“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

FELIZ NATAL E UM BOM ANO NOVO


Eu me despeço.
Volto à minha casa, em meus sonhos.
Volto à Patagônia, aonde o vento golpeia os estábulos e salpica de frescor o Oceano.
Sou nada mais que um poeta: amo a todos, ando errante pelo mundo que amo.
Em minha pátria, prendem-se mineiros e os soldados mandam mais que os juízes.
Entretanto, amo até mesmo as raízes de meu pequeno país frio.
Se tivesse que morrer mil vezes, ali quero morrer.
Se tivesse que nascer mil vezes, ali quero nascer.
Perto da araucária selvagem, do vendaval que vem do sul,
das campanas recém-compradas.
Que ninguém pense em mim.
Pensemos em toda a terra, golpeando com amor a mesa.
Não quero que volte o sangue...
a molhar o pão, os feijões, a música:
quero que venha comigo o mineiro,
a criança, o advogado, o marinheiro, o fabricante de bonecas.
Que entremos no cinema e bebamos o vinho mais tinto.
Eu não vim para resolver nada.
Vim aqui para cantar e quero que cantes comigo.

Pablo Neruda.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Espiritismo no Brasil

Rainer Sousa (Equipe Brasil Escola)

No século XIX, encontramos diferentes relatos sobre pessoas que, sem conter nenhum conhecimento médio específico, indicavam receitas médicas para pessoas adoentadas. Conhecidos como “médins receitistas” ou “médiuns curadores” esses indivíduos tinham uma função diferente dos conhecidos curandeiros. Declarando contar com o auxílio de poderosas entidades espirituais, desvencilhadas de outras religiões, essas pessoas alegavam a presença de espíritos que intervinham no mundo material.

     Tal manifestação religiosa tinha grande proximidade com a obra do francês Allan Kardec, que, em 1857, sistematizou o conhecimento da doutrina espírita em sua obra “O livro dos espíritos”. Em pouco tempo, já na década seguinte, os primeiros exemplares desta obra apareceram em solo brasileiro. Concomitantemente, os primeiros grupos espíritas brasileiros tomavam forma.
     Um dos primeiros e mais famosos entusiastas da nova prática religiosa foi Bezerra de Menezes, que ao converter-se à nova crença acreditava estar vivenciando o ápice da fé cristã. Essa figura histórica do espiritismo brasileiro abraçou a nova religião influenciada pela vivência com o médium João Gonçalves do Nascimento, que praticava curas na cidade do Rio de Janeiro.
     A grande aceitação da prática espírita se deve à sua capacidade de articular elementos cultos e populares, na qual uma pessoa de origem simples poderia incorporar figuras de prestígio. Muitos dos adeptos daquela época insistiam em assinalar como a nova religião andava em acordo com os princípios liberais e científicos em voga no período. Um exemplo claro dessa associação pode ser visto no fato de muitos republicanos e abolicionistas simpatizarem com o espiritismo.
     No entanto, a nova religião sofreu grande oposição em um contexto histórico no qual o catolicismo tinha grande presença. Nos códigos de lei da época e no receituário de alguns psiquiatras, o espiritismo era considerado uma manifestação de insanidade mental. A forte oposição sofrida foi combatida no momento em que, em 1884, foi criada a Federação Espírita Brasileira. O trabalho de reconhecimento feito pela FEB tratava de sistematizar as práticas e doutrinas arraigadas pela nova confissão religiosa.
     O crescimento da doutrina espírita no Brasil ganhou novo fôlego, principalmente com o surgimento de uma figura emblemática dessa religião: o médium Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier. Por meio de suas obras psicografadas, passou a popularizar ainda mais o espiritismo. Entre suas obras, podemos destacar “Brasil, Coração do Mundo Pátria do Evangelho”, em que ele narra a intervenção dos espíritos em diferentes acontecimentos da história nacional.
     Um desdobramento religioso do espiritismo é a umbanda, considerada uma crença de origem brasileira. Mesmo não tendo os mesmos referenciais e práticas do espiritismo kardecista, alguns documentos da Federação Espírita de Umbanda constam a citação de obras do líder francês. As diferenciações entre as duas crenças acabaram gerando um amplo debate no interior das entidades espíritas, que preferiam estabelecer claramente as singularidades da umbanda e do espiritismo.
     Ao longo do tempo, o espiritismo foi ganhando maior prestígio junto a diferentes classes e instituições. Em contrapartida, muitos dos cultos afro-brasileiros ainda sofreriam bastante com a desconfiança de órgãos de polícia. Um dos itens para explicar a maior aceitação do espiritismo se dá pela sua política assistencialista. A caridade, sendo ponto fundamental do espiritismo, acabou trazendo uma visão positiva sobre essa fé aproximada da razão.
     Nas últimas décadas, o papel do Brasil frente aos rumos tomados pela doutrina espírita foi notório. Uma das mais interessantes afirmações desse papel central pode ser visto no fato de que pessoas de outras denominações simpatizam com o espiritismo. Talvez com isso possamos compreender o porquê de o Brasil ter maior contingente de praticantes do espiritismo e de denominações apáticas a essa mesma crença.


SAIBA MAIS:
Allan Kardec: O Educador
Allan Kardec o Educador é um dos mais belos documentários sobre a vida e a obra de Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), mais conhecido como Allan Kardec. Veja imagens filmadas nos locais onde ele se instruiu e viveu: Lyon, Yverdon e Paris. E acompanhe os caminhos trilhados por um dos filósofos mais importantes da humanidade, que se tornou o principal estudioso das mensagens dos espíritos, tendo realizado a Codificação do Espiritismo. O filme traz ainda uma elucidativa entrevista com Dora Incontri, pesquisadora e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. 
Direção: Edson Audi
Ano: 2005
Duração: 59 min
Áudio: Português

O Filme Dos Espíritos
O filme conta a história de Bruno Alves, que, por volta dos 40 anos, perde a mulher e se vê completamente abalado. A perda do emprego se soma à sua profunda tristeza e o suicídio lhe parece à única saída. Nesse momento, ele entra em contato com o Livro dos Espíritos, obra basilar da doutrina espírita. A partir daí, o protagonista da história começa uma jornada em busca de sua felicidade a partir da compreensão dos mistérios da vida espiritual.
Direção: André Marouço / Michel Dubret
Ano: 2011
Duração: 101 min
Áudio: Português


Bezerra De Menezes: O Diário De Um Espírito 
O filme conta a história da vida de Bezerra de Menezes. Sua infância e adolescência foram vividas no Sertão. Aos dezoito anos, iniciou no Rio de Janeiro seus estudos de Medicina. Lá, elegeu-se vereador e deputado em várias legislaturas e defendeu as ideias abolicionistas. Mas, o que lhe trouxe o maior reconhecimento de seu povo foi o trabalho anônimo realizado em prol dos desfavorecidos. Por conta disso, ficou conhecido como o "Médico dos Pobres". Seja como político devotado às causas humanitárias ou como médico conhecido por jamais negar socorro a quem batesse à sua porta, Bezerra de Menezes tornou-se um exemplo de homem e escreveu uma história de vida marcada pelo amor e pela caridade.
Direção: Joe Pimentel e Glauber filho
Ano: 2008                 
Áudio: Português

Duração: 75 min         

Chico Xavier: O Filme
Uma adaptação para o cinema que descreve a trajetória do médium, que viveu 92 anos desta vida terrena desenvolvendo importante atividade mediúnica e filantrópica. Fechava os olhos e colocava no papel poemas, crônicas e mensagens. Seus mais de 400 livros psicografados consolaram os vivos, pregaram a paz e estimularam caridade. Para os admiradores mais fervorosos, foi um santo. Para os descrentes, no mínimo, um personagem intrigante.
Direção: Daniel filho
Ano: 2010
Duração: 125 min
Áudio: Português


 As Mães De Chico Xavier                                                                                                           
      
Ruth (Via Negromonte) tem um filho adolescente, que enfrenta problemas com drogas. Elisa (Vanessa Gerbelli) tenta compensar a ausência do marido dando atenção total ao filho, Theo (Gabriel Pontes). Lara (Tainá Muller) é uma professora, que enfrenta o dilema de uma gravidez indesejada. As figuras centrais do filme são as mulheres e as famíliasEstas três mulheres se encontram quando, cada um por um motivo particular, resolvem procurar a ajuda do médium Chico Xavier (Nelson Xavier).
Direção: Glauber Filho, Halder Gomes
Ano: 2011
Duração: 109 min
Áudio: Português

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Guarani, a língua proibida.

Castigos físicos nas escolas faziam parte da campanha de disseminação do idioma português no período colonial.
Elisa Frühalf Garcia

     Até a década de 1750, falar português não era o suficiente para se comunicar no Brasil. Na Colônia, predominava ainda a chamada língua geral. Baseada originariamente no tupi, ela passou por modificações ao longo dos contatos entre os índios e os europeus, até tornar-se a linguagem característica da sociedade colonial. A língua geral era, portanto, falada não apenas pelos índios, mas também por amplas camadas da população. Em algumas regiões da Colônia, como em São Paulo e na Amazônia, ela era utilizada pela maioria dos habitantes, a ponto de exigir que as autoridades portuguesas enviadas a esses lugares se valessem de intérpretes para se comunicar.
     Por tudo isso, na segunda metade do século XVIII, a Coroa portuguesa criou uma série de leis para transformar os índios em súditos iguais aos demais colonos. Com as mudanças, pretendia-se eliminar as diferenças culturais características dos grupos indígenas, fazendo deles pessoas “civilizadas”. Essas leis, pensadas inicialmente para a Amazônia, foram sistematizadas em 1757 num texto chamado Diretório dos Índios, que acabou se estendendo, posteriormente, para o restante da Colônia. O principal mentor desta política foi Sebastião José de Carvalho e Melo, conhecido mais tarde como Marquês de Pombal.
     A Coroa pretendia impor o uso do idioma português entre as populações nativas da América porque Pombal entendia que as línguas indígenas reforçavam os costumes tribais, que ele pretendia extinguir. Na sua visão, o uso da língua portuguesa ajudaria a erradicar esses costumes, aumentando a sujeição das populações indígenas ao Rei e à Coroa portuguesa. Pombal entendia, com razão, que o idioma era uma importante arma para o controle político dos súditos.
     Para mudar esse cenário, o Diretório determinava a fundação de escolas para as crianças índias, nas quais, além de aprender o português, aprenderiam também os costumes ocidentais. Elas deveriam ser convertidas à fé católica, vestir-se de acordo com os brancos e aprender disciplina de trabalho. Desta forma, a Coroa – numa terra ainda com baixa densidade demográfica – aumentaria seu contingente de vassalos. Este aspecto era particularmente interessante nas fronteiras, pois serviriam como garantia da efetiva ocupação lusitana nos seus domínios e de possível bastião contra os ataques espanhóis. Assim, apesar de vigorarem para toda a Colônia, as medidas pombalinas foram empregadas com mais rigor nas duas principais fronteiras da América portuguesa: a Amazônia e o Rio Grande de São Pedro.
     No início da década de 1760, foi fundada uma aldeia indígena na região norte do Rio Grande, denominada Nossa Senhora dos Anjos, onde fica hoje a cidade de Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre. Esta aldeia foi povoada com índios guaranis, trazidos dos Sete Povos das Missões por Gomes Freire de Andrade, no final da década de 1750. Nessa época, Portugal e Espanha estavam tentando consolidar o Tratado de Madri, segundo o qual Portugal abriria mão definitivamente da Colônia de Sacramento em prol da Espanha, que entregaria os Sete Povos aos lusitanos. Os dois governos criaram uma comissão de demarcação para fiscalizar a execução do Tratado, que, por vários motivos, acabou sendo anulado. Gomes Freire, como chefe da comissão de demarcação portuguesa, ao se retirar da região das Missões trouxe em torno de 3.000 índios guaranis para o território do Rio Grande, com o propósito de transformá-los em súditos de Portugal.
      A Aldeia dos Anjos foi o principal estabelecimento indígena do Rio Grande no século XVIII. Lá foram aplicadas com maior empenho as determinações do Diretório em relação aos índios. Em meados da década de 1770, o governador José Marcelino de Figueiredo fundou na aldeia duas instituições de ensino para os índios: uma escola para os meninos e um recolhimento para as meninas, ambos em regime de internato. Um fato interessante – para entender como operavam essas duas instituições – é que o governador elaborou dois regimentos distintos, nos quais estipulava detalhadamente a rotina a ser seguida pelos alunos. Esses regulamentos nos permitem recuperar um pouco do cotidiano dos internos.
     O dia era estritamente regrado, tendo uma hora específica para cada atividade. Os alunos deveriam acordar pela manhã, fazer a higiene pessoal e almoçar. Após o almoço, permaneceriam das oito às onze na escola, onde aprenderiam a falar, ler e escrever em português, a rezar e argumentar. Jantariam ao meio-dia e teriam descanso até as duas horas, quando retornariam para a escola onde ficariam até as cinco. No verão, entrariam às três e sairiam às seis.
     Depois das aulas fariam suas orações, ceariam e deveriam se recolher. Nas semanas em que não houvesse feriado, teriam um dia de folga. Neste dia, poderiam receber a visita de seus parentes do meio-dia às duas. No dia de folga e nos feriados santos, o mestre poderia escolher entre os seus alunos alguns que considerasse mais aplicados, aos quais concederia licença para visitarem seus pais. Se um destes meninos cometesse algum tipo de desordem na Aldeia, o mestre deveria ser informado, para que suspendesse a concessão de licenças. Os sábados e os domingos eram destinados às atividades religiosas. A limpeza e organização do espaço da escola ficariam a cargo dos meninos, que, em sistema de rodízio, deveriam passar, cozinhar, varrer etc.
     Para eliminar a língua guarani da vida das crianças, elas eram proibidas de usá-la na escola. Estavam previstos um castigo físico para o menino que falasse guarani e o perdão para quem o delatasse. Aos domingos, quando os estudantes recebiam visitas dos parentes, só podiam falar com eles em português. Esta tarefa deve ter sido muito difícil, pois os índios mais velhos, acostumados a falar apenas o guarani, não compreendiam o português. Esta determinação, se cumprida à risca, praticamente impossibilitaria a comunicação entre alunos e parentes.
     Os meninos não permaneciam muito tempo na escola. Quando fossem considerados aptos nas matérias ministradas e soubessem a língua portuguesa, deveriam deixá-la para dar lugar a outros. Mas alguns meninos que se destacavam eram enviados ao Rio de Janeiro, para completar os estudos. Foi o próprio vice-rei, marquês do Lavradio, quem solicitou ao governador do Rio Grande que os enviasse para serem educados na Corte. Segundo Lavradio, ele tomaria conta pessoalmente dos índios quando chegassem ao Rio. Existem poucas informações sobre a trajetória desses estudantes, mas se sabe que alguns deles conseguiram completar sua formação, tendo chegado à ordenação como padres.
     O recolhimento das meninas era uma instituição de ensino característica da sociedade colonial. As internas ficavam reclusas e afastadas de todo o convívio com as pessoas do sexo oposto. Na opinião da maioria das autoridades portuguesas e dos colonos, as índias eram mulheres de segunda categoria, que não tinham o comportamento esperado das pessoas do sexo feminino. Ou seja, elas não eram recatadas, não tinham pudor em mostrar determinadas partes do corpo e não se conservavam virgens até o casamento, como deveriam proceder as mulheres consideradas honestas.
     O internato servia, então, para afastar as meninas do convívio com suas famílias, nas quais, na visão dos portugueses, aprendiam maus costumes. Era melhor mantê-las sob rígida vigilância da mestra do recolhimento. Ao contrário dos meninos, elas não recebiam licença para visitar parentes nos dias folga. As visitas eram recebidas no locutório, um compartimento separado por grades, onde as pessoas podem conversar, mas não têm contato físico direto. A entrada de homens no recolhimento era proibida, com exceção do pároco e dos cirurgiões e sangradores. Mas estes deveriam estar sempre acompanhados de várias meninas, evitando deixar alguma delas sozinha com uma pessoa do sexo oposto. Nem mesmo mulheres de fora podiam entrar no recolhimento, sendo permitido apenas o trânsito das duas criadas do internato.
     Para ingresso no recolhimento, a idade mínima era de 6 anos e a máxima de 12, sendo que o número de meninas não poderia ultrapassar 50. O dia era dedicado às orações, ao aprendizado e aos trabalhos domésticos. Ao nascer do sol deveriam levantar-se e fazer a higiene pessoal, seguindo depois para as orações. Após a reza, as meninas índias iriam para o trabalho, que poderia ser de costura ou de fiação e tecelagem. Então jantariam, teriam um tempo de repouso e retornariam ao trabalho. Logo em seguida viria a ceia, com novo turno de orações, após as quais deveriam recolher-se. Caberia à mestra do recolhimento zelar pelas roupas das índias, sempre feitas de algodão e em cores neutras. Dois eram os objetivos a serem alcançados com as meninas: que soubessem a língua portuguesa, não sendo permitido falar o guarani, e que aprendessem a se portar como mulheres “honestas”, sabendo comportar-se e fazer todos os serviços necessários ao bom funcionamento de uma casa.
     Diferentemente dos meninos, às meninas não se ensinava a ler, escrever e contar, atividades consideradas irrelevantes para aquelas que deveriam dedicar-se apenas ao trabalho doméstico. Enquanto estavam no recolhimento, podiam receber propostas de casamento, que eram enviadas ao governador. Ele analisava as qualidades do pretendente e, caso este lhe agradasse, autorizava as núpcias. Neste caso, o governador também pagava um dote para as índias, com dinheiro da Fazenda Real.
     Todos os relatos da época afirmam que uma das maiores dificuldades da escola e do recolhimento foi a substituição do guarani pelo português. É provável que esses relatos tenham feito generalizações muito amplas, pois é de se supor que alguns alunos devam ter aprendido o português, principalmente os que prosseguiram nos estudos. Mas este não parece ter sido o caso da maioria dos índios. Os governadores do Rio Grande se impressionavam com o fato de que, decorridos vários anos do estabelecimento dos índios na Aldeia e da fundação das escolas, estes ainda falassem apenas o guarani. Segundo os relatos, a maior parte dos índios nem mesmo conseguia se fazer entender nos confessionários, pois não havia padres na Aldeia que soubessem sua língua.

Debret - Paris 1927
Muito índios, no entanto, por meio da escola ou por outros meios, se integraram à sociedade colonial, falando o português, trabalhando no comércio e adquirindo hábitos tidos como civilizados. É o que se pode ver na pintura de Debret, que traz a imagem de uma índia guarani indo para a igreja. Ela está vestida da mesma forma que as senhoras brancas, leva o cabelo preso e está carregando dois crucifixos, um no pescoço e outro na mão.
Enquanto funcionaram, tanto a escola quanto o recolhimento foram alvo de críticas por parte dos colonos estabelecidos no Rio Grande, que não encontravam justificativas para educar os índios, já que eram vistos como pessoas de natureza inferior, sem capacidade de aprendizado. Os colonos consideravam um desperdício a manutenção das instituições de ensino e propunham a utilização dos índios em trabalhos de baixo valor social, como o corte de madeiras, a construção de estradas etc. A escola e o recolhimento da Aldeia eram os únicos estabelecimentos de ensino existentes no Rio Grande, o que deixava os colonos indignados. Para eles, o dinheiro deveria ser gasto com as crianças brancas, com as quais se obteria algum tipo de resultado proveitoso, e não com os índios, considerados inaptos ao trabalho intelectual.

     Também havia uma forte oposição ao pagamento dos dotes para o casamento das índias do recolhimento.    Devido a sua má fama, os colonos julgavam improvável que pessoas procedentes de famílias honestas se casassem com elas. Na opinião deles, mesmo que houvesse casamentos, o dinheiro empregado nos dotes seria inútil, pois as índias não saberiam manter uma família nos moldes ocidentais, nem criar os filhos dentro dos padrões “civilizados”. Sem dúvida, estes preconceitos dificultaram a realização dos casamentos, embora algumas internas tenham recebido propostas de matrimônio, constituindo famílias dentro das normas portuguesas.
     Tanto a escola quanto o recolhimento foram desativados em 1800, por falta de alunos. Os prédios onde funcionavam foram vendidos, e a iniciativa de se criar escolas para os índios foi abandonada. Sendo um dos únicos exemplos de instituições para a educação dos índios na América portuguesa da segunda metade do século XVIII, a escola da Aldeia dos Anjos oferece um bom exemplo para pensar a função da educação e a sua relação com as diferenças culturais. Apesar de alguns índios terem se beneficiado desta iniciativa, a escola não alcançou seus objetivos na dimensão esperada. O espaço formado para a educação não tinha lugar para as suas próprias manifestações culturais. Ensinava-se os elementos da cultura portuguesa para anular a experiência anterior dos alunos, desconsiderando toda a rica herança cultural de seus antepassados.

Elisa Frühalf Garcia é doutoranda em História Moderna na Universidade Federal Fluminense

Saiba mais - Filme
Desmundo mostra condição feminina no Brasil colonial
Filme de época (por volta de 1570) é falado em português arcaico do século 16, é todo legendado no idioma moderno.
Baseado no livro da romancista Ana Miranda e dirigido pelo paulista Alain Fresnot, a narrativa traça um retrato do Brasil colonial visto sob o ponto de vista feminino: no caso, o de Oribela (Simone Spoladore).
Jovem portuguesa, Oribela veio para o Brasil junto com um grupo de órfãs trazidas para cá pelo projeto da monarquia lusitana de oferecer esposas brancas aos colonos, que há tempos se miscigenavam com as índias.
Na época, essa era uma situação completamente desfavorável às mulheres, mesmo às europeias. Afinal, naqueles dias elas valiam menos do que as mulas e tinham menos direito a exercer a própria vontade. Como gado, seus dentes e dotes físicos eram examinados e elas eram arrematadas como num leilão.
Muito devota, mas disposta a tentar algum tipo de escolha, Oribela rejeita com uma cusparada o primeiro e bruto pretendente (Cacá Rosset). Com Francisco (Osmar Prado), ela já é mais conivente, ainda mais que ele se comporta, em princípio, com mais civilidade.
Instalada na remota propriedade do marido com uma sogra estranha (Berta Zemel), uma cunhada deficiente e uma clara insinuação de incesto, Oribela tenta a fuga com a ajuda de um comerciante judeu, Ximeno (Caco Ciocler).
O filme é um retrato vivo de como devem ter sido aqueles primeiros tempos da colônia e os choques entre suas diversas populações.
Direção: Alain Fresnot
Duração: 99 min
Ano: 2003
Áudio: Português+Legenda

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Filmes: Árabe/Oriente Médio/Islamismo

Ruins, Árabes Malvados: Como Hollywood Vilificou um Povo.
Documentário que expõe de maneira detalhada como o cinema de Hollywood, desde o início da sua história até os mais recentes blockbusters, mostrou os árabes de forma distorcida e preconceituosa. O filme tem como apresentador o aclamado autor do livro “Reel Bad Arabs”, Dr. Jack Shaheen, Professor da Universidade de Illinois e estudioso do assunto. O filme faz uma análise, baseado em uma longa lista de imagens de filmes, de como os árabes são apresentados como beduínos bandidos, mulheres submissas, homens violentos, sheiks sinistros ou idiotas perdulários, ou ainda como terroristas armados e prestes a explodir pessoas e lugares. Uma maneira brilhante de mostrar em uma narrativa bem construída, como as imagens contribuíram e contribuem para formar os estereótipos em torno dos árabes, suas origens e sua cultura. Para escrever o livro, o autor analisou mais de 900 filmes, o que possibilitou formar esta contra narrativa, reforçando a necessidade de mostrar a realidade e a riqueza da Cultura e da História Árabes. O filme foi exibido em diversos festivais nos EUA, Europa e Mundo Árabe e recebeu o apoio do Comite Anti-Discrimição dos Árabes.
Direção: Sut Jhally
http://www.youtube.com/watch?v=Im5qQ9s-ohAAno: 2001
Duração: 51 min
Áudio: Inglês/Legendado 

A caminho de Kandahar


Nafas (Niloufar Pazira) é uma jovem afegã que fugiu de seu país em meio à guerra civil dos Talibãs e hoje trabalha como jornalista no Canadá. Até que sua irmã mais nova, que ficou no Afeganistão, lhe envia uma carta avisando que irá se suicidar antes da chegada do próximo eclipse solar. Nafas resolve então retornar ao Afeganistão a fim de tentar salvar sua irmã.


Direção: Mohsen Makhmalbaf
Ano: 2001
http://ul.to/zxbohthqDuração: 82 min 
Áudio: Persa/Legendado

  Osama
Num país que enviou seus homens para a guerra e que proíbe as mulheres de trabalhar, muitas famílias passam fome. Em pleno regime Talibã, no Afeganistão, a mãe oprimida pelo regime muda a aparência da sua filha, uma garota de doze anos. Ela passa a ser chamada de Osama, obrigada a cortar o cabelo e a vestir-se como se fosse um menino para ajudar a sua família, que é composta apenas por mulheres. Tudo corre bem até que Osama é recrutado pelo exército e inicia uma jornada assustadora pelas estradas do Taleban.
Seis meses depois da queda do regime Talibã o cineasta afegão Siddiq Barmak, que na altura se encontrava exilado no Paquistão, começou a desenvolver Osama. Rodado completamente na capital Cabul, Osama tem no seu elenco apenas atores amadores, recrutados em escolas, orfanatos, centros de crianças da rua e campos de refugiados. A única exceção foi a protagonista, Marina Golbahari, que foi encontrada pelo realizador enquanto andava pela rua. Inspirado numa história verídica, “Osama" é o primeiro filme inteiramente Afegão rodado desde a Ascenção e queda do regime Taliban.Mais um filme premiado em vários festivais, entre os quais três prémios em Cannes, e o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro.
Direção: Siddiq Barmak
http://ul.to/8spdqhkgDuração: 80 min.
Ano: 2003
Áudio: Dari/Pashtu/Inglês/Legendado

O Apedrejamento de Soraya M.
Abandonado em uma remota aldeia iraniana, um jornalista francês é abordado por Zahra, uma mulher que tem uma história horrível para narrar sobre sua sobrinha, Soraya, e as circunstâncias da sua morte sangrenta no dia anterior. Enquanto o jornalista liga o gravador, Zahra nos leva de volta ao começo da história que envolve o marido de Soraya, um falso mulá (líder da mesquita muçulmana), e uma cidade envolta em mentiras, repressão e pânico. As mulheres, despojadas de todos os direitos e sem recursos, nobremente confrontam os desejos devastadores dos homens corruptos, que usam e abusam da autoridade para condenar Soraya, uma esposa inocente mas inconveniente, a uma morte injusta e cruel. Um drama sobre o poder do crime, um mundo fora da lei e a falta de direitos humanos para as mulheres. A última esperança de alguma justiça está nas mãos do jornalista, que deve escapar com a história – e sua vida – para que o mundo tome conhecimento. Baseado no livro homônimo do autor franco-iraniano Freidoune Sahebjam.
Direção: Cyrus Nowrasteh
http://ul.to/vy409w7jDuração: 116 min.
Ano: 2008
Áudio: Inglês/Persa/Legendado

Lemon Tree (Limoeiro)
Salma (Hiam Abbass), uma viúva Palestina, vê sua plantação ser ameaçada quando seu novo vizinho, o Ministro de Defesa de Israel (Doron Tavory), se muda para a casa ao lado. A Força de Segurança Israelense logo declara que os limoeiros de Salma colocam em risco a segurança do ministro e por isso precisam ser derrubados. Salma leva o caso à Suprema Corte de Israel para tentar salvar a plantação.
São várias as questões tratadas por este belíssimo filme! As guerras étnicas, o conflito Israel X Palestina, a justiça praticada pelos mais fortes contra os mais fracos, os conflitos homem X mulher, o machismo, a situação da mulher árabe, a solidariedade humana entre mulheres, a solidão e "ninho vazio", e vai por aí, todas as questões tratadas com sensibilidade, profundo respeito pela condição humana e principalmente pela condição feminina.
Direção: Eran Riklis
http://ul.to/7pyjcbs9Ano: 2008
Duração: 106 min
Áudio: Árabe – Hebreu/Legendado

 Persépolis 
Persépolis é um filme francês de animação de 2007, baseado no romance gráfico autobiográfico homônimo de Marjane Satrapi. Sua trama começa pouco antes da Revolução Iraniana. O título é uma referência à cidade histórica de Persépolis.

Marjane é uma jovem iraniana de oito anos, que sonha em ser uma profetisa do futuro, para assim salvar o mundo. Querida pelos pais cultos e modernos e adorada pela avó, ela acompanha avidamente os acontecimentos que conduzem à queda do Xá e de seu regime brutal. A entrada da nova República Islâmica inaugura a era dos "Guardiões da Revolução", que controlam como as pessoas devem agir e se vestir. Marjane, que agora deve usar véu, deseja se transformar numa revolucionária. Mas, para tentar protegê-la, seus pais a enviam para a Áustria.
O filme estreou no Festival de Cannes de 2007, onde recebeu o prêmio do júri. Em seu discurso, Marjane disse que "apesar desse filme ser universal, eu gostaria de dedicar o prêmio a todos iranianos".
Persépolis foi escolhido pelo governo francês para representar o país na disputa ao Oscar de melhor filme estrangeiro e, apesar de não ter sido indicado na categoria, foi um dos três indicados ao prêmio de melhor filme de animação.
Direção: Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud
http://ul.to/bvyhx1xpAno: 2007
Duração: 92 min
Áudio: Francês/Legendado

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O terror e as suas várias acepções

Da Revolução Francesa, passando pelos carbonários, o século XX com as guerras, e o XXI, com Bin Laden: o terrorismo foi encarado de formas até antagônicas.

     Um grupo de oito soldados judeus americanos persegue oficiais nazistas na França ocupada em 1944. Entre outras coisas, arrancam os escalpos das vítimas – depois de uma sessão de tortura que inclui surra com um bastão de baseball – e gravam suásticas nas testas dos sobreviventes com a ponta da faca. O objetivo? Espalhar o pânico entre os alemães e facilitar a vitória dos aliados. Este é o enredo de “Bastardos inglórios” (2009), filme de Quentin Tarantino. A tática de amedrontar o inimigo – neste caso, os nazistas – nos soa absolutamente legítima. Afinal, se existe um partido a ser tomado nesta disputa, com certeza não é o de Hitler e dos seus comandados.

          

     Mas os pontos de vista sobre esta questão podem variar de acordo com o lugar do observador. De volta à Segunda Guerra Mundial e à ocupação da França, mas agora fora do grande écran, o uso político do medo (e a guerra é a expressão máxima de uma disputa política) pode ser percebido de outra forma, mesmo que nos pareça inesperada. Nem todos os franceses aceitaram ou toleraram a invasão alemã, e organizaram uma série de movimentos e células de defesa. Estes homens e mulheres que atuaram contra os nazistas e os colaboracionistas franceses ficaram conhecidos como partisans (partidários), e La Résistence teve entre os seus membros o célebre historiador Marc Bloch (1886-1944), torturado e morto pela Gestapo. O grupo se tornou um dos movimentos mais dignos de nota na história recente da França, atuando inicialmente no anonimato, em ações de guerrilha e de propaganda. A Resistência teve um papel importante para a derrocada nazista, além de ter servido como um fator de união entre grupos antagônicos da sociedade civil francesa. Como seus membros eram chamados pelos homens de Hitler? Terroristas.
 
Robespierre (1)
     É possível notar, portanto, que o terrorismo – o uso sistemático do medo como atuação política – é um tema bastante complexo, e que a reflexão sobre ele deveria considerar duas direções: 1) o papel que o medo pode ter desempenhado na organização da sociedade ocidental (bem como na teorização sobre o surgimento do seu status político) e 2) a importância da atribuição de valor aos agentes que se utilizam deste sentimento na arena política.
     No século XVIII, em uma época de profundas transformações políticas e sociais, o medo foi utilizado deliberadamente como meio para manter uma ordem política e social. Levando às últimas consequências a autoridade dos líderes da Revolução Francesa, a Convenção declarou, no dia 5 de setembro de 1793, o “Terror”. A nova ordem instaurada pelos revolucionários no poder permitia o encarceramento dos suspeitos de oposição ao regime, medida inicial que acabou se convertendo na morte de cerca de 40 mil pessoas. Os “terroristas”, como ficaram conhecidos estes líderes entre 1793 e 1794, tentavam assegurar as conquistas da Revolução contra anseios dos reacionários, que queriam o retorno ao Antigo Regime. Homens como o líder Maximilien de Robespierre, “o incorruptível”, uma vez instalados no poder, trataram as disputas políticas em termos de uma luta entre o “bem” (eles) e o “mal” (os outros). Ao fim do período do Terror, Robespierre também foi parar na guilhotina.
     Tragédia do ponto de vista da humanidade, o Terror foi fundamental para a formação da máquina militar francesa que teria grandes triunfos nos anos seguintes, inclusive no período da expansão bonapartista. Expansão que, além da guerra, também levou a outras paragens instituições revolucionárias, como o governo constitucional. A partir do século XIX, estas instituições herdeiras de 1789 se configuraram nos governos liberais que se espalharam pelo ocidente, garantindo certas liberdades e, principalmente, colocando grilhões na violência do Estado. A possibilidade de eliminação do indivíduo por conta de injunções políticas não desapareceu, mas estava regulada. Até que grupos políticos organizados fora do âmbito do Estado começaram a se utilizar sistematicamente da violência como estratégia para mudanças institucionais.
     Nas primeiras décadas do século XIX, vários grupos revolucionários se reuniram clandestinamente na Europa. Resgatando a experiência revolucionária francesa, associando-a a princípios políticos de esquerda consolidados logo depois, como a defesa dos extratos sociais inferiores, os “carbonários” tinham como elemento de união o ódio aos ricos. Inspirados na maçonaria, estes grupos reuniam indivíduos interessados em instaurar regimes populares, mas não acreditavam que o próprio “povo” estivesse apto a lutar politicamente por esta nova ordem. Outras organizações, chamadas pelo historiador britânico Eric Hobsbawm de “terroristas”, como os Whiteboys (“Rapazes brancos”) e os Ribbonmen (“Homens das fitas”), estiveram ativos na Irlanda entre os séculos XVIII e XIX, atuando violentamente contra os grandes proprietários.


Bakunin (2)
Ao longo do século XIX, estes grupos organizados fora das estruturas formais do Estado – e às vezes francamente contrários aos seus dirigentes – e que tentavam impor uma revolução social, um objetivo justo sob muitos pontos de vista, instrumentalizaram o medo como forma de ação política. Na década de 1880, os anarquistas formularam uma estratégia chamada “Propaganda pelo Ato”. Proposta pelo russo Mikhail Bakunin e pelo teuto-americano Johann Most, consistia no uso da violência dirigida a alvos políticos estruturais.  A longo prazo, o objetivo seria angariar o apoio das massas para a derrubada do sistema capitalista burguês. Ultrapassando as palavras, os atos violentos seriam um meio mais eficiente de impor uma nova realidade político-social. Outros grupos passaram a se utilizar da estratégia ao longo do século XX – como os próprios carbonários, envolvidos no assassinato do rei D. Carlos I de Portugal e do seu filho e herdeiro, o príncipe D. Luís Filipe, em 1908.
     Os atos de “terror”, ações violentas “cirúrgicas” com propósitos políticos – em geral, mas não sempre, contra o status quo –, passaram a integrar definitivamente o arsenal das mais diversas correntes ideológicas. Em 1914, o sérvio Gravilo Princip, membro da organização nacionalista terrorista Unificação ou Morte (também conhecida como Mão Negra), assassinou o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono da Áustria. Era o estopim para a Primeira Guerra Mundial, que inaugurava um século de conflitos e de extremismos políticos. Ao longo deste tempo, os terroristas assumiram as mais variadas colorações, aumentaram a escala da sua ação e foram vistos de forma negativa ou positiva dependendo do contexto no qual atuaram e, principalmente, de quem os qualificava. Assim, os guerrilheiros islâmicos em atuação no Afeganistão foram chamados de “insurgentes” pelos norte-americanos quando lutavam contra a dominação soviética durante a Guerra Fria, mas seus remanescentes se tornaram “terroristas” quando a União Soviética desapareceu e o seu alvo atravessou o Atlântico.
     Agindo de forma isolada, como o norte-americano Theodore Kaczynski, mais conhecido como Unabomber, que realizou atentados a bomba nos Estados Unidos entre 1978 e 1995 em protesto contra a sociedade industrial e tecnológica, ou em organizações estruturadas, como o ETA, grupo basco de orientação nacionalista e separatista que atua na Espanha, os “terroristas” conquistaram definitivamente a atenção dos meios de comunicação. Se os seus fins mais explícitos não têm sido alcançados (a sociedade capitalista industrial não parece estar em vias de recuar, apesar das seguidas crises; países latino-americanos não parecem dispostos a adotar sistemas comunistas de orientação leninista, malgrado o constante ribombar dos artefatos das facções armadas; o estado de Israel na Palestina não dá sinais de que vai desaparecer, não obstante o sangue continue a correr nas ruas de Tel-Aviv), o meio de luta tem sido um sucesso.

Osama bin Laden (3)
Em maio deste ano, após a morte do terrorista árabe Osama bin Laden, o presidente norte-americano Barack Obama afirmou que a operação foi mais um passo na luta para tornar o mundo um lugar mais seguro – uma etapa do que foi chamado de Guerra ao Terror após os atentados sofridos pelos Estados Unidos em setembro de 2001. Dias depois, em Moscou, o presidente russo Dmitry Medvedev declarou que “a eliminação dos terroristas – até mesmo pessoas em pé de igualdade com Bin Laden – tem efeito direto na segurança dentro da Rússia”. A impressão que se teve a partir de comentários deste tipo, repercutidos pela imprensa de todo o mundo, é de que o nível de insegurança (ou medo) global diminuiu. A julgar pelo histórico da questão, esta não parece uma impressão muito acertada.




(1) Robespierre, em retrato da escola francesa do século XVIII / Fonte: wikimedia-cc
(2) O anarquista Mikhail Aleksandrovitch Bakunin / Imagem: Wikimedia-cc
(3) Osama bin Laden, que foi morto recentemente / Imagem: Wikimedia-cc 

Rodrigo Elias é pesquisador da Revista de História da Biblioteca Nacional


Inspeção Geral
Desde o final do século XIX nos Estados Unidos, a suposta maior democracia da Terra, priva em nome da "segurança nacional" os cidadãos dos seus direitos, que deveriam ser respeitados. Os atentados de 11 de setembro fizeram medidas extremas e ilegais virem à tona novamente. O professor James Perley (Austin Pendleton) pergunta aos seus alunos se teoricamente os Estados Unidos pudessem acabar com o terrorismo no mundo para sempre se eles estariam dispostos a renunciar por apenas um dia seus direitos constitucionais. Os alunos dizem que sim, então James aumenta o prazo para uma semana, depois um mês, um ano, uma década e finalmente por toda a vida. Quanto mais o prazo aumenta, maior é o número de alunos que acha o "preço" bem caro. Para ilustrar melhor isto são mostradas duas situações quase idênticas. Na primeira delas uma americana, Linda Sykes (Maggie Gyllenhaal), é detida na China e interrogada por Liu Tsung-Yuan (Ken Leung). Nenhuma acusação formal é feita contra ela, mas não a deixam chamar um advogado ou entrar em contato com sua embaixada. Paralelamente em Nova York, um árabe, Sharif Bin Said (Bruno Lastra), é detido e interrogado por Karen Moore (Glenn Close), uma agente do FBI que o priva de todos os direitos civis.
Direção: Sidney Lumet
Ano: 2004
Duração: 56 min
Áudio: Inglês/Legendado     

domingo, 27 de novembro de 2011

Comissão da Verdade

O torturador de Dilma vai depor?
Luiz Cláudio Cunha

A verdade se corrompe tanto com a mentira como com o silêncio.
(Marco Túlio Cícero, 106-43 A.C, citado por Dilma Rousseff)

     Um quarto de século após o fim da ditadura, em 1985, o Brasil ganha afinal a sua Comissão da Verdade. Na histórica manhã desta sexta-feira, 18 de novembro de 2011, Dilma Rousseff, a ex-guerrilheira que sobreviveu a três semanas de tortura no período mais duro do regime militar, sancionou no Palácio do Planalto a lei que cria a comissão encarregada de investigar violações aos direitos humanos cometidos pelo regime dos generais. A primeira mulher presidente do Brasil fez o que seus cinco antecessores homens do período democrático não tiveram força ou coragem para fazer: dotar o país do mecanismo legal capaz de resgatar a verdade e a memória soterradas pela treva do arbítrio.
     Ausências e presenças na solenidade do palácio mostraram o que a presidente da República teve que enfrentar até assinar as duas leis que quebram o sigilo de documentos oficiais e que instauram a comissão.
     Uma figura carimbada em todas as cerimônias palacianas brilhou pela ausência: o presidente do Congresso Nacional, senador José Sarney (PMDB-MA), não estava lá, amargando a derrota de sua manobra para preservar um absurdo sigilo eterno sobre os papéis públicos. Uma derrota compartilhada com seu aliado de segredos inconfessáveis, o senador Fernando Collor (PTB-AL), outro ilustre derrotado do dia.
     Quatro figuras estreladas, em contrapartida, estavam lá, discretamente alinhadas na segunda fila de autoridades: os comandantes militares do Exército, Marinha, Aeronáutica e Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. Aplaudiram pouco, sem entusiasmo, mas pelo menos estavam presentes, privilégio que não teve o antecessor de Dilma. Quando o Planalto lançou, em agosto de 2007, o livro Direito à Memória e à Verdade, um corajoso trabalho de 11 anos da Secretaria de Direitos Humanos, iniciado ainda no Governo FHC, nenhum chefe militar compareceu à cerimônia presidida pelo comandante-em-chefe das Forças Armadas, o presidente Lula. Era a acintosa censura da caserna ao documento oficial que reconhecia pela primeira vez a violência do regime militar, listando os nomes de 339 mortos e desaparecidos pela repressão política.

A voz da comandante
     Os comandantes que se ausentaram do Planalto em 2007 — o general Enzo Peri, o brigadeiro Juniti Saito e o almirante Júlio Soares de Moura Neto — eram os mesmos chefes militares que estavam presentes em palácio nesta sexta-feira. A única diferença, de lá para cá, foi a troca de guarda na presidência da República: saiu Lula, entrou Dilma, e os ministros que ainda sobrevivem no governo sabem fazer a distinção.
     Um ano atrás, no ocaso do governo anterior, o mesmo trio bombardeava a ideia da Comissão da Verdade e ousava confrontar o projeto do presidente Lula, num documento enviado ao ex-ministro da Defesa Nelson Jobim, argumentando: “Passaram-se quase 30 anos do chamado governo militar…”.
     Agora, os chefes militares tiveram que ouvir, disciplinados, o eloquente e emocionado discurso da presidente Dilma, que ensinou: “São momentos difíceis, acontecimentos que foram contados sob um regime de censura, arbítrio e repressão, quando a própria liberdade de pensamento era proibida. É fundamental que a população, sobretudo os jovens e as gerações futuras, conheçam o nosso passado, principalmente o passado recente, quando muitas pessoas foram presas, foram torturadas e foram mortas. A verdade sobre nosso passado é fundamental para que aqueles fatos que mancharam nossa história nunca voltem a acontecer”.
     O general Peri, o brigadeiro Saito e o almirante Moura Neto agora com certeza sabem o que seria um ‘chamado governo militar’, pela voz autorizada da comandante-suprema das Forças Armadas, que resume tudo aquilo pela palavra simples e consagrada que define este tipo de regime: ditadura. Até ouvir essa lição de moral, os militares e a plateia no Planalto tiveram que esperar quase uma hora além do previsto. A razão do atraso foi explicada pelo jornalista Lauro Jardim, o editor bem informado da coluna ‘Radar’, da revista Veja: o pau quebrou no gabinete de Dilma, quando o cerimonial avisou que um dos discursos estava reservado ao familiar de um preso torturado. Os ministros José Eduardo Cardoso (Justiça) e Maria do Rosário (Direitos Humanos) defendiam, o ministro Celso Amorim (Defesa) rejeitava com firmeza a proposta. Após um tenso debate, ficou garantida a palavra a Cardoso e, em troca do familiar, falou o presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, Marco Antônio Rodrigues Barbosa.
     A emenda ficou pior do que o soneto. Sem se intimidar com a cara fechada dos militares, Barbosa atacou no seu discurso a Lei da Anistia e sua “esdrúxula figura do crime conexo de sangue”, a esperteza jurídica que nivelou torturadores aos torturados, consagrando a impunidade. O ato solene do Planalto ecoou imediatamente em Nova York, onde a criação da Comissão da Verdade foi saudada como “um grande passo” pela Alta Comissária dos Direitos Humanos da ONU, a sul-africana Navi Pillay, que emendou: “A norma deveria incluir a promulgação de uma nova legislação para revogar a Lei da Anistia de 1979 ou para declará-la inaplicável, facilitando o julgamento dos supostos responsáveis por violações dos direitos humanos. Ao impedir a investigação, ela leva à impunidade, em desrespeito à legislação internacional”.

Até Uganda
     Pillay sabe do que fala: ela foi a primeira mulher não branca nomeada para a Suprema Corte da África do Sul, antes de ser indicada para a Corte Criminal Internacional, o tribunal com sede em Haia dedicado a crimes contra a humanidade e integrado por 117 países — entre eles o Brasil. Mês que vem, dezembro, esgota-se o prazo para o Brasil se defender da condenação sofrida um ano atrás na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) por não ter investigado os crimes de detenção arbitrária, tortura, execução e desaparecimento de 62 militantes do PCdoB, combatidos pelo Exército na guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1975. Lá não serviu o pretexto brasileiro de que os crimes estavam protegidos pela anistia. A OEA e as cortes internacionais os consideram crimes comuns e imprescritíveis, que estão acima da ‘autoanistia’ que os militares se concederam no Governo Figueiredo, o último dos cinco generais que se revezaram no poder entre 1964 e 1985.
     A simples assinatura da lei que acaba com o sigilo de documentos e cria a Comissão da Verdade parece ter sido a parte mais fácil para Dilma, apesar da longa, arrastada costura política que colocou o Brasil numa situação vexatória no Cone Sul. Das grandes ditaduras da região, o país é o último a se mover para investigar os crimes do seu passado recente, tarefa já cumprida de forma exemplar na Argentina, Chile e Uruguai. Ali, militares e torturadores estão sendo investigados e julgados e já cumprem longas penas. O general argentino Jorge Rafael Videla, que iniciou a ditadura mais sangrenta do extremo sul do continente em 1976, hoje cumpre duas penas de prisão perpétua em Buenos Aires pelo envolvimento direto em dezenas de mortes e desaparecimentos. Trinta e quatro países no mundo já criaram suas Comissões da Verdade, muito antes do Brasil. “Este é o nosso momento, esta é a nossa hora”, justificou a presidente Dilma Rousseff.
     Por falta de empenho, o Brasil perdeu a vez para países que repassaram abusos há muito tempo, com comissões que pertencem agora ao passado: Argentina (comissão encerrada em 1984), Chile (1991), El Salvador (1993), Haiti (1996), África do Sul (2002), Peru e Uruguai (2003), entre outros. A primeira Comissão da Verdade nasceu na Uganda do folclórico ditador Idi Amin Dada no distante 1974, ano em que o Brasil via a troca de guarda entre os generais Garrastazú Médici e Ernesto Geisel, os dois governos mais sangrentos da ditadura que parecia então interminável.
     Os trabalhos da missão brasileira só devem começar em maio de 2012, quando Dilma deverá escolher e anunciar os sete membros da comissão, que terão dois anos e 14 funcionários para ajudá-los numa tarefa gigantesca: investigar os abusos aos direitos humanos cometidos em 8,5 milhões de km² ao longo de 42 anos, o espaço de tempo entre as duas últimas Constituições democráticas do país: as de 1946 e 1988. Esta foi uma cínica exigência dos chefes militares, para camuflar o verdadeiro foco da Comissão da Verdade — os 21 anos da ditadura do ‘chamado governo militar’ de 1964 a 1985. Com a concessão, o país faz de conta que investigará também os governos civis dos presidentes Dutra, JK, Jânio, João Goulart e Sarney. O ‘jeitinho’ brasileiro funciona aqui dentro, mas não convence lá fora. A revista britânica The Economist desta semana analisa o atraso brasileiro no trato dos crimes da ditadura de 1964.


Duplo equívoco
     Apesar de ter nos últimos 17 anos de presidência três vítimas do regime militar — FHC exilado, Lula preso e Dilma torturada —, o Brasil só verá sua Comissão da Verdade em ação a partir de maio próximo, 27 anos após a saída do general Figueiredo pela porta dos fundos do Palácio do Planalto. A Argentina enfrentou o problema já em 1983, ano da queda de Reynaldo Bignone, o último general, condenado em março passado à prisão perpétua por crimes contra a humanidade. A Suprema Corte do Chile decidiu em 2004 que a anistia não cobria os desaparecimentos do regime Pinochet. O Parlamento do Uruguai derrubou em outubro passado a autoanistia — justamente o contrário do Brasil, que viu o Supremo Tribunal Federal confirmar, por 7 votos a 2, a autoanistia concedida pelo general Figueiredo em 1979 e aprovada num Congresso dominado pela legenda da ditadura (221 cadeiras da ARENA contra 186 do MDB), que garantiu a chicana jurídica do “crime conexo” para salvar o pescoço dos torturadores.
     O relator do STF, ministro Eros Grau (um ex-preso político torturado no DOI-CODI de São Paulo, o mesmo onde padeceu Dilma), e o relator da Comissão da Verdade no Senado, o senador do PSDB paulista Aloysio Nunes Ferreira (um ex-militante da ALN, organização guerrilheira comandada por seu amigo Carlos Marighella), cometeram o mesmo e indefensável equívoco, alegando que a Lei da Anistia era intocável por ser fruto de “entendimento nacional”. Não foi nada disso.
     Apesar da larga maioria governista na Câmara dos Deputados, em 1979, a ditadura penou para aprovar a lei sob encomenda dos quartéis por apenas cinco votos de diferença — 206 a 201. Um especialista em Nova York do International Center for Transitional Justice, Eduardo González, diz que a demora brasileira em relação aos vizinhos aconteceu porque “a transição brasileira para a democracia foi lenta e controlada”. O ativista gaúcho Jair Krischke, fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, resume a questão numa frase mais precisa e cortante: “Não houve justiça de transição no Brasil. Aqui, houve justiça de transação”.
     The Economist diz que a repressão no Brasil continua até hoje, “embora a violência seja policial e não mais do Exército”. Só no Rio de Janeiro, a cada ano, a polícia mata cerca de mil civis, “a maioria deles pobres e negros”, lembra a revista, denunciando que a “truculência da polícia raramente é punida e é frequentemente aplaudida”, como aconteceu na ocupação da favela da Rocinha e nas sessões lotadas do filme Tropa de Elite.


A solidez da broa
     Tirar a comissão do papel, na verdade, será bem mais difícil do que o festivo ato de sua criação. A começar pela complexa escolha de seus sete integrantes, de competência exclusiva da presidente Dilma, “entre brasileiros de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos”. O grupo terá um perfil de imparcialidade, sem cargos em partidos ou cargos de comissão em qualquer dos três poderes. Isso, na prática, significa que militares e agentes da repressão, bem como familiares de desaparecidos ou ex-presos políticos e torturados não têm espaço na comissão. É o que acha o ex-preso da guerrilha do Araguaia e torturado José Genoíno, hoje assessor especial do Ministério da Defesa, que definiu: “Colocar ex-preso político na comissão não dá certo. Preso de um lado e militar de outro, pela ideia do equilíbrio, criaria um impasse na comissão. Seria um jogo de soma, que vai ser igual a zero”.
     Uma obsessão permanente, de um lado e outro, foi o combate ao princípio da revanche. “O Brasil se encontra consigo mesmo, sem revanchismo, mas sem a cumplicidade do silêncio”, pontuou a presidente Dilma no seu discurso. Muito tempo foi gasto para negociar uma única palavra no parágrafo 3º do inciso VIII do Art. 4º: “É dever dos servidores públicos e dos militares colaborar com a Comissão Nacional da Verdade”.
     Os militares não queriam estar ali, no que lhes parece ser o banco dos réus, submetidos ao escrutínio tardio de seus abusos. Queriam substituir o mandatório “é dever” pelo condicional “poderão”, com um sentido mais ameno de convite, a ser aceito ou não. Perderam a batalha. Mas ganharam a guerra decisiva do parágrafo seguinte, o 4º, que decreta: “As atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório”.
     Ou seja, o que for dito ou revelado numa audiência salgada da comissão terá o mesmo destino de uma plácida broa de milho no pacato chá das cinco dos imortais na Academia Brasileira de Letras: virar farelo, pura migalha. Nenhum efeito legal ou jurídico irá decorrer mesmo no caso de uma improvável confissão de culpa em atos de tortura ou crimes de desaparecimento. Para não deixar margem a qualquer risco, o inciso V do artigo anterior, o 3º, estabelece que todas as apurações sejam feitas no âmbito da Lei de Anistia de 1979 — aquela mesma que, segundo a ditadura e o Supremo Tribunal Federal, perdoou para sempre torturadores que nunca foram condenados, sequer julgados. Será um jogo de soma zero, como prefere Genoíno, ou uma inaceitável limitação, como define o senador Pedro Taques (PDT-MT): “Não há justiça enquanto algumas pessoas não forem responsabilizadas”.


     Assista reportagem especial do Jornal SBT Brasil. Na semana que fez aniversário o golpe militar que depôs João Goulart (Jango) e instaurou no país a ditadura militar que perdurou por 21 anos, o SBT realizou uma série de reportagens que lançam luz no debate sobre a impunidade dos torturadores.