“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sábado, 25 de maio de 2013

Por uma onda de paz na Faixa de Gaza

     Tal e Naim vivem em terras tensas a apenas 80 km de distância, em que brigas e mortes são uma constante, com um histórico imenso de guerra, violência e intolerância religiosa. Apesar de morarem próximos, os dois jovens têm vidas bem diferentes: Tal é uma francesa judia que vive em Jerusalém; Naim é palestino e mora em Gaza.
     Sem entender o porquê dos ataques constantes a Gaza, um lugar tão perto e tão longe de sua realidade, Tal manda um recado dentro de uma garrafa, atirada ao mar por seu irmão, soldado militar que vai lutar em Gaza. Na mensagem, uma clara vontade de saber quem encontrou a tal carta e vários questionamentos a respeito da situação que tanto agride os dois povos. Semanas depois, Tal recebe uma mensagem de Naim, que até encontrou a carta, mas, desconfiado, assinou o e-mail apenas como Gazaman. Assim começa o filme “Uma garrafa no mar de Gaza”, dirigido por Thierry Binisti e baseado no romance de Valérie Zenatti.
     Mesmo com as barreiras políticas – e físicas (separados por um muro, o “outro lado”) – que proíbem qualquer tipo de contato entre eles, Tal e Naim conversavam cada vez mais, diariamente, através dos e-mails, mesmo com todos os conflitos que os cercam.
     - Era preciso inventar um modo de comunicação que juntasse o arcaico (a garrafa no mar) com o moderno (a troca de e-mails). Só assim os dois conseguiriam se comunicar – conta Thierry Binisti, no texto de lançamento do longa.
     Entre uma troca e outra de e-mails, sempre escondida, os dois se apaixonam, compartilham experiências e descobrem a diferença cultural e a história de seus povos. Enquanto isso, perguntam-se “de que lado eu estou?” e percebem que, apesar de todas as diferenças, são iguais. E reféns de uma situação que está longe de terminar.
     O filme é um convite para olhar o conflito entre os dois povos sob novas perspectivas, sem se deixar fechar apenas às interpretações dominantes e tão parciais.
Direção: Thierry Binisti
Ano: 2013
Áudio: Francês, Hebraico, Árabe
Duração: 95 minutos

Inch’Allah
Chloé é uma jovem médica canadense que divide seu tempo entre o Ramallah, onde trabalha com a Organização Humanitária “Red Crescent”, e Jerusalém, onde mora ao lado de sua amiga Ava, uma jovem soldada israelense. Cada vez mais sensível ao conflito, Chloé vai diariamente pelo posto entre as duas cidades para chegar ao campo de refugiados, onde monitora as gestações de mulheres jovens.
Como se torna amiga de Rand, uma de suas pacientes, Chloé aprende mais sobre a vida nos territórios ocupados e começa a passar algum tempo com a família de Rand. Dividida entre os dois lados do conflito, Chloé tenta tudo que pode para criar elos entre suas amigas, mas sofre por permanecer uma eterna estrangeira para ambos os lados.
Direção: Anaïs Barbeau-Lavalette
Ano: 2013
Áudio: Inglês, Francês, Hebraico,Árabe
Duração: 100 minutos

O Filho do Outro ( Le Fils de l'autre)
Prestes a integrar o exército israelense para cumprir seu serviço militar, Joseph descobre que foi trocado na infância com Yacine, filho de uma família palestina da Cisjordânia. A vida das duas famílias se transforma radicalmente com esta descoberta, forçando cada um a reconsiderar seus valores e sua identidade.
Direção: Lorraine Levy
Ano: 2012
Áudio: Inglês, Francês, Hebraico, Árabe
Duração: 100 minutos


quarta-feira, 8 de maio de 2013

Um imperador sob suspeita

Conhecido como incendiário, Nero teria sido vítima de interpretações anacrônicas de historiadores antigos.
     O homem que matou a mãe, o meio-irmão e a própria esposa. Um tirano excêntrico, cujo reinado foi marcado por embates com a aristocracia, mas que se considerava um artista talentoso. Cantava, tocava cítara e escrevia poesia, participando de apresentações públicas e tendo inclusive viajado à Grécia nos anos de 67 e 68 para participar de competições artísticas. Mas foi principalmente como um incendiário enlouquecido que Nero entrou para a história.
     Sua biografia, porém, pode ter sido distorcida pelos historiadores que retrataram a sua vida até quase 200 anos depois. Uma diferença de tempo que não afetou apenas a conferência às informações, mas a interpretação desses próprios dados.
     Seu reinado é conhecido basicamente por meio das obras de três autores: Tácito (Anais, livros 13-16), Suetônio (Vida de Nero) e Dião Cássio (História Romana, livros 61-63). Essas obras foram compostas entre a primeira metade do século II e a primeira metade do século III, ou seja, bem depois dos eventos que se propõem a narrar. Esses autores estão alinhados a uma tradição negativa que se propagou a respeito de Nero nos círculos políticos em Roma após sua morte. A visão que eles têm do imperador se deve, em larga medida, a uma visão dos aristocratas contra aqueles que tentaram concentrar demais o poder. Os eventos que eram desfavoráveis ao imperador foram destacados em detrimento daqueles que fossem positivos. Por isso a construção da figura histórica de Nero pode ser compreendida a partir da comparação entre os diversos testemunhos de época e, mesmo posteriores, que relatam suas ações.
     Nero governou o Império Romano entre 54 e 68. Ascendeu ao trono com 17 anos de idade, com a morte do imperador Cláudio, provavelmente envenenado por sua terceira esposa, Agripina, que anos antes fizera com que o marido adotasse Nero, filho dela de um casamento anterior. Com o apoio dos pretorianos (a guarda imperial), Agripina conseguiu garantir a ascensão de Nero ao trono, o que, no entanto, não evitou que ele a eliminasse em 59 para afirmar ainda mais sua autoridade. Considerado inimigo público pelo Senado, e enfrentando um levante militar na Gália, o imperador suicidou-se em 68.
     O principal alvo da crítica de historiadores e biógrafos na Antiguidade a Nero foi o palácio que ele ergueu após o incêndio de Roma em 64, sua “Casa Dourada”, a Domus Aurea. O complexo palaciano foi ampliado e chegou a cobrir uma área estimada em cerca de 50 hectares. A Domus Aurea não compreendia apenas uma residência no monte Palatino, onde os imperadores costumavam construir suas moradas, mas um enorme parque – incluindo um lago artificial – que cobria as colinas do Célio e Esquilino, assim como o vale entre ambas, área hoje ocupada pelo Coliseu.
     “O lago, análogo a um mar, era rodeado de edifícios que davam o aspecto de uma cidade”, escreveu Suetônio, fazendo questão de ressaltar a suntuosidade da construção: “Além disso, planícies com terrenos cultivados, vinhedos, pastagens, florestas com uma quantidade extraordinária de animais domésticos e selvagens de todas as espécies. Nos demais lugares do palácio, tudo se cobria de ouro e se incrustava de gemas e madrepérolas”. Tudo isso era, na interpretação de Suetônio, uma demonstração de poder do imperador frente aos demais aristocratas. Mas, como uma espécie de compensação, essa construção foi acompanhada de uma reurbanização das partes da cidade que ficavam além do palácio. Medidas que, para Tácito, trouxeram melhorias à cidade. Nero ordenou que ruas fossem traçadas de forma regular e alinhada, que os edifícios tivessem a altura reduzida e foram proibidas as paredes comuns para impedir a disseminação do fogo.
     Sobre o incêndio provocado por Nero, Tácito escreve o seguinte em seus Anais: “Seguiu-se uma grave calamidade, atribuída por uns a Nero, por outros ao acaso”. Havia diferentes versões sobre o incêndio à época de Tácito, algumas inocentando o imperador. Mas sua narrativa contribui para sustentar uma leitura ambígua da participação do imperador no evento. Por exemplo, é negado que tenha havido qualquer esforço coletivo no combate às chamas: “Ninguém ousava combater o fogo pois ouviam frequentes vozes ameaçadoras que o impediam, e até mesmo se viram pessoas abertamente lançando tochas e dizendo-se autores do incêndio, ou para exercerem com mais liberdade o roubo ou porque tivessem mesmo ordens para isso”.
     Suetônio é mais direto em relação a apontar o culpado. “Desgostoso com a deformidade das velhas construções e com as vias estreitas e tortas, [Nero] incendiou a cidade tão abertamente que muitos antigos cônsules não se atreveram a impedir seus camareiros, embora deparassem com eles portando tochas.” Já Dião Cássio menciona que “guardas noturnos” – em alusão às coortes de vigília de Roma, tropas formadas por libertos responsáveis por combates a incêndios – estavam  presentes, mas apenas para saquear e começar novos focos de incêndio.
     Os relatos paralelos entre as fontes indicam que não houve uma atividade organizada pelas coortes de vigília para debelar o fogo. Mas a imagem de Nero como incendiário, no entanto, não deve ser aceita de imediato. A partir da leitura de Tácito, o fogo parece ter ocorrido em dois estágios. Irrompeu inicialmente na parte oriental do Circo Máximo, espraiando-se rapidamente devido às casas de madeira e à ação do vento pelas ruas tortuosas e estreitas. Esse incêndio durou cerca de seis dias, quando o monarca encontrava-se em Âncio, a 50 quilômetros do sul de Roma.
     Tácito narra que o imperador retornou apenas quando o fogo ameaçou sua casa e o palácio. Ele também agiu no sentido de ajudar a população: permitiu que a população desabrigada se acolhesse no Campo de Marte e nos jardins de Agripa, que era então de sua propriedade. Construiu edifícios e mandou buscar utensílios domésticos em outros municípios, e até baixou o preço do trigo. Essa reação do imperador não evitou que ele próprio fosse apontado como incendiário, pois um rumor se espalhou, dizendo que, enquanto o fogo consumia a cidade, ele tocava lira.
     Num segundo momento, o fogo reapareceu na propriedade de Ofônio Tigelino, prefeito do Pretório – comandante da guarda pretoriana, responsável pela segurança do imperador e sua família – e principal conselheiro de Nero. Este fato induziu Tácito a supor que esse incêndio foi proposital, e praticado para permitir que Nero construísse o majestoso palácio no centro de Roma. Porém, também é provável que as coortes de vigília tenham conscientemente ateado fogo em determinadas partes da cidade para queimar o que restava de material combustível. Essa alternativa não deve ser descartada. Ainda mais porque Tigelino possivelmente estava à frente das operações de demolição para cercar o fogo. As coortes de vigília eram chefiadas por um praefectus vigilum, o equivalente a um chefe de polícia, mas tal cargo estava vago à época (seu titular, Aneu Sereno, morrera em 62 e não há registro de seu sucessor imediato), o que complicou a logística de combate ao fogo. Tigelino, que estivera à frente dessas coortes antes de se tornar prefeito do Pretório, assumiu a liderança.
     Essas suposições revelam que os rumores sobre a intenção incendiária do monarca poderiam ter se originado pelo envolvimento de seu principal homem de confiança, que se serviu de guardas pretorianos e outros funcionários imperiais para controlar o incêndio. O ressentimento daqueles que perderam suas casas e bens certamente levou-os a imputarem ao imperador a responsabilidade, esperando com isto uma compensação.
     Nero rebateu os rumores de seu envolvimento lançando a culpa nos cristãos, cuja comunidade em Roma começava a ganhar expressão. De acordo com Tácito, alguns cristãos foram presos e torturados, outros lançados às feras e alguns queimados como tochas em espetáculos públicos. Este último castigo, aliás, era reservado justamente a incendiários. Embora tal perseguição tenha tido uma curta duração e ficado restrita a Roma, autores cristãos posteriores aceitaram as alegações de Tácito, figurando Nero como o primeiro imperador romano a perseguir os cristãos. A transmissão de uma imagem negativa de Nero se deve, assim, em boa medida, à visão que a Cristandade produziu da história das perseguições.
     Não é possível saber se Nero foi o principal responsável pelo incêndio de Roma em 64. Mas o estudo mais atento às principais fontes demonstra que, antes de se afirmar verdades inabaláveis, a história precisa refletir melhor sobre como cada época produz sua própria visão do passado.

Fábio Duarte Joly é professor da Universidade Federal de Ouro Preto e autor de Libertate opus est: escravidão, manumissão e cidadania à época de Nero (Editora Progressiva, 2010).

Saiba mais - Bibliografia
MACHADO, Carlos Augusto Ribeiro. Roma e seu Império. São Paulo: Saraiva, 2000.
SILVA, Gilvan Ventura e MENDES, Norma Musco (orgs.). Repensando o Império Romano: Perspectiva socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.
SUETÔNIO. A vida dos doze Césares. Trad. Sady-Garibaldi. São Paulo: Ediouro, s/d.
TÁCITO. Anais. Trad. Leopoldo Pereira. São Paulo: Ediouro, s/d.

Saiba mais - Documentário
Roma Antiga - Ascensão e Queda de um Império (Ancient Rome: The Rise and Fall of an Empire)
Documentário dramatizado conta a história da ascensão e queda da Antiga Roma através de 6 momentos decisivos. Baseado em fatos acurados e extensa pesquisa histórica, ele revela como a avidez, luxúria e ambição de homens como César, Nero e Constantino moldaram o Império Romano. Ele descreve como Roma destruiu Cartago, como foi dominada por César, como sufocou a revolta judia e como foi convertida ao Cristianismo. Animações gráficas, atuações convincentes e espetaculares batalhas ao vivo foram utilizadas para contar a história de como o Império se formou, como atingiu seu máximo apogeu e porque finalmente decaiu.
01- César
Este episódio se concentra no Romano mais famoso de todos – Caesar. Charmoso, selvagem, obcecado pelo poder, oportunista e brilhante, ele derrubou 500 anos da antiga república e deu início à Era dos Imperadores.
02- Nero
Este programa focaliza Nero, acompanha sua obsessão em se tornar um deus, como seus planos de transformar Roma numa cidade gloriosa arruinou o Império, como se casou com seu escravo e matou sua amada esposa num frenesi e como finalmente foi derrubado.
03- Rebelião
Este episódio conta a história da Revolta Judia que varreu a Judéia em 66 D.C. e ameaçou desestabilizar todo o Império. Roma recorreu ao General Vespasiano e seu filho Titus para enfrentar os rebeldes. Repleto de ataques espetaculares e enormes cenas de ação, o filme contrapõe a disciplina e a ingenuidade do exército Romano contra a paixão e comprometimento dos rebeldes.
04- Revolução
Roma foi outrora uma grande sociedade democrática, com eleições regulares. Esta República durou 500 anos até a chegada de Tiberius Gracchus. Ele acreditava nos ideais da República – justiça, decência e lealdade – mas ficou horrorizado com o tratamento que os aristocratas dispensavam ao povo. Então ele liberou o poder da turba sobre as ruas de Roma, com consequências devastadoras.
05- Constantino
O episódio conta a história de como o Imperador Constantino trouxe o Cristianismo para o mundo Ocidental. Em 312 D.C., Roma estava em crise. O Império fora dividido em 4 partes, cada uma com seu próprio Imperador que lutavam entre si. Constantino interveio e unificou Roma, usando meios militares e uma nova religião – o Cristianismo.
06- A Queda de Roma
Em 410 D.C., os Godos saquearam a cidade. Este evento simboliza o colapso de Roma. Em 70 anos, o Império Ocidental – o que entendemos como Roma Antiga – desapareceu. Mas não para sempre.
Direção: Nick Murphy
Ano: 2006
Áudio: Inglês/Legendado
Duração: +- 59 minutos

Saiba mais - Links

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Cadê a paz?

Emboscadas, rebeliões, insurreições, batalhas e mais batalhas. Dizem que o Brasil é pacífico. Resta saber onde.
     A última vez que terras brasileiras serviram de palco para uma ação militar contra estrangeiros foi no século XIX, na Guerra do Paraguai (1864-1870). Esta afirmação pode dar a entender que o Brasil não é muito de briga, principalmente se for comparado a países que vivem em estado de alerta, como Iraque e Estados Unidos. Mas, contrariando o senso comum, esses dados não são suficientes para se reconhecer o país como pacífico. Em matéria de paz, a língua portuguesa pode provar que há uma série de termos entranhados na História do Brasil cujos significados chegam muito perto de uma guerra.
     Dependendo do contexto, alguns vocábulos podem ser considerados sinônimos – rebelião, motim, sublevação, insurreição e sedição. Mas o pesquisador português Caetano M. de F. Albuquerque já alertava, em 1911, para as diferenças de algumas expressões em seu
Diccionário Téchnico Militar de terra: “Entre batalha e combate há grande diferença: aquela envolve ao mesmo tempo uma ideia abstrata e concreta, é um ato de concepção que pode não ter completa execução; o combate é o fato material e a execução do ato de concepção”. Apesar destes significados, no mesmo verbete o autor define “batalha” como um “combate geral entre dois exércitos ou qualquer que seja sua melhor definição, não resta dúvida de que é a mais solene e grandiosa de todas as ações de guerra, a pedra de toque da capacidade dos vários comandos superiores, e Bonaparte dizia que nada desejava tanto como uma grande batalha”.
     Com nuances de significados aqui e ali – “insurreição”, por exemplo, é mais apropriado para o caso de levante contra a autoridade, e “rebelião” pode ser uma resistência à mão armada às ordens superiores –, o fato é que os brasileiros esbarram nestas palavras durante todo o período escolar. Os episódios conflituosos são tantos que está para ser lançada a quarta edição do
Dicionário das batalhas brasileiras: Dos conflitos com indígenas aos choques da reforma agrária (1996), de Hernâni Donato. O escritor, que se dedica ao tema desde a adolescência, está preparando quatrocentos novos verbetes. Quando começou a elaborar o dicionário, há cerca de 60 anos, Donato não tinha ideia de que conseguiria listar mais de dois mil episódios históricos. É que, para ele, batalhas não precisam ser aquelas que envolvem milhares de homens. “Considerando a ‘pequenez’ do evento, sempre que algumas pessoas foram à luta em defesa de uma ideia, houve uma batalha. Os conflitos agrários, por exemplo, geralmente têm poucas vítimas”, exemplifica.
     Dentre esses novos verbetes, alguns são do período da invasão holandesa em Pernambuco (1630-1654). “A cada semana descubro mais um evento da guerra contra os holandeses realizado no interior das capitanias”, diz Donato, que, diante de tanto trabalho, fica indignado com uma máxima brasileira: “Infelizmente, essa pesquisa contesta a máxima que diz que o brasileiro é pacífico”.
     Mesmo sem consultar os livros, é possível perceber esta, digamos, falta de talento para se viver em paz no Brasil. A Amazônia que o diga... Até o fechamento desta edição, cinco trabalhadores rurais haviam sido assassinados em emboscadas – mais um termo violento comum em nossa história – em menos de três semanas, e os jornais estampavam reportagens que mostravam uma tendência ao agravamento da situação.
     De acordo com o Global Peace Index (Índice de Paz Mundial), o Brasil ocupa a 74ª posição num ranking de 153 países. Numa escala mundial, isto significa que somos muito mais pacíficos do que nações como a Somália, que aparece em último lugar, Iraque (152º), Israel (145º) e Afeganistão (150º), mas não estamos tão longe assim dos Estados Unidos (84º). Se a comparação for feita com os vizinhos, o Brasil não tem do que se gabar. O Uruguai, que já foi disputado a tiros de canhão, hoje é o país mais pacífico de toda a América Latina, ocupando o 21º lugar mundial. Argentina, Paraguai e Chile também nos ultrapassam com facilidade.
     Se Poliana, a personagem otimista do clássico infanto-juvenil, soubesse disso, talvez ela recuperasse um livro do escritor Oliveira Lima (1867-1928), no qual era exaltado o caráter pacífico do país, em comparação exatamente com os nossos vizinhos. Os tempos eram outros – mais precisamente 1914 – quando ele publicou o seguinte: “O Brasil imperial constituiu um modelo de liberdade e paz para a América Latina e forneceu pelo menos uma imagem real de civilização, emanada do trono, ao tempo em que as sociedades hispano-americanas se debatiam em meio à desordem e selvajaria”.
     Mas quando Oliveira Lima fez esta afirmação, o mito já estava criado havia tempo. O Grito do Ipiranga sem derramamento de sangue, escolhido como símbolo da Independência, contribuiu para esta visão, mesmo sendo seguido por uma guerra
[Ver RHBN nº 48]. A ideia de país pacífico foi fortalecida durante a Regência (1831-1840), década em que diversas rebeliões contestaram o poder central. Associar a imagem pacifista a uma fase turbulenta da História soa, no mínimo, contraditório. No entanto, o discurso da vitória da monarquia sobre liberais e separatistas era feito “em nome da paz”. Pelo menos esta foi a conclusão a que chegou o brasilianista norte-americano Henry H. Keith. Em artigo publicado em 1970 no livro Conflito e continuidade na sociedade brasileira (Civilização Brasileira), ele se refere ao período como sendo de “paz forçada”. E chama atenção para o fato de que, durante o Império, defensores do regime, como o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), “arranjaram uma série impressionante de argumentos contra a violência rebelde e em defesa da conservadora e disciplinada tradição da monarquia”.
     O mito estava criado, atravessando o Império e chegando à República. E a tal “paz forçada” continuou sendo um recurso usado pelos governos. Em nome dela foram abafados movimentos como a Revolução Federalista (1893-1895), no Sul; Canudos (1896-1987), na Bahia; a Revolta da Chibata (1910), no Rio de Janeiro, e a Revolta do Contestado (1912-1916), no Paraná e em Santa Catarina, entre tantos outros. Já durante as ditaduras, a impressão que se tem é de que a força tinha muito mais importância do que a paz, já que tortura e assassinato eram práticas comuns.
     Keith também aponta que o historiador Sérgio Buarque de Holanda reforçou o mito da não violência quando explicou a boa índole própria do brasileiro, a teoria do “homem cordial”. Mas parece que o brasilianista não entendeu o que Buarque de Holanda desenvolveu em seu Raízes do Brasil (1936): “Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez”, escreveu o historiador, que ainda definiu essa mesma polidez como “um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções”. Portanto, a cordialidade não tem relação com a ideia de paz, e sim com o tratamento emocional. Por isso, nada impede que o “homem cordial” seja violento.
     Apesar de não ser polido, o Brasil tem bastante experiência em diplomacia, talvez tanta quanto tem em conflitos. A conciliação volta e meia aparece na pauta das relações exteriores do governo: em 1998, o Brasil foi um dos mediadores do acordo de paz entre Equador e Peru, envolvidos em conflitos em suas fronteiras havia décadas; em 2009, o país ofereceu apoio para a construção de um processo de paz entre israelenses e palestinos.
     Entra governo, sai governo, a tentativa de se buscar a paz permanece, pelo menos no discurso. Recentemente, na comemoração do Dia do Exército (19 de abril), a presidente Dilma Rousseff lembrou esta particularidade do país, afirmando que se trata de “um país de vocação pacífica e democrática” – atenção: ela não disse “país pacífico”. Tomara que ela esteja certa, mas, por via das dúvidas, o escritor Hernâni Donato já está treinando seu filho e seu neto para darem continuidade ao seu Dicionário de Batalhas Brasileiras.


Saiba Mais: Documentário
   Lutas.doc faz uma reflexão profunda sobre a história da sociedade brasileira e o papel da violência na formação do povo. Dirigido por Luiz Bolognesi e Daniel Augusto, o documentário tem um ritmo dinâmico e utiliza recursos de animação, trechos de filmes, informação, entrevistas e análise. Os cinco episódios combinam densidade de reflexão com linguagem acessível, uma atração especial para o público jovem.
Grandes pensadores brasileiros, personalidades da política e da cultura do país, além de outros cidadãos, abordam várias facetas da violência no Brasil. Os depoimentos são intercalados por desenho animado. Essa animação é fruto do trabalho diário de uma equipe de 60 profissionais e levou três anos para ser produzido. Com um olhar crítico e ousado, duas dezenas de entrevistados passam em revista a história da sociedade brasileira. Entre eles, os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso, a ex-senadora Marina Silva, o escritor Ferréz, índios Guarani-Kaiowá, o jornalista Gilberto Dimenstein, o líder do MST João Pedro Stédile, os historiadores John Monteiro, Laura de Mello e Souza, Pedro Puntoni e Leandro Karnal, o sociólogo Luis Mir e a filósofa Márcia Tiburi, o psicanalista Contardo Calligaris, Soninha Francine; a professora de filosofia Olgária Matos, a professora Esther Hamburger, jornalista e ex-moradora de rua Esmeralda Oritiza, professora de comunicação Esther Hamburger, o pensador José Júnior, do AffroReggae.
     Os diretores da série propõem um grande debate e tentam contar a história do Brasil que não se aprende nas escolas.
Direção: Luiz Bolognesi e Daniel Augusto
Ano: 2010
Áudio: Português
Duração: +- 25 minutos/cada Episódio
Ep.01 - "Guerra sem fim", com demolidora argumentação, desmonta-se a imagem do Brasil como sociedade pacífica e do brasileiro como gentil por natureza. Mostra a história da violência no Brasil, a presença da luta desde antes da chegada dos colonizadores, ou seja, é uma constante na história nacional. Mesmo antes da chegada dos europeus, as nações indígenas tinham a guerra no centro de suas culturas. São enfocados conflitos pouco conhecidos, massacres, e revistos fatos históricos à luz de um olhar crítico, que questiona a história oficial com argumentos e insights.

Ep. 02 - "Recursos humanos", volta-se para a escravidão e revela as cicatrizes sociais com suas tensões, ambiguidades e a dificuldade de passar das palavras a atos de transformação. Enfoca como era a vida dos escravos no Brasil e como eles foram tratados pelas outras classes sociais. Os escravos foram libertados no país em 1888. Entretanto, "Nunca houve uma preparação intelectual dos escravos no Brasil, como aconteceu nos Estados Unidos com a Guerra Civil", observa o historiador Eduardo Gianetti. "Levamos mais de um século para integrar escravos na força de trabalho, mas não devemos ser orgulhosos, devemos ter vergonha."

Ep. 03 - "Fábrica de verdades", mostra como a mídia, especialmente a televisão, nega a violência e a brutalidade das relações sociais. "Se você imagina que são as novelas que fazem a educação do brasileiro... É uma inversão de princípio e de realidade. Impressionante", diz a professora de filosofia, Olgária Matos. "Estamos em um país em que as pessoas não são alfabetizadas", diz o escritor Ferrez. Da mesma opinião, o jornalista Gilberto Dimenstein constata: “Em São Paulo, se você pega as pessoas formadas no ensino médio, 5% apenas têm conhecimento adequado para ler e escrever. Lamento, eu não consigo ver violência maior do que uma pessoa chegar ao final da sua adolescência e não saber ler nem escrever. Não consigo ver quantas violências são maiores do que essa. Mas ninguém liga. E não causa comoção, não causa nenhum escândalo, não causa uma indignação nacional".

Ep. 04 - "Heroína sem estátua", investiga a discriminação silenciosa das mulheres. A luta das mulheres pela igualdade de direitos na sociedade brasileira. Na avaliação do historiador Pedro Puntoni, toda revolução histórica é marcada por conflitos e, no caso da questão feminina, o papel da rebelião foi fundamental nesse processo. "A rebeldia transforma a história", analisa. Ele conclui que, na política, o brasileiro ainda é muito conservador e a visão machista perdura nas grandes decisões. Mesmo com todo o avanço das mulheres, a série constata que apenas 9% das prefeituras brasileiras são ocupadas por elas. Outro índice que ainda é um diferencial são os salários: 40% menor do que os dos homens que ocupam a mesma função. Uma das representantes da mulher na política, a ex-senadora Marina Silva reconhece o rápido aprendizado das mulheres com os homens. E garante que "se os homens não aprenderem com elas terão um grande prejuízo".

Ep. 05 - "O que vem por aí", é uma conversa sobre o futuro polarizada entre quem acha que o Brasil está em guerra civil e quem acredita que o crescimento econômico e político pode mudar a situação.

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