Brasil. Um dos principais expoentes do pensamento conservador-católico, o autor afirmava que a história brasileira poderia ser explicada através da teoria do complô judaico-cabalístico-maçônico. A conspiração, que combinava elementos místicos e étnicos, agia subterraneamente e seria a responsável por muitos dos desfechos da política brasileira.
          Diversos mitos presentes até hoje na Maçonaria no Brasil tiveram sua origem nas teses de Barroso, entre os quais ela ser fonte de influência na política. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a ordem fez pesada oposição ao absolutismo e à Igreja, congregando a elite econômica e intelectual ascendente. Essa postura gerou uma série de conflitos com o clero, que reagiu tentando restaurar e até mesmo endurecer um catolicismo autoritário, quase medieval.
          O crescente desprestígio do catolicismo no século XIX motivou a Igreja a adotar políticas que revigoraram o chamado ultramontanismo - movimento que pregava a retomada da autoridade papal "além das montanhas" que separavam a Itália do resto da Europa. O ultramontanismo foi uma reação a leis que, nos países católicos, subordinavam a Igreja à autoridade do Estado, como acontecia no Brasil. Do outro lado, o pensamento anticlerical reunia um amplo leque de pensadores, incluindo liberais, maçons, nacionalistas, positivistas, anarquistas e socialistas.
          O confronto entre clérigos e maçons recrudesceu quando repercutiram no Brasil os ventos da política de romanização católica. Implementada pelo Papa Pio IX (1848-1879), essa política pretendia, a partir da retomada de posicionamentos conservadores, do prosseguimento de uma política de centralização da Igreja em torno da figura do papa e da intransigência liberal, reverter o quadro negativo enfrentado pelo catolicismo em escala mundial.
          Um dos espaços importantes na disputa entre os posicionamentos clericais e anticlericais foi a política institucional. Os maçons transitavam com muita intimidade neste terreno. Muitos pertenciam ao Partido
Conservador e outros tantos, ao Partido Liberal. A Maçonaria não orientava seus integrantes a seguirem uma ou outra corrente política. A liberdade de expressão tanto religiosa como política, constituía-se em ponto fundamental a ser respeitado pelos maçons.
          Tal postura não significava, porém, que a Maçonaria evitasse exercer algum tipo de influência no cenário político. No período em que se radicalizou a luta entre a ordem e a Igreja Católica, houve diversas iniciativas que revelaram a necessidade de uma atuação mais intensa dos maçons na política. Tratava-se de defender a liberdade de imprensa e discutir temas que envolviam a relação de Igreja e Estado, como o ensino religioso na rede pública, subsídios para a vinda de padres estrangeiros para o Brasil e a destinação de recursos para a construção e reforma de igrejas.
          As irmandades religiosas foram outro espaço de disputas entre Maçonaria e Igreja Católica, especialmente a partir de 1872, quando aconteceu a chamada Questão Religiosa. Até então, era pública a presença de muitos integrantes do clero nas lojas maçônicas e de maçons nas irmandades religiosas - a maioria dos integrantes da Maçonaria no Brasil era formada por católicos. Apesar da aparente contradição, esse fato estava em sintonia com a situação mundial da ordem: a religião predominante num país tende a ser a mais comum dentro das lojas locais.
          A Igreja Católica no Brasil, porém, mobilizou-se contra essa situação e passou a contra-atacar, publicando bulas e cartas pastorais condenando a Maçonaria e as sociedades secretas. Os documentos de condenação previam várias penalidades aos anticlericais, incluindo a expulsão de padres maçons que não abjurassem a ordem e a suspensão dos trabalhos das irmandades e confrarias que estivessem sob suspeita de influência maçónica.
          No início da década de 1870 o pensamento ultramontano já dominava o clero brasileiro. Havia um conflito de consciência entre a lealdade às diretrizes da Santa Sé e às leis do Império. A Constituição de 1824 determinava que a publicação e aplicação no Brasil de decretos, bulas e cartas papais dependiam do beneplácito (consentimento) do imperador. Em 1872, os bispos de Olinda, d. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, e de Belém, d. Antônio de Macedo Costa, resolveram cumprir as ordens de Roma. Desobedecendo ao beneplácito, suspenderam as irmandades religiosas que haviam se recusado a expulsar os maçons de seus quadros.
          Em muitas cidades do Brasil ocorreu uma verdadeira caça às bruxas no interior das irmandades. Houve até mesmo a interdição dos templos de irmandades que não quiseram excluir das suas fileiras os membros maçons. Em 16 de janeiro de 1873, d. Vital lançou o interdito, como penalidade pela desobediência de expulsar os maçons de seus quadros, à Irmandade do Santíssimo Sacramento. No Pará, d. Macedo Costa editou uma pastoral em 25 de março de 1873 proibindo a presença de maçons nas irmandades. Foram punidas as Irmandades da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos e da Ordem Terceira de São Francisco.
          As irmandades recorreram ao imperador que ordenou aos bispos que cancelassem a suspensão. Como eles se recusaram a obedecer, foram presos e condenados "no grau médio do Artigo 96 do Código Criminal que previa quatro anos de prisão com trabalhos". Anistiados em 1875, os prelados mantiveram suas decisões contra as irmandades, o que contribuiu para que as relações entre Igreja e Império ficassem cada vez mais estremecidas. Por trás da presença ou não de maçons nas irmandades religiosas grande tema da Questão Religiosa foi a subordinação da Igreja Católica ao Estado brasileiro.
          Além da liberdade política e religiosa, a educação popular foi sempre um tema muito caro à Maçonaria, com ideias comuns à dos liberais no século XIX. Eles acreditavam que a sociedade moderna, necessariamente laica e secular, originária da revolução intelectual dos finais do século XVIII, deveria assentar-se no conhecimento científico e racional, eliminando os vestígios medievais da influência católica.
          As divergências entre as duas instituições adquiriram contornos de uma disputa político-institucional na educação. A ideia que se tinha era a de que por meio da educação das crianças e dos jovens se construiria o "futuro". Mas qual seria esse futuro? Para a maçonaria, ele estava intimamente ligado ao racionalismo/cientificismo, a modernidade e ao progresso. Para tanto era fundamental retirar das escolas públicas a obrigatoriedade do ensino religioso. Uma das vitórias nessa luta foi um decreto de 1874, que dispensava das aulas de religião os alunos não católicos. O fim do ensino religioso obrigatório só viria com a Constituição republicana de 1891. A Igreja Católica lutou bravamente contra a adoção do sistema educacional laico no Brasil. Seu discurso alertava os católicos contra “o falso brilho das doutrinas da época".
          É possível compreender o complexo quadro político e cultural brasileiro do século XIX também a partir da luta dessas duas instituições. O campo das ideias e das disputas em torno delas foi muito mais amplo do que os posicionamentos anticlericais e clericais abordados aqui. Num quadro em que a vida social se desenvolvia em poucos espaços públicos, a Maçonaria tornou-se efetivamente um lugar onde ocorria a sociabilidade da maior parte da elite. A Igreja Católica precisou empenhar-se muito para recuperar os espaços perdidos ou, talvez, até então não consolidados.

Eliane Lúcia Colussi é professora de História na Universidade de Passo Fundo (RS) e autora de A maçonaria gaúcha no século XIX. 3ª ed. Passo Fundo: Ediupf, 2003.

Saiba Mais – Links

domingo, 2 de junho de 2019

Cabanada, o perigo vem das matas

Durante uma guerra que durou três anos, rebeldes "cabanos", lutando por terra e liberdade, aterrorizaram os senhores de engenho em Pernambuco e Alagoas.
Janaina Mello
          O fato de os rebeldes morarem em habi­tações rústicas e muito pobres deu no­me - Cabanada - ao movimento que convulsionou o sul de Pernambuco e o norte de Alagoas entre 1832 e 1835. O nome pegou rápido. Se no princípio os sublevados eram chama­dos de "facínoras" nas cartas trocadas por autorida­des militares, a partir de 1833 eles já são denomina­dos de "cabanos" - o que não deixa de ser um sinal de reconhecimento. Mas, afinal, quem eram os cabanos? Eram índios aldeados, brancos e mestiços lavradores, moradores nas periferias dos engenhos, além de ne­gros fugidos das plantações, organizados em mo­cambos. Eles entendiam de luta. Nos seus embates com as forças militares provinciais, usavam táticas de guerrilha, assimiladas pela população pobre - lições passadas de geração a geração - ainda nos tempos das invasões holandesas, no século XVII.
          Pelas formas tradicionais de combate era difícil capturá-los. Conheciam como ninguém a região. Os ataques de surpresa, seguidos de recuos rápidos pa­ra dentro das matas, com a utilização de "trilhas quase intransitáveis", deixavam os oponentes des­norteados e costumavam desmantelar a repressão governista. Na correspondência entre o presidente da província de Pernambuco, Manuel Zeferino dos Santos (14/11/1832 - 27/9/1833), e o ministro do Império Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (13/9/1832 - 23/5/1833), constam, de fato, muitas queixas quanto aos insucessos da repressão aos ca­banos de Alagoas. Pernambuco, por seu turno, esta­ria arcando com o ônus do combate nas duas províncias sem possuir homens suficientes nas tropas de linha, já que as forças militares eram compostas por civis recrutados compulsoriamente. Estes deserta­vam do campo de batalha em grande quantidade, devido ao atraso no soldo e à preocupação com as privações por que passavam suas famílias por causa de sua ausência no trabalho agrícola.
          Havia na época muita exaltação nas cidades. Dis­putavam espaço na cena urbana os moderados (plan­tadores e comerciantes defensores do equilíbrio, do Estado forte e centralizado, sem incorporação de populares), os exaltados (proprietários rurais, militares, padres, funcionários públicos e médicos defensores da soberania popular, do federalismo, valorizando os pobres) e os restauradores (que pregavam a centraliza­ção absolutista, com a volta do tradicionalismo por­tuguês e a recondução de d. Pedro I ao trono). Mas, para os políticos da Corte, o campo é que era um es­paço instável e preocupante.
          Num relatório de 1841, quando aliás já tinha terminado a Cabanada, o ministro da Justiça Paulino José Soares de Souza, em nome do Partido Conservador, ainda alertava seus pa­res sobre como podiam ser perigosas as ideias "das gentes do interior" não submetidas às leis do governo. Outro político, Justiniano José da Rocha (1812-1862), em artigos publicados no jornal O Brasil, ao se referir aos pobres do país, ressaltava o "baixo ní­vel de civilização dessa gente", e mais a ausência de crença moral, de fé religiosa e de amor ao trabalho.
          A insurreição cabana, com sua diversidade étnica, estava associada a demandas sociais, tais como o direi­to à terra, à liberdade, à justiça e à prática religiosa al­mejadas por negros, indígenas e trabalhadores livres. Mas os cabanos não eram todos pobres. A primeira fa­se da revolta foi capitaneada por proprietários, entre eles Domingos Lourenço Torres Galindo e Manuel Afonso de Melo. Alguns haviam participado da sedi­ção militar de abril do mesmo ano, conhecida como Abrilada, defendendo a restauração de d. Pedro I, em oposição ao governo liberal moderado instalado nas províncias e na Corte. Mas, acostumados ao luxo e a privilégios, não estavam preparados para a vida nas matas. Enfrentando de inimigos armados a insetos, alimentando-se de frutos silvestres e larvas, tendo seu vestuário esgarçado por espinhos e galhos, foram facil­mente capturados ou mortos em combate. Outros, em desespero, se renderam às forças governistas.
          Índios e negros estavam mais habituados aos rigores da na­tureza. Em 1832, a população indígena ingressou na guerra cabana, atemori­zando os senhores de en­genho. Eram eles tapuias-kariris, originá­rios do Terço Paulista (planalto do Piratininga), cujos antepassados tinham sido trazidos para a região, no século XVII, por Domingos Jorge Velho. A partir de 1833, o conflito se intensificou com a presença de escravos fugidos dos engenhos de açú­car ou conduzidos à guerra pelos interesses po­líticos dos próprios senhores.
          Em 1834, os negros "papa-méis" (na fala regional, escravos fugitivos que se alimentavam de mel silvestre nas matas) já eram maioria entre os cabanos. As epidemias e a escassez de alimentos, resultante da destruição dos roçados de milho pelas tropas go­vernistas, reduziram o número de ín­dios e lavradores nas fileiras revolto­sas. No governo de Manuel de Carva­lho Pais de Andrade (17/1/1834 -11/4/1835), em Pernambuco, as pro­postas de anistia, com oferta de roupas, alimentos, re­médios, sementes e instrumentos para o cultivo da terra, também esvaziavam o movimento.
          Os negros estavam excluídos dessa negociação. A eles - que buscavam a liberdade - só restava retornar à escravidão depois da guerra, e por isso não se ren­deram. Em 1834, quando os combates arrefeceram com a deserção dos "livres", os negros fugidos man­tiveram a resistência nas matas. A "guarda negra" -como se refere aos seus homens Vicente Ferreira de Paula, líder dos cabanos a partir de 1832, em cartas publicadas no Diário da Administração Pública de Pernambuco - é objeto de grande preocupação para as autoridades provinciais.
          Ao atacar os engenhos para libertar escravos, os úl­timos cabanos interferiam na lógica da produção capitalista, desmoralizando a disciplina necessária ao domínio senhorial sobre terras e homens e a própria economia açucareira da região fronteiriça. Os negros papa-méis preferiam a morte em combate, preservando sua liberdade até o último instante. Constituíram, no Riacho da Mata, entre o sul de Pernambuco e o norte de Alagoas, um espaço para sobrevivência de sua economia de coleta, roçado e usos e costumes bem di­ferenciados do modo de vida do branco, como o des­pique (troca de mulheres) na reprodução do grupo (a criação de uma comunidade de filhos, onde a mulher casada se relaciona com outros homens. Viúvas parti­cipam, estabelecendo uma rede de ajuda mútua, cui­dados e trabalhos domésticos entre os envolvidos).
          A Cabanada adquiriu dimensão de gravidade na­cional justamente por tocar em pontos decisivos pa­ra a economia agroexportadora: a posse de terras por homens livres e a liberdade dos escravos.
          Se, no final, as lutas entre liberais, moderados e exaltados não trouxeram melhorias aos pobres do campo, a guerra cabana representou pelo menos uma interrupção do direito senhorial, em processo efetuado "de baixo para cima". Os saques e incêndios contra os engenhos significaram não apenas a sub­versão da ordem dominante, mas a apropriação, por inversão e destruição, do patrimônio senhorial.
          Por fim, vieram a pacificação intermediada pelo bispo de Olinda, d. João Marques Perdigão, a con­quista das matas pelas tropas governistas, as prisões, a repressão aos quilombos de Pernambuco e aos proprietários cúmplices dos cabanos. Os índios fo­ram reconduzidos aos aldeamentos. A abertura de estradas no interior reduziu o espaço de conflitos. Os remanescentes da revolta seriam utilizados em obras públicas ou recrutados à força para dar com­bate à Revolução Farroupilha, no sul do país. Só em 1850, 15 anos depois de terminado o conflito, o líder Vicente Ferreira de Paula foi aprisionado numa em­boscada. Mas a memória cabana permaneceria ain­da por muito tempo a assustar, como um fantasma, os grandes latifundiários da região.

Janaina Mello é professora assistente de História do Brasil na Universidade Estadual de Alagoas (FUNESA/ESPI) e doutoranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Fonte: Revista Nossa História - Ano 4 nº 37 - Nov. 2006

Saiba Mais: Link

sábado, 1 de junho de 2019

A guerra do vintém

Exploradas por militantes republicanos, manifestações contra taxa sobre transporte urbano tumultuam capital do Império e deixam mortos e feridos pelas ruas.
José Murilo de Carvalho
           No dia 28 de dezembro de 1879, a capital do Império viu algo inédito desde 1863, quando o Brasil rompeu relações com a Inglaterra por conta da Questão Christie: a multidão protestando na rua. A manifestação aconteceu no campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, em frente ao palácio imperial. Cerca de cinco mil pessoas, lideradas por um militante republicano, o médico e jornalista Lopes Trovão, reuniram-se para entregar a d. Pedro II uma petição solicitando a revogação de uma taxa de 20 réis, um vintém, sobre o transporte urbano, ou seja, bondes puxados a burro. O vintém era moeda de cobre, a de menor valor da época. A polícia não permitiu que a multidão se aproximasse do palácio. Enquanto os manifestantes se retiravam, o imperador mandou dizer que receberia uma comissão para negociar.
          Mas Lopes Trovão e outros militantes republicanos, buscando tirar o máximo proveito político da ação da polícia, recusaram o encontro. Divulgaram um manifesto dirigido ao soberano, convocando-o a ir ao encontro do povo. A Gazeta da Noite de Lopes Trovão e panfletos distribuídos pela cidade passaram a pregar o boicote da taxa e a incitar a população a reagir com violência, arrancando os trilhos dos bondes. Outra manifestação foi convocada para o dia 1º de janeiro, data da entrada em vigor da taxa, agora no centro da cidade, no Largo do Paço, hoje Praça 15 de Novembro.
          Nesse dia, a taxa estava sendo paga até que, ao meio dia, a multidão se reuniu no local previsto. Percebendo talvez a enrascada em que se metera, Lopes Trovão não incitou a multidão à ação. A massa moveu-se, então, pelas ruas do centro aplaudindo as redações dos jornais de oposição e se dirigiu ao Largo de São Francisco, ponto final de várias linhas de bonde. Em frente ao prédio da Gazeta da Noite, o próprio Trovão fez um apelo aos manifestantes para que se dispersassem. Mas àquela altura ele já perdera o controle dos acontecimentos. A massa popular concentrou-se nos arredores da Rua Uruguaiana e do Largo de São Francisco. O delegado que comandava as tropas da polícia pediu reforços ao Exército, mas, antes que a ajuda chegasse, ordenou à polícia que dispersasse a multidão a cacetadas.
          A um grito de “Fora o vintém!”, os manifestantes começaram a espancar condutores, esfaquear mulas, virar bondes e arrancar trilhos ao longo da rua Uruguaiana. Dois pelotões do Exército ocuparam o Largo de S. Francisco, postando-se parte da tropa em frente à Escola Politécnica, atual prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. O povo, que só detestava a polícia, aplaudiu a tropa. Mas alguns mais exaltados passaram a arrancar paralelepípedos e atirá-los contra os soldados. Por infelicidade, um deles atingiu justo o comandante da tropa, tenente-coronel Antônio Enéias Gustavo Galvão, primo de Deodoro da Fonseca, militar que uma década depois se tornaria o primeiro presidente do Brasil. O oficial descontrolou-se e ordenou fogo contra a multidão.
          As estatísticas de mortos e feridos são imprecisas. Falou-se em 15 a 20 feridos e em três a dez mortos. Entre os últimos, estavam estrangeiros e o flautista Loló, condutor da Cia. de São Cristóvão, atingido por uma pedrada. A multidão dispersou-se e, salvo pequenos distúrbios nos três dias seguintes, estava findo o motim do vintém. A cobrança da taxa passou a ser quase aleatória. As próprias companhias de bondes pediam ao governo que a revogasse. Desmoralizado, o ministério caiu a 28 de março. O novo ministério revogou o desastrado tributo.
          A capital do Império estava acostumada a distúrbios de rua. Vivera em quase permanente agitação entre 1820 e 1840. Nessa última data, o povo exigiu na rua a maioridade do imperador. A partir daí, no entanto, refletindo a estabilização política do Segundo Reinado, reduzira-se muito a agitação. A tranquilidade das ruas só fora quebrada nos protestos contra Christie, quando a multidão, liderada por Teófilo Otoni, ameaçou comerciantes ingleses e aplaudiu a ação do imperador. O que a trouxe de volta em 1879?
          Em 1878, depois de 10 anos de domínio conservador, subira ao poder o gabinete liberal de Sinimbu, encarregado de fazer a reforma eleitoral. Dividido por conflitos internos, desagradou a gregos e troianos. Os republicanos estavam furiosos com Lafaiete Rodrigues Pereira, ministro da Justiça, que assinara o Manifesto Republicano de 1870, e agora se bandeava para o campo liberal. A principal fonte de insatisfação, no entanto, vinha da política fiscal do ministro da Fazenda, Afonso Celso de Assis Figueiredo, futuro visconde de Ouro Preto, que tinha fama de excelente administrador e financista. Para enfrentar as dificuldades financeiras geradas pelos enormes gastos com a grande seca de 1877 no norte do país, propôs ele no projeto de lei orçamentária de 1879, aprovado pela Câmara, vários aumentos de impostos antigos e a introdução de alguns novos. Atingiu o bolso de todos, proprietários de escravos, aspirantes a títulos nobiliárquicos, fumantes, amantes do vinho, comerciantes e simples cidadãos. As medidas mais irritantes foram o novo imposto sobre vencimentos dos funcionários públicos, o antepassado do imposto de renda, e a taxa de um vintém sobre o valor das passagens no transporte urbano.
          O novo imposto e a taxa atingiram diretamente duas categorias, os funcionários públicos e os usuários de bondes. Em 1870, a capital tinha 192 mil habitantes na área urbana, dos quais 11 mil funcionários públicos, entre civis, militares e eclesiásticos, já que naquela época o catolicismo era a religião oficial do Estado. Havia quatro grandes companhias de ferro-carris urbanos, ou de bondes, como ficaram conhecidos: a Botanical Garden Co., que cobria a zona sul, saindo da rua Gonçalves Dias, a Cia. de São Cristóvão, concentrada na zona norte, com ponto final no Largo de São Francisco,  a Ferro-carril de Vila Isabel, que partia da Praça Tiradentes, e a Cia. de Carris Urbanos, que atendia ao centro, incluindo a zona portuária.
          O bonde era um transporte de massa. Cada carro, puxado por animais sobre trilhos, transportava 30 passageiros. Só as três primeiras companhias acima listadas transportaram em 1879 mais de 20 milhões de passageiros. É óbvio que a taxa do vintém jogava muita gente contra o governo, sobretudo contra o Afonso Vintém, como ficou conhecido o ministro da Fazenda. Para atingi-los, foram atacadas no dia primeiro as companhias de bondes, com exceção da Botanical Garden, de propriedade norte-americana, que se prontificou a pagar ela mesma a taxa.  
          Desse clima de insatisfação, tiraram vantagem os agitadores republicanos. Ao que parece, na demonstração de São Cristóvão estavam presentes, sobretudo, pessoas de melhor situação social, certamente muitos funcionários públicos. Na do dia 1º, teria entrado em ação a massa dos usuários mais pobres, acrescida da tropa barra-pesada do centro e da zona portuária. Não por acaso, os líderes do movimento perderam o controle da multidão nesse dia. 
          Embora legal, a taxa do vintém era profundamente impolítica, como se dizia na época. O ministro fora alertado para as possíveis reações. Mas Afonso Celso era tão competente quanto teimoso. Pagou por isso alto preço em 1880, como pagaria em 1889, por ocasião da proclamação da República. A reação da polícia foi infeliz em 28 de dezembro, ao não negociar a audiência com o imperador, e imprudente em 1º de janeiro. A do Exército, simplesmente desastrada.
          Os acontecimentos chocaram o Imperador. Em cartas à condessa de Barral e ao conde de Gobineau, afirmou que em 40 anos de reinado nunca tinha sido usada a força contra o povo da capital do Império. Não lhe escapou mesmo a conotação republicana dos incitadores do motim. Afirmou à condessa que seria mais feliz como presidente de uma república.
          Mas a revolta não foi republicana, afirmaram seus próprios líderes. Muitos interesses feridos nela se fundiram, de grandes e de políticos, de gente miúda e de simples cidadãos. Uma grande explosão social, detonada por um pobre vintém.

José Murilo de Carvalho é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro da Academia Brasileira de Letras, do IHGB e da Academia Brasileira de Ciências e autor de D. Pedro II: ser ou não ser. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

Outros textos do autor

Saiba Mais – Links