“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 28 de junho de 2020

Em nome do progresso

Uma sociedade criada por figuras ilustres na Corte lutou pela imigração europeia como forma de preparar o Brasil para o trabalho livre e "aprimorar" os nacionais
Andréa Santos Pessanha
               Dentre as acusações feitas à Sociedade Central de Imigração, nenhuma é, portanto, mais infundada, do que a falta de patriotismo; no entanto, repetem-na incessantemente, sob todas as formas, por saberem a impressão que sempre ela causa nos espíritos menos preparados para a solução dos grandes problemas sociais." Acusada de estrangeirismo, um artigo publicado na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 28 de março de 1885, defendia a instituição, afirmando não existir ideal mais patriótico do que o seu. Mas qual era o significado de patriotismo para um grupo que propagava a imigração europeia?
               A Sociedade Central de Imigração (SCI) foi fundada em novembro de 1883, no Rio de Janeiro, com a presença do imperador d. Pedro II (1825-1891). Até o fim de sua atuação, em 1891, o jornal oficial A Immigração cumpria a tarefa de divulgar os ideais de uma sociedade formada por homens de renome na Corte, como seu vice-presidente Alfredo d'Escragnolle Taunay (1843-1899), o visconde Henrique Beaurepaire-Rohan (1812-1894) e o abolicionista e engenheiro negro André Pinto Rebouças (1838-1898), que exibia nos jornais do Rio de Janeiro seu engajamento na SCI e na campanha a favor da presença de europeus. Para Rebouças, o primeiro critério para a hierarquização da sociedade brasileira deveria ser cultural e não racial - argumento fortalecido pela trajetória de sua família. O desenvolvimento material e intelectual do ex-escravo seria alcançado com a propriedade da terra e com o exemplo da superior cultura europeia.        
                 Paralelamente à apologia do "imigrantismo", a SCI defendia a emancipação, argumentando que a escravidão envergonhava o Brasil perante as demais nações, além de dificultar a atração e a permanência de imigrantes. Era preciso ainda modificar a forma com que os proprietários tratavam e viam os trabalhadores - enquanto existisse o cativeiro, essa mudança não seria possível. O objetivo principal da Sociedade Central de Imigração era o progresso social e econômico brasileiro por meio do trabalho e do exemplo dos imigrantes europeus, que somente sairiam de seu local de origem na esperança de se tornarem proprietários. Para a sociedade, o trabalho assalariado ou o sistema de parceria poderiam atrair imigrantes num primeiro momento, mas logo apareceriam as insatisfações, como já tinha ocorrido na província de São Paulo, onde famílias inteiras de imigrantes se retiraram das fazendas.
               A SCI existiu em um momento em que as elites intelectuais debatiam a transição do trabalho escravo para o livre, com um discurso de favorecimento da mão de obra imigrante em detrimento do trabalhador nacional. Segundo essas elites, a liberdade era compreendida pelos cativos como oposição ao trabalho, confundindo-se com "vadiagem"; enquanto que o imigrante europeu, já habituado ao trabalho livre, teria valores positivos em relação à labuta. Dessa forma, dois modelos de trabalhadores foram construídos. De um lado, os negros, dotados de todos os vícios do passado escravista - a Abolição não implicaria aperfeiçoamento imediato, pois apenas deixava-os livres para ameaçar a "boa sociedade". De outro, estavam os imigrantes, que simbolizavam a prosperidade econômica e social, pois possuíam as virtudes necessárias ao regime de trabalho livre e desejavam obter riqueza através dele. Essas argumentações faziam parte de um projeto de "embranquecer" e europeizar a sociedade brasileira. Eram ideias que circulavam com a entrada, no Brasil, de teorias científicas que pretendiam a constituição de uma nação com hierarquias baseadas em critérios raciais. O médico e biólogo francês Louis Couty (1854-1884) foi uma importante referência teórica para a SCI, com sua tese a favor da imigração europeia como meio de "aprimorar" o povo brasileiro.
               Negros, brancos, mulatos, índios e chineses transformaram-se então em objetos de estudo. A ciência, baseada na noção de raça, classificava e estabelecia o potencial de desenvolvimento e as características dos indivíduos a partir de seus traços biológicos. No final do século XIX, na iminência da abolição da escravatura, discutir a questão racial significava, para as elites, debater a questão nacional, já que o progresso do país dependeria da composição étnica de seu povo. Assim, a defesa da imigração não se restringia às necessidades de mão de obra, mas também a um ideal de construção de uma nacionalidade. O Brasil que se pretendia formar era livre e de cidadãos brancos. Os nacionais (mestiços, negros e brancos pobres que não tinham a cultura das elites) eram desqualificados como trabalhadores e cidadãos, mas o futuro deles poderia ser promissor através de uma "regeneração" biológica e cultural. Para a SCI, a imigração branca cumpriria, portanto, duas funções de caráter econômico e social: uma diretamente voltada para a construção do Brasil desejado, por meio do ideal de imigrante-cidadão; outra, indiretamente ligada ao progresso do país, pelo exemplo que "as raças mais ativas e inteligentes" ofereceriam aos nacionais.
               Em 1884, no Parlamento, Taunay fez uma representação, em nome da SCI, propondo medidas de incentivo à entrada de europeus, como a concessão da cidadania brasileira a esses colonos; liberdade religiosa (com destaque para o registro civil, o casamento civil obrigatório e os cemitérios livres); o estímulo à pequena propriedade; o apoio do governo imperial nos serviços de recepção e alojamento dos imigrantes; e também a criação de um imposto territorial, para tornar onerosa a terra improdutiva e resolver o problema de concentração da propriedade fundiária. O imposto estimularia a venda, a baixo custo, ou o arrendamento de terrenos ociosos para os imigrantes. O texto apresentado por Taunay reforçava a importância da pequena propriedade não só para a imigração, mas também para a reforma geral do sistema de trabalho no Império, como um modo de preparar o Brasil para o fim da escravidão.
               Para a SCI, a inferioridade racial não se limitava aos negros. Tanto que, em julho de 1889, após a abolição da escravatura, a entidade dirigiu contundente ofício ao visconde de Ouro Preto (1837-1912), presidente do Conselho de Ministros, contra a vinda de chineses, apesar de ser o desejo de muitos fazendeiros brasileiros. Segundo a sociedade, os chineses não estimulariam o progresso do país, pois se submeteriam às condições de trabalho desumanas impostas pelos proprietários e não teriam como objetivo a propriedade territorial. Pior: eram considerados mais atrasados na linha evolutiva que os ex-cativos brasileiros, não dariam o exemplo de valorização do trabalho, de vida regrada, de preocupação com a poupança e com a prosperidade material - características atribuídas aos imigrantes europeus. Os chineses ainda seriam o oposto do ideal de imigrante-cidadão, de imigrante-proprietário imaginado pela sociedade e, no máximo, representariam uma máquina de trabalho, nunca um elemento de civilidade e progresso.
               A Sociedade Central sustentava, portanto, um projeto de imigração exclusivamente europeia, que, além de substituir a mão de obra escrava, construiria a nacionalidade brasileira. Para seus integrantes, essa era a solução para os grandes problemas sociais do período e combinava perfeitamente com patriotismo, já que, através da valorização do trabalho e da contribuição de "raças mais evoluídas", os nacionais buscariam o caminho do desenvolvimento individual, o que levaria posteriormente ao progresso do país.

ANDRÉA SANTOS PESSANHA é coordenadora do curso de História da UNIABEU, doutoranda em História na UFF e autora do livro Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a vida e as ideias de André Rebouças. Rio de Janeiro: Quartet, 2005

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 24 - outubro 2005

Saiba Mais: Bibliografia
AZEVEDO, Célia Mana Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites. Século XIX. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1987.
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra Representações do brasileiro. São Paulo:
Annablume, 2003.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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terça-feira, 23 de junho de 2020

Alemães para toda obra

De D. João VI a projetos privados de produção agrícola, imigrantes germânicos fizeram história no Brasil a partir do século XIX
RODRIGO TRESPACH
               Ainda que houvesse no país um grande número de viajantes, cientistas e artistas, e o Rio de Janeiro contasse com mais de vinte empresas alemãs operando na cidade, no começo do século XIX não havia colônias germânicas no país. A presença alemã estava limitada ao comércio em núcleos urbanos, sem influência do governo português. E apesar de o Conselho Ultramarino, em Lisboa, ter visto a necessidade de instalação de colonos não lusos no Brasil, nenhuma tentativa foi realizada até a chegada do príncipe D. João ao Rio de Janeiro, em 1808. 
              Pelo Tratado de Aliança e Amizade, assinado logo depois com a Inglaterra, D. João havia se comprometido com a extinção gradual do tráfico negreiro até a sua proibição. O perigo de uma revolta de escravos, como a que havia libertado o Haiti de mãos francesas em 1791, era visto pela população branca e livre como algo iminente. Um pouco mais tarde, em carta ao imperador austríaco, sogro do príncipe D. Pedro (futuro D. Pedro I), o rei português expôs seu objetivo quanto ao projeto de mudar a fonte da mão de obra no Brasil: decidira "substituir por colonos brancos os escravos negros". Do medo das revoltas escravas, da exigência externa pelo fim da escravidão e da necessidade de criação do minifúndio e da produção artesanal surgiu a política de imigração e colonização com alemães.
               Em 16 de maio de 1818, D. João VI estabeleceu as condições para a vinda de famílias suíças para o Brasil. Nos dois anos seguintes, por intermédio de Sébastien-Nicolas Gachet, mais de 2 mil suíços, alguns de língua alemã, foram trazidos para a região serrana do Rio de Janeiro. Ali foi fundada a colônia de Nova Friburgo, a primeira tentativa oficial de criação de uma colônia agrícola com europeus não portugueses.
               Mas foi na Bahia que se formaram as primeiras colônias com imigrantes alemães. Embora autorizados pelo governo português, eram projetos privados, idealizados por naturalistas alemães. Em 1816, Peter Weyll e seu sócio Adolf Saueracker estabeleceram a colônia São Jorge dos Ilhéus, à margem esquerda do rio Cachoeira, nas proximidades de Ilhéus. No ano seguinte Georg Wilhelm Freyreiss fundou junto com um pequeno grupo de cientistas, pesquisadores e empresários alemães, uma pequena "colônia alemã e suíça", próximo à Vila Viçosa, hoje Nova Viçosa, a 900 quilómetros ao sul de Salvador, a qual batizou de Leopoldina em homenagem à futura imperatriz brasileira, esposa de D. Pedro I. Mesmo que tenham atingido algum sucesso, essas colônias não conseguiram assegurar o apoio de investidores nem do governo. Na década de 1860 não eram mais consideradas colônias, tendo os imigrantes se tornado fazendeiros e abandonado o sistema associativista original.
               Em 1822, a iniciativa foi transferida para o Império e ninguém menos do que José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), que estava à frente do Ministério do Reino e dos Negócios Estrangeiros, articulou a vinda de colonos para substituir a mão de obra escrava e dos soldados que garantiriam - pela força das armas, se necessário - a independência do Brasil. Em agosto daquele ano, José Bonifácio entregou instruções secretas a Georg Anton von Schaeffer - alemão amigo da austríaca Leopoldina, imperatriz do Brasil, que fora nomeado agente brasileiro na Alemanha - e o enviou a Europa. A missão de von Schaeffer era visitar as principais cortes alemãs angariando apoio à causa brasileira, e encaminhar para o Brasil, o mais breve possível, colonos e principalmente soldados para a guerra da Independência. Schaeffer embarcou para a Europa uma semana antes do Grito do Ipiranga.
               A proposta levada aos alemães pelo agente brasileiro era atraente. Para aqueles que quisessem fugir das guerras, do excedente populacional e da miséria na Europa, von Schaeffer oferecia 77 hectares de terra, isenção de impostos por dez anos, animais de criação e sementes, além de outros subsídios. Eram números fora dos padrões alemães. Na Alemanha, somente entre 10% e 20% da população possuía propriedades que excediam dez hectares. "Aqui se recebe um pedaço de terra cujo tamanho na Alemanha corresponderia a um condado", escreveu à família, em 1827, um colono estabelecido no Brasil. A passagem dos soldados seria paga pelo governo, desde que servissem ao Exército durante quatro anos. Foram criados quatro batalhões de estrangeiros com alemães: dois de Granadeiros (para a guarda da Corte) e dois de Caçadores (lutariam na Guerra da Cisplatina e na Confederação do Equador).
               Em janeiro de 1824, o navio Argus ancorou no porto do Rio de Janeiro com pouco mais de 280 pessoas. Era o primeiro navio com alemães "a serviço do Império". Os soldados permaneceram na capital para servir no Exército, enquanto os colonos foram enviados para a colônia suíça de Nova Friburgo, como um destino provisório. A região escolhida para receber as levas posteriores estava localizada no Vale do Rio dos Sinos, próximo a Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Ali existia uma fazenda de escravos chamada Feitoria do Linho Cânhamo, responsável pela produção de cordas para a Marinha. Parte da estrutura existente foi aproveitada para receber os primeiros colonos - o que ocorreu muito provavelmente no dia 23 de julho e não no dia 25, data consagrada em 1924, nas comemorações do Centenário da Imigração Alemã.
                A ideia de imigração e colonização no Brasil passava pela necessidade de criação de uma nova classe média, branca e pequena proprietária, que desenvolvesse a policultura agrícola e o artesanato, povoasse áreas de fronteira e fosse capaz de abastecer cidades importantes. São Leopoldo cumpriu muito bem esse papel, muito mais do que Nova Friburgo ou qualquer outra tentativa anterior. Daí que, mesmo não sendo o projeto pioneiro, ele é considerado o berço da colonização alemã no Brasil.
               O trabalho de agenciamento de alemães perdurou mesmo depois da saída de José Bonifácio do ministério. Mas com a forte oposição política à imigração, principalmente a de soldados, von Schaeffer precisou retornar ao Brasil em 1828. Naquele ano, uma rebelião de soldados alemães e irlandeses no Rio de Janeiro pôs fim ao apoio do governo ao projeto iniciado por Bonifácio. No ano seguinte, iniciou-se a desmobilização dos soldados que haviam servido no Exército Imperial, e a pressão aumentou até que D. Pedro I assinasse, em 15 de dezembro de 1830, a Lei do Orçamento, cortando os gastos com a imigração de mercenários para o Exército e com colonos e artesãos.
               Com base no projeto iniciado em 1822, após a criação de São Leopoldo (1824) e de Três Forquilhas, também no Rio Grande do Sul (1826), surgiram ainda as colônias Santo Amaro e Itapecerica, em São Paulo (1827 e 1828), São Pedro de Alcântara, em Santa Catarina (1829), e Rio Negro, no Paraná (1829). Até 1830, mais de 8 mil alemães entraram no Brasil. Metade deles era protestante (luteranos), fato novo em um país historicamente católico.
               Em 1834, uma alteração na Constituição permitiu que a iniciativa e o estabelecimento de colônias ficassem a cargo dos governos provinciais, e não mais do governo imperial. Se no Primeiro Reinado (1822-1831) a imigração estava associada a critérios geopolíticos, após essa data o critério passou a ser quase exclusivamente econômico, por interesse tanto das províncias quanto de particulares. Após o fim da Revolução Farroupilha, no Sul, o país retomou a iniciativa de imigração e colonização. Entre as mais importantes estavam: Petrópolis, no Rio de Janeiro (1845); Santa Isabel (1847) e Leopoldina (1859), no Espírito Santo; Blumenau (1850) e Dona Francisca (1851), em Santa Catarina; e Santa Cruz do Sul (1849), Santo Ângelo (1857) e São Lourenço do Sul (1858), no Rio Grande do Sul. Somente no Rio Grande do Sul foram criadas 140 colônias até 1922.
               Em 1847, o senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro conseguiu um empréstimo do governo para financiar a vinda de algumas famílias alemãs para trabalharem em suas lavouras de café na fazenda Ibicaba, em Limeira, São Paulo. Plantavam, cultivavam e colhiam em um "sistema de parceria". Baseava-se em um contrato que destinava à família do colono certo número de pés de café para o cultivo e uma determinada área de exploração para subsistência. A remuneração era proporcional ao montante de gêneros produzido pelo colono, descontadas as despesas de transporte, adiantamentos e recursos para a instalação inicial. Política não muito bem vista pelos colonos - considerada uma espécie de escravidão - mas que fez muito sucesso entre os fazendeiros.
               Os erros cometidos em São Paulo, que resultaram na revolta liderada pelo colono Thomas Davatz em 1858, fizeram com que antiescravistas, como o cônsul-geral da Prússia no Brasil, J. Jacob Sturz, promovessem maciça campanha antibrasileira na Alemanha. O governo prussiano aprovou, inclusive, um regulamento que proibia a propaganda e o aliciamento de colonos para o Brasil. Mais tarde estendido a toda a Alemanha, o regulamento von der Heydt só seria revogado em 1890.
               Possivelmente, o mais bem-sucedido empreendimento de colonização com alemães tenha sido mesmo Blumenau, em Santa Catarina, fruto do trabalho do farmacêutico Hermann Blumenau (1819-1899). Em 1848, ele conseguiu junto ao governo de Santa Catarina a concessão de terras no Vale do Itajaí, dando início ao projeto dois anos depois. A ideia inicial de um estabelecimento agrário em grande escala deu lugar à pequena propriedade e à criação de um centro urbano, complemento indispensável econômica, comercial e culturalmente à colônia.
               Apesar das dificuldades e das diferentes políticas imigratórias usadas no país, os alemães continuaram vindo. De diversas formas, até o início da década de 1970 haviam chegado ao Brasil mais de 255 mil imigrantes provenientes de territórios que formam a Alemanha moderna. Além da contribuição para o desenvolvimento da agricultura e da produção industrial, o imigrante alemão teve um importante papel no processo de diversificação cultural do país, especialmente na língua, na religião, na gastronomia e na arquitetura.

RODRIGO TRESPACH É COLABORADOR DO INSTITUTO DE HISTÓRIA REGIONAL, DA JOHANNES GUTENBERG UNIVERSIDADE DE MAINZ (ALEMANHA) E AUTOR DE O LAVRADOR E O SAPATEIRO (EDIPUCRS, 2013).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 9 - nº 102 – março 2014

Saiba Mais: Bibliografia
BOLLE, Willi & KUPFER, Eckhard E. Cinco séculos de relações brasileiras e alemãs. Santos: Editora Brasileira de Arte e Cultura, 2013.
CUNHA, Jorge Luiz da (org.). Cultura Alemã 180 anos. Porto Alegre: Nova Prova, 2004.

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quinta-feira, 18 de junho de 2020

Braços para fazer um país

A chegada de uma quantidade jamais vista de estrangeiros livres, no final do século XIX, marcou a vitória de um projeto de substituição da mão-de-obra escrava
Rodrigo Elias
               Na época da Independência (1822), a imigração estava na pauta dos intelectuais e políticos do país. E por três motivos principais: ocupação do território; necessidade de soldados para garantir a posse do país; e o estímulo ao trabalho livre, considerado superior ao escravo, conforme os princípios iluministas defendidos por parte da elite intelectual luso-brasileira (os filósofos iluministas do final do século XVIII defendiam, geralmente, as liberdades individuais e acreditavam no progresso, que poderia ser alcançado através da razão). Um dos propagadores dessas ideias foi José Bonifácio (1763-1838), que teve alguma ascendência sobre d. Pedro I (1798-1834). Hipólito da Costa (1774-1823), que publicou em Londres entre 1808 e 1822 o Correio Braziliense, também advogava para o Brasil um modelo de colonização baseado na pequena propriedade e no trabalho familiar. Com este espírito foram fundados núcleos no sul do país, entre eles, o mais bem-sucedido, a colônia alemã de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul (1824).
            Mas a iniciativa não prosperou muito, principalmente porque a base da mão de obra brasileira era escrava e o tráfico negreiro representava um excelente negócio para agricultores e comerciantes brasileiros. Ainda que fosse considerado ilegal desde 1831, este comércio só aumentou até 1850, quando nova lei foi publicada para pôr fim a uma das maiores migrações forçadas da história do Ocidente. Apenas na segunda metade do século XIX, com a iminente extinção da escravatura, o trabalho livre como motor da produção brasileira passou a ser seriamente considerado.
               Mas, se por um lado aparecia no Brasil uma forte pressão política antiescravista, por outro, a Europa (e, pouco depois, a Ásia) começava a conviver com grande excedente populacional. Melhorias na agricultura e queda nas taxas de mortalidade ao longo do século XIX contribuíram para que ocorresse o que os estudiosos chamam de "transição demográfica", ou seja, a taxa de crescimento da população aumentou drasticamente. Como no caso português, que, de uma taxa de 0,16% ao ano em 1820, passou para 1% em 1890. Um salto de mais de 600%, que não foi acompanhado pela estrutura produtiva: entre 1840 e 1890, a produção agrícola da Europa apenas dobrou e o contingente populacional empregado subiu de 50 para 66 milhões (pouco mais de 15%). Ao mesmo tempo, porém, a mobilidade das pessoas foi facilitada pelas ferrovias e embarcações a vapor.
               Do lado de cá do oceano, os braços livres escolhidos pelos políticos, intelectuais e produtores para levar adiante um projeto de civilização eram, obviamente, braços europeus. Havia, sim, iniciativas para trazer africanos livres e colonizar o território, mas o projeto vitorioso foi o de uma elite romântica que considerava os imigrantes da Europa os únicos capazes de construir uma nação civilizada e moderna.
               A grande experiência nessa transição do trabalho escravo para o livre, ainda em meados do século XIX, pode ser atribuída a Nicolau de Campos Vergueiro (1778-1859). Grande proprietário de terras (e de escravos) em São Paulo, também foi regente, senador, ministro, e o primeiro fazendeiro de café a utilizar imigrantes europeus em suas lavouras. Trouxe famílias alemãs, portuguesas e suíças na década de 1840, adotando o modelo de parceria, também conhecido como "sistema Vergueiro": o colono assinava um contrato comprometendo-se a pagar os gastos com seu transporte; ficava obrigado a trabalhar na lavoura de café, cujos ganhos eram divididos entre ele e o fazendeiro; e o excedente de mantimentos (que o colono podia plantar para sua subsistência) também era dividido com o dono da terra. O sistema floresceu por algum tempo, e São Paulo chegou a ter, em 1857, cerca de sessenta colônias de imigrantes, sobretudo alemães e suíços. Mas a forte mentalidade escravocrata dos produtores brasileiros expressa em contratos cada vez mais prejudiciais aos imigrantes - provocou a interrupção das colônias de parceria ainda no final daquela década.
          Para sorte dos produtores do Sudeste brasileiro, na década de 1860, a Europa viveu uma conturbada situação econômica e social. A Revolução Industrial, iniciada no século XVIII na Inglaterra, chegara tardiamente a alguns países, como a Alemanha e a Itália, que também enfrentavam, nessa mesma época, processos de unificação política. Como havia acontecido em outros países, os pequenos produtores e trabalhadores italianos foram extremamente prejudicados pela introdução das máquinas no processo produtivo. Isto sem falar no aumento dos impostos sobre a terra e o consequente endividamento dos camponeses. Segundo a historiadora Zuleika Alvim, essas condições, aliadas à melhoria nos transportes, disponibilizaram no mercado mundial "verdadeiras hordas de camponeses sem terra e desocupados". O que, ainda segundo a historiadora, era essencial para o próprio capitalismo europeu: eliminava um grande contingente populacional que pressionava os centros urbanos e, ao mesmo tempo, beneficiava a "pátria-mãe" com o dinheiro enviado do exterior pelos parentes expatriados.
               Nesse mesmo período, o governo brasileiro tomou parte na imigração europeia, embora sem umapolítica bem definida sobre a questão. O objetivo maior, ao menos para setores mais liberais do governo, era ocupar áreas de baixa densidade demográfica, facilitando o estabelecimento de colonos no Paraná e em Santa Catarina. O sistema adotado foi o de núcleos coloniais. A elite cafeicultora, preocupada com o suprimento de trabalhadores para suas grandes unidades produtoras de café, não gostou da ideia. E sua preocupação cresceu ainda mais com a lei de 1871, que indicava o fim próximo da escravidão.
               Assim, enquanto o governo imperial se esforçava para estabelecer núcleos coloniais baseados no trabalho familiar e na pequena propriedade - em 1875 o país possuía 89 desses núcleos, dos quais 66 no sul do país -, a elite econômica, bem organizada politicamente, conquistava a vitória para seu projeto de imigração. Os mais influentes produtores de café, concentrados na província de São Paulo, tomaram a dianteira nesse processo, com um objetivo bem simples: obter braços para a lavoura. E conseguiram que o Império autorizasse, ainda em 1871, a vinda de imigrantes subvencionados, isto é, com despesas pagas pelos governos imperial e provincial. Leis paulistas da década de 1880 destinavam verbas públicas exclusivamente para o transporte de imigrantes. O poder dessa elite na política de imigração do governo seria ainda maior após o golpe republicano de 1889, quando o Estado assumiu quase que totalmente os custos com a importação de trabalhadores estrangeiros.
               O caso italiano é bem significativo do fenômeno no período conhecido como "grande imigração". Para se ter uma dimensão, atualmente a população da Itália é de 58 milhões de habitantes, e no período entre 1860 e 1940 nada menos que 20 milhões de italianos deixaram seu país em busca de outras paragens. E de 1870 a 1920, 1,4 milhão deles escolheram o Brasil, ou seja, 42% dos mais de 3 milhões de estrangeiros que vieram para o país nessa época.
          Mas eles não eram propriamente "italianos". A Itália, até sua unificação (iniciada em 1861 e completada em 1870), era constituída por Estados independentes, com culturas, climas, economias e até línguas diferentes; eles eram, na verdade, vênetos, calabreses, toscanos, sicilianos, piemonteses... Embora tenham sido identificados ao longo de décadas como "o imigrante", viraram italianos no Brasil. Os que vieram do norte da península, em especial de Vêneto, eram, geralmente, pequenos proprietários de terra, meeiros e arrendatários, com famílias extensas de até 15 pessoas - e não os miseráveis retratados em boa parte da ficção. Alguns sulistas, como os calabreses, também chegaram nas mesmas condições, ao menos até meados da década de 1880. Mas a situação mudou no final do século, com o predomínio da imigração de braccianti, trabalhadores braçais totalmente destituídos de capital que vinham principalmente do sul da Itália. Os agentes brasileiros de imigração na Europa, ligados aos nossos produtores de café, foram os grandes responsáveis pela arregimentação desses braços.
               Os portugueses também representaram parte significativa da imigração para o Brasil nesse período. De acordo com o historiador Joaquim da Costa Leite, cerca de 1,1 milhão de lusos cruzaram o Atlântico entre 1855 e 1914 para se estabelecer no Brasil, o que significa cerca de 90% de todos os emigrantes de Portugal na época. Como os portugueses possuíam uma tradição de migração para o Brasil que remontava ao século XVI, quando escolhiam este destino já sabiam as condições que encontrariam, fosse por meio de um parente, um vizinho ou um amigo já emigrado. Some-se a isto as melhorias nas informações (correios, telégrafos, jornais) e nos transportes, pois desde 1851 havia uma linha regular de vapor de Lisboa para o Brasil. Segundo Costa Leite, "a própria noção de uma era de emigração de massas exclui a ideia de riscos excepcionais que apenas seriam aceitáveis para um número reduzido de aventureiros". Poderíamos atribuir esta noção não apenas aos portugueses, mas também aos italianos, espanhóis, alemães e, a partir de um certo ponto, aos japoneses.
               Parte dos imigrantes que aqui chegaram, como vimos, formaram núcleos coloniais, sobretudo durante o período imperial, enquanto o governo ainda possuía alguma força para contrariar, ao menos em parte, os interesses da elite cafeicultora. Surgiram então núcleos como os alemães de Blumenau, Joinville, Santo Ângelo e São Lourenço, por exemplo. Os italianos também fundaram na mesma região núcleos prósperos, como Bento Gonçalves, Caxias e Garibaldi.
           Entretanto, com a proclamação da nova República dos antigos barões do café, a imigração subvencionada pelo Estado voltou-se, quase que exclusivamente, para a grande lavoura. Vencia, assim, o projeto de substituição da mão de obra escrava pela livre. Livre, mas com ressalvas: o regime de colonato, ao qual estavam submetidos por contrato, limitava o movimento desses trabalhadores e suas famílias, tornando-os dependentes das fazendas.
               Outros imigrantes foram parar nas grandes cidades. Ajudaram a formar o operariado brasileiro e atuaram no setor de serviços de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo (eram italianos, por exemplo, 90% dos trabalhadores industriais de São Paulo em 1901). Os centros urbanos, embora oferecessem precárias condições de sobrevivência no início do século XX, eram preferidos em relação às lavouras, principalmente por causa da mobilidade. Para os estrangeiros, a cidade era um lugar de oportunidade.
               No campo, nas colônias ou nas cidades, os braços estrangeiros foram colocados ao lado dos brasileiros (nem sempre de forma pacífica) nas tarefas do dia a dia. Fazendo o Brasil nas lavouras, fábricas, comércio e nas artes, milhares e milhares de homens e mulheres aprenderam a ser brasileiros, mas também de alguma forma se tornaram, por conta da saudade e do apego às tradições (ancestrais ou inventadas), mais italianos, portugueses, libaneses, espanhóis, japoneses...

RODRIGO ELIAS é mestre em História Moderna e Contemporânea pela Universidade Federal Fluminense e doutorando em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2, nº 24 - outubro 2005

Saiba Mais: Bibliografia
Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro: IBGE, 2000.
FAUSTO, Bóris (org.). Fazer a América. 2a. ed. São Paulo: Edusp, 2000.
HOBSBAWM, Eric J. A era do capital, 1848-1875.10a. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
SILVA, Sérgio. Expansão cafeeiro e origens da indústria no brasil. São Paulo: Alfa Omega, 1976.

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sábado, 13 de junho de 2020

Os outros somos nós

Cento e cinquenta anos de imigração resultaram em um país construído por braços e mentes de diversas partes do mundo
LENÁ MEDEIROS DE MENEZES
               Imigração é mais do que o ato de deslocamento. É um processo que marca, de forma mais ou menos definitiva, a vida e a trajetória de seus protagonistas. Durante um século e meio, a chegada e o estabelecimento de estrangeiros no Brasil estiveram no centro da pauta política nacional. A história do país foi escrita com os imigrantes. Às vésperas da abolição da escravidão (1888) e do advento da República (1889), a iniciativa oficial de incentivar a imigração para o Brasil foi anunciada com base em objetivos bem variados: "como fator ativo (...) do povoamento do nosso vastíssimo território, da constituição da pequena propriedade, do desenvolvimento das indústrias de toda a natureza, como agente eficaz, enfim, do progresso social em todas as suas esferas", nas palavras do ministro da Agricultura, Rodrigo Augusto da Silva, no ano de 1887. Ao pontuar esses ganhos múltiplos que poderiam resultar da imigração, o ministro pensava, é claro, no imigrante branco e europeu.
               Sob influência do evolucionismo e do racismo, uma questão parecia indiscutível na segunda metade do século XIX: o país necessitava abrir-se ao progresso e à civilização através da atração de um trabalhador "superior" e "morigerado", isto é, de bons costumes. Ao longo do Império e da República, os processos de imigração e colonização criaram um novo Brasil, com o aporte trazido por novas etnias, línguas e manifestações culturais. Aos comerciantes ingleses, franceses e alemães e aos suíços que constituíram as primeiras levas, juntaram-se indivíduos provenientes de aldeias de países pobres de base agrícola, em especial, portugueses (transformados de colonos em imigrantes no pós-independência), italianos e espanhóis. Ao longo do tempo, estas seriam as três nacionalidades de maior projeção no país. Na virada para o século XX, chegariam levas de imigrantes do Próximo e do Extremo Oriente.
               Quanto às experiências de colonização e de imigração para o campo, elas foram muitas, incluindo-se desde as atípicas, como a dos falanstérios - comunidades autossuficientes idealizadas por Charles Fourier - à parceria e à imigração subsidiada. Destaque-se também a imigração para a cidade, onde os colonos se engajavam na construção de vias férreas e obras públicas, além da atuação no comércio e na indústria.
               O estudo dos processos migratórios implica, necessariamente, a consideração das circunstâncias e motivações existentes no "lá" e no "cá". Em outras palavras, nos países de partida e de chegada. Milhares de indivíduos abandonaram o conhecido rumo ao desconhecido, saídos de uma Europa onde o avanço do capitalismo no campo, problemas na estrutura fundiária e crises agrícolas propiciaram grandes deslocamentos. Nas colônias criadas pelo governo imperial no interior do país, o processo de assentamento tornou-se uma verdadeira epopeia. Fome, frio, os perigos da floresta e os embates travados com o natural da terra - apesar da difusão de um discurso que mencionava a ocupação de "espaços vazios" - tornaram-se desafios a serem vencidos. Isso explica por que muitos optaram por protagonizar novos deslocamentos.
               Em 150 anos de história da imigração no Brasil, determinados momentos tornaram-se decisivos. Dentre eles a assinatura dos tratados de amizade e comércio (1810), pelo príncipe regente D.João, que inaugurou o processo de atração de comerciantes ingleses, alemães e, após 1816, franceses, principalmente para a cidade do Rio de Janeiro, então sede da monarquia. Oito anos depois, a fundação da colônia suíça de Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro, marcou o início do processo de colonização. Com a Independência (1822), a imigração ganhou novos contornos, incluindo-se o fato de o português que se deslocava ter se transformado também em imigrante. Se inicialmente essa mudança era política, na segunda metade do século veio a assumir uma nova dimensão. Mudou a geografia dos deslocamentos, com a presença crescente de trabalhadores pobres vindos das aldeias do norte de Portugal, de costumes e tradições minhotas e transmontanas.
          O fim do tráfico de escravos (1850/1854) e a adoção do processo de abolição gradual da escravidão, ao mesmo tempo em que se expandia a lavoura do café, trouxeram à tona uma questão crucial: a escassez de braços no campo. Foi em busca de uma solução que se reuniu o Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, no ano de 1871, no qual se discutiu a possibilidade da introdução dos chins e dos coolies (trabalhadores oriundos da Ásia, em especial da China e da índia) como elementos de transição entre o escravo negro e o trabalhador europeu. A proposta acabou sepultada, mas desde a década de 1840 vinham sendo adotadas estratégias de recrutamento, como o sistema de parceria proposto pelo senador e fazendeiro de café Nicolau de Campos Vergueiro, e após 1880, a adoção da imigração subsidiada, que tantas críticas sofreu na Europa, chegando a ser proibida em países como a Itália devido às formas inescrupulosas de recrutamento.                        Proclamada a República, o Brasil inseriu-se na "terceira onda migratória" dos movimentos internacionais, responsável pelos deslocamentos de massa que marcaram a fase áurea do imperialismo. Conhecida no Brasil como a "Grande Imigração" (1890-1914), essa fase registrou os maiores contingentes de entrada não só de imigrantes que tradicionalmente procuravam o país (portugueses, italianos e espanhóis), mas também de japoneses e sírio-libaneses.
               A chegada de Vargas ao poder consagrou políticas restritivas, com a adoção do regime de cotas de entrada e uma visão eugênica (caminho para uma suposta melhoria da "raça"), esta última explícita no decreto de criação do Conselho de Imigração e Colonização, em 1938. O órgão deveria se dedicar ao estudo dos "problemas relativos à seleção imigratória, à antropologia étnica e social, à biologia racial e à eugenia", propondo ao governo "a proibição total da imigração e da entrada de imigrantes, em razão da sua procedência". A preocupação com o perfil da mão de obra para a produção ficava evidente na decisão de transferir a competência das questões imigratórias para o Ministério do Trabalho.
               A opção pelo uso do conceito de "estrangeiro" em substituição ao de "imigrante" passou a projetar a ideia da existência de um "outro" que devia ser alvo de vigilância e controle. Essa discriminação traduziu-se na adoção de decretos que estabeleceram políticas de seleção a priori (proibição do desembarque de indivíduos discriminados em lei) e a posteriori, com o fim de combater os "indesejáveis": aqueles que pudessem ser considerados "perigosos aos interesses da República" ou "nocivos à sociedade". Dentre eles, anarquistas, mas também vadios e criminosos em geral.
               As políticas restritivas tiveram fim no pós-Segunda Guerra, período que se caracterizou por um novo impulso e novos contornos para o processo migratório. O Brasil voltou a ser lugar de chegada para indivíduos dispostos a construir uma nova vida. Nas décadas de 1950 e 1960, contingentes significativos deslocaram-se da Europa para o Brasil, incluindo refugiados de guerra e indivíduos que necessitavam de reassentamento, em especial da Europa Centro-oriental.
               Uma rápida análise dos censos realizados entre 1871 e 1960 dá a dimensão da grande variedade de povos que buscaram o Brasil como terra de realização de seus desejos e sonhos. Além das nacionalidades já citadas, registrou-se a chegada de belgas, dinamarqueses, gregos, holandeses, austríacos, húngaros, russos, chineses, japoneses, turcos, canadenses, norte-americanos, africanos (nesse caso, a indiferenciação é significativa), argentinos, chilenos, peruanos, bolivianos, mexicanos, paraguaios e outros. É importante notar a ausência de registros de nacionalidades silenciadas pelo peso da dominação de outros povos, caso dos poloneses. Muitas delas só vieram a ganhar visibilidade nos registros oficiais no século XX, após a redefinição do mapa europeu em 1919/1920 e, principalmente, depois do fim da Segunda Guerra Mundial.
               No amálgama cultural criado pelo contato entre o "eu" e um "outro" muito diferenciado, novas ideias e visões de mundo foram adotadas e costumes e tradições ganharam outros significados em terras brasileiras, tornando-se expressões de uma cultura nacional de muitas raízes.

LENA MEDEIROS DE MENEZES E PROFESSORA TITULAR DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ) E AUTORA DO LIVRO OS INDESEJÁVEIS (EDUERJ, 1996).

Fonte – Revista de História da Biblioteca Nacional - Ano X nº 111 - Dezembro 2014

Saiba mais - Bibliografia
ARRUDA, José Jobson; FERLINI, Vera Lúcia Amaral et al. (orgs.). De Colonos a Imigrantes. l(E)migração portuguesa para o Brasil. São Paulo: Alameda, 2013.
MATOS, Maria Izilda de et al. Italianos no Brasil: partidas, chegadas e heranças. Rio de Janeiro: Labimi-Uerj, 2013.
SILVA, Érica Sarmiento da. O outro Rio. A Emigración galega a Rio de Xaneiro. Santa Comba: TresCtres Editores, 2006.
VIDAL, Laurent & DE LUCA, Tânia Regina (orgs.). Franceses no Brasil, séculos XIX e XX. São Paulo: Unesp, 2010

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segunda-feira, 8 de junho de 2020

O Legado do Império: governo oligárquico e aspirações democráticas

Entre os aspectos importantes para a compreensão da história do Império o mais significativo e de longa duração, porque ainda persiste em nossos dias, sob várias formas, é o sistema de patronagem e clientela.
Emília Viotti da Costa 
                    O Império tem sido sempre uma referência nos momentos de crise política. Diante de perturbações da ordem pública, golpes militares, fraude eleitoral ou outras formas de corrupção, aparecem sempre saudosistas a louvar o passado e denegrir o presente. A idealização da monarquia não é fato novo. Teve início logo após a Proclamação da República (1889), quando monarquistas e alguns republicanos, desiludidos com o rumo que os acontecimentos tomavam, se associaram na construção de uma imagem idealizada do Império. Argumentavam que o regime monárquico dera ao país setenta anos de paz interna e externa, garantira a unidade nacional, o progresso, a segurança individual, a liberdade e o prestígio internacional, sob a direção sábia de um imperador digno, ilustrado e generoso. Consideravam que, alheia à vontade do povo, a Proclamação da República não passara de um levante de militares indisciplinados, instigados pelos republicanos que contaram com o apoio de fazendeiros descontentes com a Abolição. A República restringira as liberdades individuais, fora incapaz de garantir a segurança e a ordem ou de promover o equilíbrio econômico e financeiro.
                    Com o passar dos anos a versão monarquista se tornou mais complexa, embora continuasse a ignorar os problemas que o Império teve de enfrentar, nem sempre com o sucesso que seus adeptos alardeavam: as constantes insurreições que tumultuaram o Primeiro Reinado e o período regencial, tais como a Confederação do Equador e a Praieira no Nordeste, Farrapos, no Sul, levantes em São Paulo e Minas em 1842, e Cabanos e Balaios no norte do país. Também ficaram esquecidos os protestos populares durante o Segundo Reinado, a revolta dos imigrantes nas fazendas, as agitações do proletariado incipiente, as lutas dos escravos no campo e na cidade. Olvidada também foi a repressão violenta contra escravos e rebeldes, os abusos da Guarda Nacional, o injusto recrutamento militar, a corrupção da justiça, a fraude eleitoral, o nepotismo endémico, o apadrinhamento nas concessões de monopólios, as desastrosas guerras contra a Cisplatina, Rosas, e o Paraguai, o precário estado em que se encontrava o Exército, o analfabetismo beirando os 80% da população, as constantes epidemias de varíola, cólera, malária e febre amarela que assolavam periodicamente as populações, a dependência em relação aos mercados externos e às potências estrangeiras, os onerosos empréstimos realizados no exterior, a permanência da escravidão até praticamente o fim do Império, uma política de terras que permitiu sua concentração nas mãos de uma minoria, o elitismo e a exclusão política da grande maioria do povo brasileiro.
                    A República também teve seus defensores. Estes projetavam uma imagem oposta. A República sempre fora uma aspiração nacional, desde os tempos da colónia. A Monarquia era uma instituição alheia à América, onde só existiam Repúblicas. Baseando-se nas críticas feitas durante o Império, pelos próprios monarquistas ao imperador e ao Poder Moderador, que aquele exercia juntamente com o Poder Executivo, os republicanos afirmavam que as liberdades tinham sido cerceadas com grande prejuízo para a nação. Criticavam as deficiências do imperador como estadista. Condenavam a excessiva centralização do governo monárquico. Repudiavam a vitaliciedade do Senado e do Conselho de Estado que impediam a sua renovação. Denunciavam a fraude eleitoral, que permitia ao governo vencer sempre as eleições.
                    Na avaliação da Monarquia ignoravam suas realizações: o patrocínio das artes e das letras, a multiplicação das escolas primárias, os subsídios concedidos aos interessados em promover uma política imigratória ou a construção de ferrovias e o desenvolvimento de indústrias. A manutenção do território nacional, sem dúvida uma das realizações mais importantes da Monarquia que conseguiu evitar seu esfacelamento, também não foi valorizada. De fato, ao contrário das províncias espanholas envolvidas em lutas fratricidas que romperam a unidade do antigo império espanhol, o Brasil conseguiria não só manter intacto seu território como evitar o caudilhismo que imperava nos países vizinhos.
                    Baseadas nos testemunhos dos contemporâneos, ambas as versões, a do vencedor e a dos vencidos, a republicana e a monarquista, igualmente parciais, superficiais e incompletas, forjadas no calor das lutas políticas do Império, estabeleceram os parâmetros da historiografia que vigoraria por muito tempo depois da implantação da República. Contribuíram para obscurecer aspectos importantes para a compreensão da história do Império que vieram a marcar profundamente a cultura política do brasileiro. São alguns desses aspectos que queremos focalizar. O mais significativo e de longa duração, porque ainda persiste em nossos dias, sob várias formas, é o sistema de patronagem e clientela, cujas raízes remontam ao período colonial, embora se tenham desenvolvido e adquirido real importância durante o Império. Foi este talvez seu mais importante legado.
                    Originando-se no período colonial, nos monopólios e privilégios conferidos pelo poder real a alguns colonos e negados a grande maioria da população; reforçado pela economia de exportação baseada na grande propriedade e no braço escravo, e consagrado pelos preconceitos e pela lei, que criaram uma sociedade de profundos contrastes entre poderosos e os sem poder, entre ricos e pobres, brancos e negros, letrados e analfabetos, o sistema de patronagem e clientela floresceu durante o Império.
                    A persistência das estruturas económicas e sociais e a organização política e institucional do país independente criaram condições ideais para a formação de um regime oligárquico. De fato, qualquer que seja a opinião que se tenha do imperador é preciso reconhecer que quem de fato assumiu o poder foram as oligarquias e seus asseclas. O sistema de patronagem e a "ética do favor" foram ao lado do Exército e da Guarda Nacional, os instrumentos utilizados por elas para se manterem e se reproduzirem no poder. Embora a composição social das oligarquias tenha se alterado ao longo do tempo, especialmente à medida que grupos novos surgiram na sociedade nas últimas décadas do Império, as oligarquias se reconstituíram em bases novas e sobreviveram à Proclamação da República.
                    O sistema político instituído depois da Independência era altamente centralizado, deixando pouca autonomia às províncias. O Ato Adicional (1834) e a reforma do Código de Processo Criminal (1841) foram as únicas medidas que tentaram minimizar um pouco essa situação. No entanto, até mesmo essas concessões, nascidas no período turbulento da Regência, foram reduzidas pela lei de 1840 que interpretou o Ato Adicional. D. Pedro II governou com a assistência da Câmara, do Senado e do Conselho de Estado. Nas duas últimas instituições os cargos eram vitalícios. Os membros do Conselho eram nomeados pelo imperador, os demais eram eleitos. Apenas a Câmara se renovava periodicamente, através de eleições, mas o sistema de eleições indiretas, baseado na renda pessoal, excluindo os assalariados (com algumas exceções), as mulheres e os escravos, reduzia o eleitorado a uma mínima parcela da população. Durante o Império, a despeito das várias reformas eleitorais, o número de eleitores variou entre um e meio e dois por cento da população.
                    Conselheiros, senadores e deputados do Império e das províncias constituíram um grupo poderoso. Alguns chegaram a receber títulos de nobreza. Ocuparam posições de ministros, foram nomeados presidentes de província. Usaram de suas posições para exercer influência na imprensa, junto aos bancos, nas concessões de terras e subsídios a empreendimentos vários, no preenchimento dos cargos públicos, na Justiça, e na legislação. Os políticos intervinham no Exército, na Guarda Nacional, na Igreja. Constituíram uma verdadeira oligarquia que governava em nome do povo e da nação. O político era eleito através de uma rede de clientela e quando no governo esperava-se que servisse aos interesses de seus eleitores. Não é de espantar, portanto, que o político não fosse visto como representante do povo, mas como seu benfeitor. Nessas condições, os direitos constitucionais do cidadão passavam a ser vistos como concessões das elites políticas. A troca de favores governava todas as relações. Sem patrono, político não fazia carreira, magistrado não permanecia no cargo, funcionário público não conseguia emprego, escritor não ficava famoso, empresário não conseguia criar empresa, banco não obtinha permissão para funcionar. Essa situação ficou bem caracterizada no ditado popular: "Quem não tem padrinho morre pagão".
                    Os grupos que assumiram o poder representavam os interesses da grande lavoura e do comércio ao qual estavam ligados por laços de família ou de amizade. Liberais e conservadores embora divergissem quanto a sua plataforma, na realidade se revezaram no poder sem exibir diferenças fundamentais. Abolição da vitaliciedade do Senado e do Conselho de Estado, sufrágio universal, separação da Igreja do Estado, por exemplo, reformas que constavam do programa liberal, não chegaram a ser concretizadas durante o Império. A emancipação gradual dos escravos que já fora proposta por José Bonifácio e outros, na época da Independência, somente começou a ser realizada cinquenta anos mais tarde com a Lei do Ventre Livre. A abolição definitiva somente ocorreu quando a libertação dos escravos já era praticamente fato consumado. A política do Império foi basicamente conservadora. Conciliar a ordem com o progresso, a modernização com a tradição, o liberalismo com a patronagem foram seus objetivos.
                    Entre liberais e conservadores não havia muita diferença. Martinho de Campos, renomado político do Império, num discurso pronunciado em 1882 ao assumir o cargo de primeiro-ministro, caracterizou bem a relação entre os políticos e os partidos: "Hoje é que se pode dizer, como o finado visconde de Albuquerque - são duas coisas muito parecidas um liberal e um conservador - e podia mesmo acrescentar-se um republicano, porque têm todos os mesmos ares de família", dizia ele, e continuava: "Vivemos às mil maravilhas na mesma canoa e não temos dificuldades quanto as opiniões". Na realidade, a filiação partidária era frequentemente mais uma questão de família e parentesco ou amizade do que de ideologia. Isso não diminuía em nada a intensidade da competição política. Na época das eleições os gabinetes no poder demitiam ou removiam funcionários públicos; criavam distritos eleitorais onde tinham amigos e eliminavam outros onde a oposição era majoritária; utilizavam a Guarda Nacional para perseguir eleitores; roubavam urnas eleitorais que apareciam depois recheadas de votos favoráveis ao partido situacionista e recorriam ao recrutamento militar para aterrorizar a oposição. Enquanto os adversários eram combatidos por todos os meios, os amigos e a parentela eram recompensados com favores de toda espécie. O nepotismo imperava sem qualquer constrangimento numa sociedade em que o público e o privado muitas vezes se confundiam.
                    Nessas condições, os princípios liberais traduzidos de um documento produzido durante a Revolução Francesa intitulado Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e reproduzidos na Carta Constitucional de 1824 (incluídos a partir de então em todas as constituições brasileiras) assumiram um caráter utópico. Os viajantes que passaram pelo país desde os primeiros anos do Brasil independente chocaram-se com a falta de correspondência entre a legislação e a realidade. A Carta Constitucional afirmava a igualdade de todos perante a lei, assim como garantia a liberdade individual. Mas durante o Império houve homens e mulheres escravizados que nem sequer eram considerados cidadãos. A Carta Constitucional garantia o direito de propriedade, mas na época da Independência a grande maioria da população livre vivia em terras alheias, na qualidade de "moradores", sem nenhum direito a elas. A Carta Constitucional assegurava a liberdade de pensamento e de expressão, mas não foram poucos os que pagaram com a própria vida o uso desse direito. A Carta garantia a segurança individual, mas por uns poucos mil-réis podia se mandar matar impunemente um desafeto. O lar era considerado inviolável, mas a polícia, em desrespeito à lei, o invadiu muitas vezes sob os mais variados pretextos. A independência da Justiça era teoricamente garantida pela Carta Constitucional, mas, tanto a administração quanto a Justiça transformaram-se em instrumentos dos poderosos. A Carta abolia as torturas, mas por muitos anos nas senzalas continuava a se usar os troncos, os anjinhos, os açoites e as gargalheiras. O direito de todos a serem admitidos aos cargos públicos, sem outra diferença que a de seus talentos e virtudes, foi assegurado pela Carta Constitucional, mas o critério de amizade e compadrio, típico do sistema de patronagem vigente, continuaria a prevalecer na nomeação de cargos públicos. Em suma, os direitos do homem converteram-se em privilégios de uma minoria e a luta pela sua implementação foi deixada a cargo do povo. A este caberia a tarefa de converter a promessa da Constituição em realidade.
                    Se bem que as classes dominantes do Império tenham nos legado um sistema elitista e antidemocrático e tenham conseguido reprimir projetos alternativos que se esboçaram no passado, não conseguiram, no entanto, sufocar a voz daqueles brancos, mulatos e pretos, que já na época da Independência tinham se reunido na Praça do Comércio para forçar d. João VI a jurar a Constituição portuguesa que ainda seria escrita. Suas vozes chegaram até nós. Também não conseguiram reprimir as aspirações dos homens e mulheres que se levantaram, pelo Brasil afora, em inúmeras revoltas visando a construir um país mais democrático, preconizando o parcelamento da grande propriedade, a igualdade entre brancos e pretos, a eliminação do preconceito racial, o sufrágio universal, a eliminação da fraude eleitoral, a emancipação das mulheres, o desenvolvimento de uma economia nacional. A realização dessas aspirações foi delegada às futuras gerações de brasileiros,

EMÍLIA VIOTTI DA COSTA é historiadora, Livre Docente pela USP e professora emérita da mesma universidade. Atualmente leciona na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Entre outros livros, publicou Da monarquia à república - momentos decisivos. São Paulo: Ed. Unesp, 1977.
                   
Fonte: Revista Nossa História. A Construção do Brasil. Brasil: Ed. Vera Cruz, 2006

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