“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

terça-feira, 21 de julho de 2020

O canto das escravas

Melodias negras entoadas nas ruas e nos lares atravessaram séculos e influenciaram a linguagem, a cultura e o comportamento dos brasileiros
SÉRGIO BITTENCOURT-SAMPAIO
               Durante mais de três séculos, o Brasil foi embalado por vozes negras e femininas. Pelas ruas das cidades, melodias eram entoadas não apenas nas festas oficiais dos negros e nos informais batuques, mas também acompanhando atividades diárias como as das vendedeiras, lavadeiras nas bordas dos riachos, aguadeiras que buscavam água nas fontes e nos chafarizes. No interior dos lares, as escravas faziam dormir seus próprios filhos, e também os filhos brancos das famílias abastadas. Aquele simples cantar despreocupado, de uma classe desprestigiada, considerada inculta e apta apenas para trabalho, teria consequências profundas na linguagem, na cultura e nas relações sociais brasileiras.
               As vendedeiras sempre chamavam a atenção dos estrangeiros. O militar alemão Carl Schlichthorst, que esteve no Brasil entre 1824 e 1826, certa vez encontrou uma “negrinha mimosa” na praia de Copacabana. Em plena juventude, ela tocava marimba enquanto vendia suas guloseimas. Schlichthorst comprou um pedaço de doce e pediu à moça que dançasse. Ela atendeu ao pedido, e cantou: “Na Terra não existe Céu/ Mas se nas areias piso/ Desta praia carioca/ Penso estar no Paraíso!/ Na Terra não existe Céu/ Mas se numa loja piso/ E compro metros de fita/ Penso estar no Paraíso!”. Os versos traduziam a agrura da escravidão e o explícito desejo de se evadir da lida diária, mesmo por um instante e em troca de um pequeno agrado.
               Anos mais tarde, o príncipe austríaco Maximiliano de Habsburgo encontrou na Bahia vendedeiras com vozes de contralto tão graves que poderiam ser confundidas com vozes masculinas. Ao vender seus doces, alfinetes, refrescos, frutas e outras mercadorias, elas utilizavam um canto arrastado, com as últimas sílabas prolongadas nas vogais abertas: “Geleia! É de araçááá!”, “Sorvete é de maracujááá!”, conforme este exemplo registrado bem mais tarde pelo sociólogo Gilberto Freyre.
               Na década de 1820, quando visitou um engenho situado na Mata da Paciência, no Rio de Janeiro, a viajante inglesa Maria Graham presenciou escravas servindo cana aos visitantes entre melodias africanas e hinos à Virgem Maria. Na Fazenda da Cachoeirinha, em Minas Gerais (1822), o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire se deparou com um comportamento curioso: ao serem colocadas pela senhora em um ambiente fechado, escravas que costumavam cantar por todo o dia passaram a relatar suas aventuras amorosas umas às outras, lançando acusações mútuas. Mas logo retomavam suas canções preferidas.
               Nas folias carnavalescas – ou melhor, no tempo do entrudo – os pregões tinham um quê de malícia, deixando a ideia incompleta, cabendo a quem ouvia dar a forma final: “Quem entruda seu amô/ É sinal de intimidade/ Iaiá, entrude a ioiô/ Para lhe ter amizade/ É de iaiá, é de ioiô/ Quem qué entrudá seu amô”. Podemos nos perguntar se a entonação das palavras dependia da linha melódica ou se a música é que derivava da inflexão das sílabas prolongadas.
               Escravas com bons dotes vocais eram alugadas para apresentações nos salões aristocráticos. A oportunidade lhes permitia demonstrar o dom para a música em ambientes aos quais normalmente não tinham acesso. Apesar do talento, seus nomes não eram divulgados (quem se importaria de dar atenção ao nome de uma cativa?) e as quantias que deveriam receber pela apresentação ficavam por conta de seus proprietários.
               Atendiam também a solicitações dos ofícios religiosos. No século XVIII, na fazenda dos padres mercedários no Pará, algumas negras emocionavam os ouvintes ao cantar “Bendito Sejais, Te Deum”. No Rio de Janeiro, a Família Real portuguesa encontrou na Igreja de Santo Inácio de Loiola, em Santa Cruz, três escravas que se destacavam pela beleza com que interpretavam as canções.
               A melancolia musical se mostrava durante os cortejos fúnebres das negras. Ao contrário dos enterros de homens, o corpo era seguido por mulheres que soltavam a voz em lamentos que remetiam à escravidão. A presença masculina se limitava a dois carregadores e um mestre de cerimônias.
      A maneira de falar ou de se expressar através da música servia até para identificar negras fugitivas. O jornalista e escritor pernambucano Mario Sette transcreveu o anúncio do desaparecimento de uma cativa chamada Joana. Segundo ele, a procurada apresentava “fala mansa e descansada”. O periódico cearense O Comercial noticiou a fuga de Margarida, escrava com idade entre 25 e 28 anos que se destacava por desempenhar múltiplas funções. Tinha desenvoltura com foice, machado, enxada e era sapateira. De acordo com o jornal, era também “cantadeira de samba”, o que revela sua habilidade com a música – na época, somente as mais especializadas eram chamadas de cantadeiras. Samba tinha uma conotação diferente da atual: significava batuque, típico dos cativos.
                Por outro lado, o hábito de cantar durante o trabalho diário era utilizado para conter possíveis insurreições dos cativos. O memorialista Pedro Nava (1903-1984) lembra que sua avó controlava as tarefas confiadas às antigas escravas por meio das músicas que elas entoavam: atenta às inflexões das vozes, que traduziam o clima emocional das cativas a suas intenções, a senhora impedia “conjuração de preto” e seguia o andamento do serviço. Entre as melodias estava uma modinha muito conhecida na época, “O Gondoleiro do Amor”, com versos de Castro Alves (1847-1871), que diz: “Teus olhos são negros, negros, / Como as noites sem luar... / São ardentes, são profundos, / Como o negrume do mar...”.
               O cantarolar negro também transbordou para a literatura brasileira. No século XIX, a voz lamentosa de uma cativa motivou um poema do diplomata fluminense Luís Guimarães Júnior: “Nhãnhã”. O narrador conversava com a sinhá no interior da casa-grande quando ouviu uma escrava cantando em meio a gemidos. Ao indagar de quem se tratava, a senhora respondeu: “Ora! uma escrava!”. E nada mais: a conversa despreocupada prosseguiu comentando valsas, outras danças dos salões imperiais e a chegada de uma importante cantora lírica italiana. Enquanto isso, do lado de fora, a escrava expirou no silêncio da noite.
               Nos séculos passados, as mulheres da elite não costumavam amamentar seus filhos. Daí a necessidade de se buscarem amas de leite. Havia a crença de que o leite das negras era mais nutritivo que o das brancas. Nas grandes cidades, não faltavam anúncios nos jornais oferecendo cativas com abundante leite a preços elevados. As amas de leite mantinham uma proximidade especial com as crianças, que nenhuma outra condição igualava no cativeiro. Às vezes, amamentavam ao mesmo tempo os próprios filhos, criando uma condição conhecida como irmão de leite. Quando não se tratava de uma escrava alugada somente para este fim, mas própria da casa, os vínculos afetivos com os filhos da sinhá podiam se prolongar ao longo da vida. Ali, próximas dos filhos das famílias abastadas, elas acalentavam as crianças com melodias e histórias fantásticas. Os cantos amolengados e repetidos, acompanhados do tão apreciado cafuné, proporcionavam prazer, indolência e relaxamento. Aquela “fala cantada” continha uma mistura de termos portugueses, africanos e corruptelas.
               A música se alternava com histórias típicas do nosso folclore, como relatou em suas memórias Francisco de Paula Ferreira de Rezende, ministro do Supremo Tribunal Federal no início da República. Ele conviveu com a escrava Ana Margarida, que sempre que podia cantava e, se não podia, conversava ou contava casos de saci, lobisomem, mula sem cabeça e uma lenda sobre a origem dos negros.
               O idioma foi se tornando mais flexível, com sons suavizados, palavras novas, corruptelas e inflexões desconhecidas no português europeu. Enquanto os senhores e as sinhás sequer percebiam o que estava acontecendo, suas crianças participavam de uma mistura cultural que se tornaria indispensável para a estruturação do nacionalismo nas artes e na literatura brasileira.

SÉRGIO BITTENCOURT-SAMPAIO É MEMBRO DA ACADEMIA NACIONAL DE MÚSICA E AUTOR DE MÚSICA EM QUESTÃO (MAUAD, 2014).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 11 - nº 124 - junho 2016

Saiba Mais: Bibliografia
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1989. 
LIMA, Ivana Stolze & CARMO, Laura do. História social da língua nacional. Rio de Janeiro: NAU Editora/ Faperj, 2014.
SCHLICHTHORST, Carl. O Rio de Janeiro como é (1824-1826). Uma vez e nunca mais. Brasília: Ed. Senado Federal, 2000.
XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto & GOMES, Flavio (orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e pós-emancipação. São Paulo: Ed. Selo Negro, 2012

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quarta-feira, 15 de julho de 2020

Ecos de Mussolini

Nos anos do fascismo, o Brasil se tornou destino de italianos em busca de segurança política e econômica
MARCELLO SCARRONE
              Eram trinta, quarenta, talvez um pouco mais. Vinham de diferentes procedências e tinham variadas orientações políticas. Dialogavam entre si. E, por vezes, tomavam caminhos sem relação com a militância. Esta era a realidade dos refugiados antifascistas italianos no Rio de Janeiro entre as duas guerras mundiais. Um grupo pequeno, sobretudo se comparado com os milhares de compatriotas que já viviam e trabalhavam na capital federal. Mas que buscou movimentar as fileiras da colônia e de setores da sociedade carioca, denunciando as violações e as ilegalidades cometidas no seu país de origem e alertando contra a ameaça que o fascismo podia representar para qualquer nação do mundo.  
               Após anos de violências e intimidações contra sedes de sindicatos, cooperativas e partidos de esquerda, o regime fascista de Benito Mussolini chega ao poder em 1922. Três anos depois, uma série de leis duríssimas retira de seus opositores toda liberdade de expressão, de imprensa e de associação. Aos dirigentes e militantes dos partidos antifascistas não restam mais que dois caminhos. O primeiro, abraçado sobretudo pelo recém-fundado Partido Comunista, será o de uma perigosa atividade clandestina, muitas vezes resultando em anos de prisão ou degredo. O segundo será a emigração. Esta foi a via adotada pela maioria dos líderes políticos e sindicais socialistas e anarquistas, mas também pelos liberais, republicanos e católicos, e por numerosos membros destas agremiações.
               O destino principal do exílio forçado era Paris, que se constituiu no centro do antifascismo italiano no exterior. Inglaterra, Suíça e as Américas também eram alternativas. No Brasil, particularmente São Paulo e Rio de Janeiro se apresentaram como destino de uma viagem em busca de refúgio e segurança econômica e política.
               O termo só se consagrou historicamente no pós-guerra, mas nada retira daquelas pessoas a condição de refugiados. Além de serem perseguidos por seus ideais políticos, foram forçados a sair de seu país por não encontrarem mais condições dignas de vida e trabalho. Os nomes de muitos deles povoavam os informes e os boletins da polícia política fascista. Rede de informantes e, sobretudo, a colaboração das autoridades diplomáticas italianas nas cidades brasileiras vigiavam suas atividades em terra paulistana ou carioca.
               Comerciantes, livreiros, garçons, mecânicos, jornalistas: cada um se reinventa no Brasil como pode. Ao mesmo tempo em que mantêm laços vivos com o centro do antifascismo em Paris, por meio de correspondência e pelos jornais recebidos, estreitam relações com os colegas de exílio em associações tradicionais da imigração italiana no Brasil (como as Sociedades de Beneficência) e outras criadas especialmente para eles – como a Liga para os Direitos do Homem, a Associação Antifascista e a União Democrática.
               Alguns refugiados tiveram atuação destacada. Um deles foi o advogado Libero Battistelli, que chegou ao Rio de Janeiro em 1927. Cruzara a fronteira de seu país após ter casa e escritório em Bolonha destruídos pela milícia do Duce Mussolini por defender numerosos antifascistas. Por aqui, além de liderar várias associações, tornou-se um precioso colaborador de La Difesa, semanário paulistano que funcionava como elo entre as várias vertentes antifascistas. De militância republicana, Battistelli dialogava com socialistas e anarquistas, com comunistas e liberais. No Rio, seu quarto era ponto de encontro e de decisão dos membros da colônia empenhados na propaganda e na ação política.
               Ao obter a naturalização brasileira, o advogado consegue maior liberdade de movimentos. Em 1930, faz uma breve viagem à Europa para arrecadar fundos em favor das organizações criadas no Rio e encontrar os expoentes da oposição exilados na capital francesa. De volta ao Brasil, continua a militância, agora como representante de uma organização antifascista recém-surgida na Itália, Giustizia e Libertá (Justiça e Liberdade). O regime de Mussolini parece cada vez mais inabalável, e só com a chegada de Hitler ao governo da Alemanha em 1933 o mundo começa a perceber a verdadeira periculosidade do fascismo. A guerra civil na Espanha desponta como uma oportunidade de traduzir em prática tantos apelos antifascistas. Em 1936, Battistelli resolve viajar para a França e depois se alista nas milícias antifranquistas na Espanha. No ano seguinte, em ataque em território aragonês, é atingido mortalmente pela artilharia inimiga.  
               Outro expoente daqueles anos foi o anarquista Nello Garavini, que aportou no Rio em 1926 em consequência da feroz perseguição das milícias fascistas na Itália contra muitos libertários. Após anos de trabalho como ascensorista e garçom no Hotel Glória e depois como vendedor de tintas, Garavini adquiriu em 1934 uma pequena livraria na Praça Tiradentes, que logo transformou também em editora. A recém-nascida “Minha Livraria” passou a ser frequentada por estudantes, intelectuais, artistas e um público interessado em conhecer o pensamento da esquerda. Não à toa: em pouco tempo o italiano começou a publicar o que chamava de “manuais de cultura social”, isto é, livros que apresentam os clássicos anarquistas e comunistas, de Malatesta a Bakunin, de Marx a Lenin.
               Pioneira na difusão do pensamento libertário no Brasil, a editora se abre aos poucos à publicação de outros autores. Até porque o estado de sítio introduzido por Vargas após o levante comunista de 1935 aumenta a vigilância policial sobre a livraria e seus volumes. No Brasil daqueles anos, não era confortável a situação dos refugiados italianos antifascistas: além da desconfiança de longa data das autoridades contra expoentes de movimentos e partidos de esquerda, o Estado Novo incrementa a repressão a comunistas e aliados, além de implementar uma legislação que busca disciplinar a presença dos estrangeiros no território nacional. Mais tarde, com a entrada do país na Segunda Guerra Mundial contra as forças do Eixo, o simples fato de ser italiano tornaria o indivíduo suspeito. Nesse período, muitos exilados do fascismo sofrem restrições, inquéritos policiais, prisões e expulsões. O próprio Garavini é obrigado em 1942 a encerrar a atividade editorial, silenciando seus ideais e projetos.
               Além dos exilados que escolheram o Brasil como refúgio em tempos de perseguição, vários membros da colônia italiana se empenharam no esforço de propaganda e luta contra o fascismo. Um deles, chegado ao Rio ainda em 1911, na esteira das tradicionais correntes migratórias, foi o genovês Giuseppe Scarrone. Mestre vidreiro, ele deixou a Itália aos 52 anos, após o enésimo boicote à sua atividade por parte das famílias locais que detinham o cartel da produção. A militância socialista explica seu ostracismo, e o caso demonstra como na figura do emigrante – e na do refugiado – as razões políticas ou religiosas misturam-se frequentemente com motivos econômicos.
               Na capital federal, Scarrone monta a Fábrica Nacional de Vidros no bairro de Vila Isabel, que chega a contar com 500 operários. Ali tenta implementar uma forma de cooperativa de divisão dos lucros com os trabalhadores e os clientes, à luz de seus ideais socialistas, numa experiência que dará certo durante alguns anos. Enquanto isso, produz dezenas de opúsculos, cartas abertas e livrinhos contra o fascismo. É ele mesmo quem escreve, manda imprimir em numerosos exemplares e os envia à Itália, para particulares e autoridades. A ousadia lhe rende, em 1926, uma condenação a dois anos e meio de prisão pela Justiça italiana. O empresário não mais poderá retornar à sua pátria.
               Em carta aos parentes, Emma, esposa de Garavini, resume os sentimentos dos antifascistas em terra brasileira. “Partimos há cinco anos, mas não esquecemos nem um momento do que vocês tiveram que sofrer, amordaçados, atordoados pelo hábito diário da obediência que não encontra consentimento na consciência... Sabemos de tudo, das violências, das bárbaras sentenças, do confinamento, tudo o que de mais feroz um governo pode usar para se sustentar”, escreve.  A vida refugiada, mesmo renovada, não comporta esquecimento.

MARCELLO SCARRONE É PESQUISADOR DA REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL E AUTOR DA TESE “NELLO, LIBERO E GIUSEPPE: DO RIO CONTRA MUSSOLINI. PERCURSOS POLÍTICOS DO ANTIFASCISMO ITALIANO NA CAPITAL FEDERAL (1922-1945)”, (UFRJ, 2013).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 11 - nº 124 - junho 2016

Saiba Mais – bibliografia
BERTONHA, João Fábio. “Sob a sombra de Mussolini. Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945”. São Paulo: Fapesp/ Annablume, 1999.
DROZ, Jacques. “Histoire de l’antifascisme en Europe (1923-1939)”. Paris: La Découverte, 2001.
TRENTO Angelo. “Do outro lado do Atlântico. Um século de imigração italiana no Brasil”. São Paulo: Istituto Italiano di Cultura/ Nobel, 1989.


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sexta-feira, 3 de julho de 2020

De olhos bem fechados

Durante a Segunda Guerra, governo brasileiro não se sensibilizou com o drama dos refugiados do nazismo
FÁBIO KOIFMAN
               Disseminado pela mídia, o drama dos refugiados na Europa comove o mundo. As tentativas desesperadas de fuga e a busca por abrigo em outros países geram relatos e imagens aterradores. Tamanha quantidade de gente forçada a abandonar seu lar por conta de conflitos e perseguições político-religiosas motiva comparações com o período da Segunda Guerra Mundial. Naqueles tempos o mundo fechava as portas aos refugiados, e a falta de solidariedade de então não ajudou a impedir um número assombroso de mortes. Em fins da década de 1930, países de todo o mundo adotavam políticas de restrição à imigração, o que acabaria contribuindo, por omissão e indiretamente, para o Holocausto perpetrado pelos nazistas: cerca de 6 milhões de judeus se tornaram vítimas da política de extermínio de Adolf Hitler. Inicialmente seu objetivo era “livrar a Europa” da presença judaica, ou seja, expulsar todos os judeus do continente. A opção pela execução sistemática veio em meados de 1941, e a chamada “Solução Final” – aniquilação total dos judeus nos territórios ocupados pelo Estado alemão – somente em janeiro de 1942, depois que os nazistas tiveram a certeza de que nenhuma nação receberia aqueles que desejavam expulsar.
               Entre os países com fronteiras fechadas aos judeus estava o Brasil. Se atualmente recebemos refugiados sem nos pautarmos por critérios raciais, no tempo da Segunda Guerra a política imigratória era seletiva e restritiva. A imigração era depositária das esperanças de parte das elites em “melhorar a composição étnica da população”.
               Excetuando as chamadas nações indígenas e seus descendentes, os demais habitantes do Brasil têm ancestrais de fora do continente – sejam eles africanos que vieram na condição de escravos ou europeus exploradores e imigrantes. Ao longo de alguns séculos, os africanos e seus descendentes se tornaram a maior parte da população. Mesmo antes do fim da escravidão, no século XIX, o contingente de negros no país preocupava as elites dirigentes, que se consideravam brancas e culturalmente ligadas às nações europeias. O incentivo à vinda de imigrantes europeus nas últimas décadas daquele século tinha como propósitos substituir a mão de obra escrava e contribuir para o projeto de “branqueamento” da população.
               Tal política teve continuidade no início da República. O novo século trouxe a paulatina absorção de um discurso de aparência científica para justificar projetos de evidente concepção racista. Boa parte dos intelectuais atribuía o atraso do país à “má formação étnica” dos brasileiros. Com o passar das décadas, acreditaram que o imigrante branco se assimilaria aos habitantes não brancos e que essa miscigenação tornaria a população mais clara e, portanto, mais próxima das nações desenvolvidas.
               Mesmo com diferentes pontos de vista, os defensores das teses de branqueamento identificaram-se com o eugenismo, que por aqui ganhou conotação e propostas específicas. Em 1929, o movimento eugenista brasileiro definiu a imigração como boa solução para a “melhoria da composição étnica do povo” e, graças ao seu lobby junto aos constituintes de 1934, conseguiu fazer implantar na Constituição um regime de cotas – cujo principal alvo de restrições eram os imigrantes japoneses. Ao longo do primeiro governo de Getulio Vargas (1930-1945), outros projetos dessa natureza foram colocados em prática. Em discurso de 1932, o presidente mostrou- se favorável ao “aperfeiçoamento eugênico da raça” para “apressar o progresso do país”. Seu governo seguiria essas premissas, acabando por afetar o destino dos refugiados judeus.
               Com a ascensão do nazismo em 1933, a política imigratória passava cada vez mais a ocupar a cúpula do Estado. E entre as justificativas para transformar os judeus em imigrantes indesejáveis estava a “infusibilidade” dessas pessoas: eles seriam inassimiláveis, por não contribuírem para o branqueamento da nação.
               Como os judeus viviam em diferentes países da Europa e o sistema de cotas estabelecido em 1934 não especificava a origem étnica dos indivíduos, alguns meses antes da instauração da ditadura do Estado Novo, em 1937, o governo brasileiro produziu a primeira das Circulares Secretas destinadas a orientar a restrição da emissão de vistos para estrangeiros de origem judaica. Até 1945, outras circulares e decretos foram publicados com o fim específico de impedir que estrangeiros considerados indesejáveis fossem recebidos na condição de imigrantes.
               Desde a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, a Europa vinha enfrentando o aumento da pressão pelo recebimento de refugiados internos. Com o avanço dos exércitos alemães sobre o continente, as ameaças e as perseguições perpetradas pelo nazismo espalhavam-se velozmente, levando cada vez mais pessoas a buscar desesperadamente países que lhes pudessem conceder refúgio e asilo.
               No Brasil, mesmo com as restrições impostas pelo Estado Novo, o contingente de estrangeiros que conseguiam entrar no país (por vezes utilizando-se de vistos temporários) seguiu aumentando até os primeiros meses de 1941. Favorecia-lhes o fato de o governo manter a política imigratória de inspiração eugenista, afinal, novos imigrantes eram considerados necessários ao desenvolvimento do país. A seleção implicava aspectos subjetivos e pouco precisos, o que tornava complexa a tarefa dos cônsules. E havia exceções que permitiam conceder vistos mesmo para os estrangeiros considerados “infusíveis”. Imigrantes “capitalistas” – ou seja, indivíduos com condições de realizar transferência de capital elevado – eram bem vindos, assim como pessoas de comprovada formação acadêmico-científica, que poderiam contribuir para o desenvolvimento do país.
               Essas brechas, porém, geraram críticas de setores do governo e da imprensa ao Ministério das Relações Exteriores, apontado como incompetente na tarefa de restringir a entrada de imigrantes indesejáveis. Se já a partir de 1938 o Brasil dera início a uma política imigratória altamente restritiva e controladora, as fronteiras se fechariam ainda mais com um decreto de 1941, que tirou do Itamaraty e passou para o Ministério da Justiça a responsabilidade de emitir vistos temporários ou permanentes. A partir de então, a imensa maioria dos que tentavam obter um visto em qualquer representação consular brasileira recebia um não diretamente. Raríssimos foram os diplomatas que se sensibilizaram com o drama dos refugiados do nazismo e emitiram vistos a despeito da orientação do governo Vargas – caso do embaixador brasileiro na França, Luiz Martins de Souza Dantas. Aquele ano também foi especialmente significativo em relação ao número de estrangeiros impedidos de desembarcar nos portos brasileiros por serem judeus. Em um único caso, no mês de outubro, cerca de 100 passageiros foram impedidos de desembarcar. Vinham em dois navios, Cabo de Boa Esperança e Cabo de Hornos, e tiveram que rumar para Buenos Aires e outros portos ao sul. Impedidos também de desembarcar ali, iam ser devolvidos à Europa quando uma negociação internacional logrou obter autorização para desembarque temporário na da ilha caribenha de Curaçao.
               Parte dos historiadores afirma que a política imigratória adotada pelo Brasil antes e durante a Segunda Guerra estaria influenciada pelo ideário nazi-fascista. Se isto de fato ocorreu, a quebra das relações diplomáticas com o Eixo, em 1942, deveria ter produzido mudanças no controle de entrada de estrangeiros no país. As evidências, no entanto, indicam que isto não ocorreu. Ao mesmo tempo, com o início da “Solução Final” adotada por Hitler, diminuiu drasticamente o número de pessoas ainda em condições de solicitar asilo, pois a política nazista impedia que os grupos perseguidos saíssem da Europa.
               Novas levas de imigrantes voltaram a procurar o Brasil após o fim da guerra. Mesmo com o término da ditadura Vargas, a política imigratória continuava semelhante ao período do Estado Novo: interessada em imigrantes considerados de boa fusibilidade. Os judeus já não significavam um “problema”: com a derrota do nazismo, sair da Europa não era mais uma questão de sobrevivência física e, a partir de 1948, com a criação do Estado de Israel, ficou afastada qualquer possibilidade de pressão internacional para que o Brasil recebesse mais refugiados daquele grupo.
               Oitenta anos depois do contexto histórico que levou ao Holocausto, são muitas as diferenças do quadro atual. Ainda assim, a responsabilidade humana em evitar a ocorrência de novos genocídios nos chama a perceber continuidades: a persistência de preconceitos e intolerância contribui para que, ainda hoje, muitos países do mundo se neguem a ampliar sua política de recepção a refugiados.

FÁBIO KOIFMAN É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO E AUTOR DE QUIXOTE NAS TREVAS: O EMBAIXADOR SOUZA DANTAS E OS REFUGIADOS DO NAZISMO (RECORD, 2002) E IMIGRANTE IDEAL: O MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E A ENTRADA DE ESTRANGEIROS NO BRASIL (1941-1945), (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2012).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 11 - nº 124 - junho 2016

Saiba Mais – bibliografia
BARROS, Orlando de. Preconceito e educação no Governo Vargas (1930-45). Capanema: Um episódio de intolerância no Colégio Pedro II. Rio de Janeiro: Cadernos avulsos da biblioteca do professor do Colégio Pedro II, 1987.
LESSER, Jeffrey H. O Brasil e a Questão Judaica: Imigração, diplomacia e preconceito. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
MILGRAM, Avraham. Os Judeus do Vaticano. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.            

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Ganhando as ruas

Carregando mercadorias, amolando facas ou vendendo comida nas calçadas da Corte, portugueses, italianos e espanhóis disputaram seu lugar com escravos e forros no mercado de trabalho informal
Juliana Barreto Farias
               Praça das Marinhas, tarde de 2 de maio de 1872. Mais de cinquenta "pretos ganhadores", armados de cacetes (um deles com uma foice), atacam 12 trabalhadores brancos que transportavam carne-seca das canoas e lanchas. Poucos dias antes, os pretos, que costumavam fazer as descargas ali no porto, haviam exigido um aumento de vinte réis. Mas os donos das carnes não só ignoraram as reivindicações, como logo contrataram brancos para o serviço. Inconformados com a nova situação, os negros fizeram uma "parede [greve], à moda [africana] da Costa da Mina", como noticiou o jornal Diário do Rio de Janeiro. A "luta renhida" que levou alguns homens ao mar só foi debelada com a chegada do capitão Marques Sobrinho e de praças da guarda urbana. Sete escravos e um liberto, tidos como os principais agressores, e mais cinco trabalhadores brancos, dentre os quais alguns portugueses, foram detidos e conduzidos para o xadrez da 2ª Delegacia Urbana.
                Desde meados do século XIX as cantigas de trabalho africanas estavam, pouco a pouco, sendo substituídas pelo ranger das carroças e pelos pregões de portugueses, espanhóis e italianos ocupados no transporte de cargas e na venda ambulante. Contrariando os discursos "imigrantistas" do período - que viam os europeus como a representação idealizada de uma mão-de-obra superior e impulsionadora do progresso -, boa parte dos imigrantes que aqui chegava, quase sempre adolescente, tinha pouco conhecimento dos códigos urbanos e uma precária qualificação profissional. Assim, muitos desses estrangeiros acabavam trabalhando em serviços antes desempenhados pelos cativos ganhadores nas ruas da cidade.
               Percorrendo as vielas da Corte, os chamados escravos de ganho vendiam frutas, legumes, peixes, louças e todo tipo de mercadoria que levavam nos cestos e tabuleiros à cabeça; transportavam sozinhos, ou em grupos, desde sacas de café até pesados pianos; ofereciam-se para levar pessoas em seus ombros nos dias de chuva ou ainda carregavam barris com os dejetos das residências para jogarem à noite no mar. Quase todos os estrangeiros que passaram pelo Rio de Janeiro no século XIX se surpreenderam com a multiplicidade de ofícios exercidos por esses escravos. Eram trabalhadores indispensáveis, conforme registrou o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) - que viveu no Brasil entre os anos de 1816 e 1831 -, já que o português, e também os senhores brasileiros, com seu "orgulho e indolência", consideravam desprezível quem carregasse um "pacote na mão, por menor que seja". A inglesa Maria Graham (1785-1842) estimou que praticamente a metade dos escravos ganhadores no Rio era composta de africanos recém chegados. Eles trabalhavam em grupos, capitaneados por um líder que marcava o tempo e os compassos ao som de chocalhos, marimbas ou peças de ferro, e, em coro, entoavam canções de sua terra natal.
               Esses cativos eram mandados às ruas por seus senhores e, ao final do dia ou a cada semana (o que parecia ser mais comum), deveriam entregar uma quantia - o jornal - previamente estabelecida; daí o nome escravo de ganho. Mas para isso antes era preciso encaminhar um pedido por escrito à Câmara Municipal, identificando o proprietário ou seu procurador legal, seu endereço, além de informações básicas sobre o escravo, ou escravos, como nome, nação africana ou idade. Era necessário ainda pagar um alvará e adquirir uma chapa metálica com o número de inscrição: se fossem encontrados trabalhando sem a chapa no pescoço, os escravos eram recolhidos pelas autoridades municipais. Entre os anos de 1851 e 1870, encontramos no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro 2.653 licenças concedidas pela Câmara indicando a nacionalidade do ganhador. Desse conjunto, 2.225 eram africanos, e o maior grupo se constituía de procedentes da África ocidental, genericamente conhecidos como minas no Rio.
               Mas já na década de 1860, como destacava em seu relatório o estatístico Sebastião Ferreira Santos, "os transportes e outros misteres do tráfico e labutação do capital", até então desempenhados por cativos africanos, também eram exercidos por trabalhadores livres. Enquanto o número de escravos empregados no ganho ia se reduzindo a cada dia, os estrangeiros "quase todos portugueses" e sem licença - estavam invadindo as ruas da cidade e exaurindo os cofres municipais, já que se negavam a pagar pela autorização devida, como informava o contador municipal Antonio Francisco Porto, em ofício enviado à Câmara em 20 de junho de 1876. Três anos depois, a situação se agravara de tal forma que somente 39 indivíduos tiraram licença. Diante das providências reclamadas pelo contador Antonio Francisco Fortes Bustamante, logo surgiram as primeiras solicitações. Ao longo dos meses de julho e agosto de 1879, a Câmara já contava com 717 pedidos feitos por "ganhadores livres". Só em julho, quando a nova regulamentação foi instituída, 510 solicitaram inscrição. No ano seguinte, apenas três trabalhadores tiraram autorização e, em 1885, outros cinquenta. Depois desse período, não encontramos mais registros entre as licenças depositadas no Arquivo da Cidade.
               Assim como os escravos, esses homens livres deveriam apresentar um pedido por escrito, indicando seus dados pessoais, como nome, "nação" ou nacionalidade, endereço e atividade a ser exercida. Contudo, ainda era necessário que um profissional respeitado, proprietário e com boa condição financeira - quase sempre um comerciante fosse apresentado como fiador, confirmando a "boa conduta" do trabalhador e garantindo o pagamento das despesas que porventura pudessem surgir, caso fossem encontrados em situação irregular ou sem licença. Era comum que um espanhol ou português, depois de abrir o seu negócio - uma padaria ou um armazém de secos e molhados -, "chamasse" seus patrícios e ficasse responsável pelas atividades que eles exerceriam, e ainda lhes desse abrigo em sua casa.
               Entre 1879 e 1885, do total de 770 pedidos encaminhados, 394 (ou 51,5%) indicam a nacionalidade do ganhador. Dos 376 restantes (48,5%), 355 solicitações não fazem quaisquer referências ao país, região ou cidade de procedência, e tampouco apontam a cor dos indivíduos; os outros 21 são referidos como "pretos livres", "pretos libertos" ou "pretos forros" (decerto quase todos ex-escravos). Os imigrantes europeus constituíam 63,2% dos trabalhadores de rua que tiveram sua nacionalidade registrada dentre os quais se destacavam portugueses, italianos e espanhóis. Acompanhando as médias de imigração estrangeira para o Rio de Janeiro, os portugueses formavam o grupo mais estável e numeroso desde pelo menos a década de 1820, e também o maior contingente registrado entre os "ganhadores livres". Mesmo assim tinham que disputar - às vezes até com violência - as poucas oportunidades disponíveis, especialmente com os libertos minas, _ que ainda representavam um conjunto expressivo no mercado de ganho do Rio de Janeiro.
               Carregando cestos na cabeça ou sobre os ombros, e algumas vezes andando descalços (uma marca registrada da escravidão), esses estrangeiros perambulavam pela Corte, vendendo peixes, legumes, vassouras e outros objetos, amolando facas ou tocando animados realejos. Se foram muitos os imigrantes europeus que se tornaram prósperos comerciantes, proprietários ou funcionários públicos, não foram poucos os que não tiveram tanta sorte na nova vida construída do lado de cá do Atlântico.

JULIANA BARRETO FARIAS é mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora, junto com Carlos Eugênio Líbano Soares e Flávio dos Santos Gomes, de No labirinto das nações. Africanos e identidades no Rio de Janeiro, Prêmio Arquivo Nacional 2003.

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 24 - outubro 2005

Saiba Mais: Bibliografia
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. "Proletários e escravos. Imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872". In: Novos Estudos Cebrap, julho/1988, n. 21, p. 3056.
CRUZ, Maria Cecília Vel lasco. Virando o jogo: estivadores e carregadores no Rio de janeiro da Primeira República. Tese de Doutorado, USP, 1998.
SOARES, Luís Carlos. "Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX". In: Revista Brasileira de História, n. 16, 1988, p. 107-142.

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