“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

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segunda-feira, 24 de maio de 2021

Escravos de escravos

Índios e negros lutaram séculos para se libertar no Brasil, mas eles próprios exerceram a escravidão antes da chegada dos portugueses e do tráfico negreiro na África.

Antonio Risério

          
     Quando se fala de escravidão no Brasil, o que costuma vir à cabeça das pessoas é um quadro bastante simples. O colonizador português desembarcou na orla marítima, escravizou inúmeros índios e, em seguida, passou a importar levas e mais levas de escravos africanos, que faziam a travessia atlânti­ca a bordo dos célebres navios negreiros. Além disso, todos sabem que, durante séculos, índios e negros lutaram bravamente para se libertar de seus senho­res. Como em Palmares e na Revolta dos Malês. O quadro não é falso. Mas, também, não é inteiramente verdadeiro. Ou, antes, não está completo.

               A prática da comercialização de negros começou, em Portugal, no século XV. Em 1444, o navegador Gil Eanes, que dez anos antes havia ultrapassado o Cabo Bojador, levou para lá uma carga de duzentos indivíduos, entre pretos retintos e outros algo clareados, pela mistura com sangue árabe ou berbere. A partir daí, cresceu o número de aventureiros envolvidos no transporte e na comercialização de sucessivos lotes de africanos escravizados.

               O comércio europeu de gente negra começou, portanto, antes da descoberta do Brasil, como uma espécie de subproduto da exploração marítima da costa ocidental africana pelos capitães que o infante d. Henrique despachava do seu promontório de Sagres. Mais ou menos por essa época, o infante iniciou a colonização das ilhas atlânticas que descobrira. O mo­delo colonizador aplicado na Madeira e nos Açores con­jugava monocultura açu­careira e mão-de-obra es­crava, sob a gerência de um capitão donatário - o primeiro deles, Gonçalo Velho Cabral, descobridor dos Açores, era tio-avô de Pedro Álvares Cabral.

               Antes disso, índios já vinham sendo reduzidos ao cativeiro. Quando as naus cabralinas fizeram escala na região de Porto Seguro, a caminho de Calicute, na índia, o escravismo já era coisa comum e antiga no Brasil. Entre os povos tupis, era uma prática ancestral, sacramentada pelos seus códigos de existência social. Os tupinambás conseguiam seus escravos, basica­mente, por dois expedientes: capturando adversários (objetivo principal de suas guerras incessantes) e aco­lhendo fugitivos. A escravização da massa indígena, pelos portugueses, assumiu caráter sistemático a par­tir do regime das capitanias hereditárias.  Isto é, quan­do a economia do escambo, a troca de pau-brasil por produtos europeus (de espelhos à utensilagem metá­lica), foi superada pela agricultura, os lusos intensifi­caram as atividades de captura e escravização de ín­dios. A mão-de-obra indígena se tornara vital para o sucesso do empreendimento colonizador. O próprio comércio de índios passou a ser um negócio lucrati­vo. Foi também nessa época que a visão lusitana do índio principiou a destoar, mais e mais, da aquarela traçada por Pero Vaz de Caminha.

               A escravidão existia na África des­de tempos imemoriais. Era uma rea­lidade institucional, não somente exercida na prática, mas sancionada pelas leis e pelos costumes. Nos impé­rios do Mali e do Gao, escravos esta­belecidos em colônias agrícolas cui­davam das grandes propriedades dos príncipes e dos ulemás, grupo islâmico da região de Gabu, oeste da África. Na primeira metade do século XV, o grão-vizir de Kano, localizada no Golfo do Benin (atualmente na Nigéria), fundou 21 cidades, instalando, em cada uma delas, mil escravos. Esses es­cravos, em toda a África, eram obtidos pelos mais di­versos meios, do sequestro à guerra dirigida especifi­camente para caçar e capturar gente, cativos que eram conduzidos a pé pelas estradas, amarrados uns aos outros pelo pescoço. Foi na África, de resto, onde a instituição escravista mais durou - e não no Brasil, como se costuma dizer - chegando até o século XX.

               Muito antes de europeus colocarem o pé no con­tinente africano, havia escravos no Reino do Congo. A estratificação social do reino, por sinal, era de uma nitidez absoluta. Havia a aristocracia, um seg­mento intermediário de homens livres e a massa escrava. A aristocracia formava uma casta, desde que seus membros eram impedidos de se casar com plebeus. A parte pesada dos trabalhos agrícolas re­caía, evidentemente, sobre os escravos.

                           Os nagôs ou iorubás - cujo território, a chamada Iorubalândia, apresentava notável grau de urbanização e apresentou ao mundo uma das mais belas e profun­das tradições esculturais do planeta, com a estatuária de Ifé - não ficavam atrás. Conheciam o comércio, a moe­da, a escravidão. Possuíam vasta escravaria, na verdade. E o escravo re­querido em sacrifício pelos orixás era degolado, enterrado vivo ou tinha os membros amputados.

               Quando os portugueses se instala­ram de vez no território brasileiro, a massa amerín­dia praticamente se dividiu entre aliados e inimigos. Não foram raros os índios livres que, em suas trocas com os lusitanos, negociaram índios que haviam capturado em suas expedições bélicas. Na verdade, a prática comercial lusa modificou a atitude amerín­dia perante a escravidão. Em Duas viagens ao Brasil, Hans Staden (que chegou, ele mesmo, a ser escravo dos índios) registra que, certa vez, quando os tupiniquins prenderam um lote inteiro de tupinambás, de­voraram apenas os mais velhos, vendendo os jovens aos portugueses. Antes desse comércio, tais jovens teriam sido escravizados e posteriormente submeti­dos ao ritual antropofágico. Vender tornara-se me­lhor do que comer.

               Os africanos não foram apenas envolvidos pelo tráfico de escravos. Eles também se envolveram ativamente no grande comércio transatlântico. Isto é: uns foram vítimas, outros foram agentes do tráfico. "Os negros começaram logo em África uma luta fratrici­da, incessante, bárbara, a fim de arrebanharem e fazerem prisioneiros, que vinham trazer aos negreiros", observou, já nos anos de 1860, o abolicionista brasi­leiro Agostinho Marques Perdigão Malheiro, em A escravidão no Brasil - Ensaio histórico, jurídico, social. Eram os próprios africanos que controlavam as fon­tes de fornecimento de escravos negros. Agiam como intermediários e traficantes, carreando corpos para as embarcações europeias. Vendiam seus "irmãos de cor", como hoje se costuma dizer.

               Portugal impôs um regime de exclusividade co­mercial à sua colônia ultramarina - isto é, o Brasil só podia negociar com Lisboa. Na prática, esse ex­clusivismo nunca vingou de forma absoluta. A Bahia não vivia unicamente em função da metró­pole, no plano das trocas internacionais. O comér­cio de escravos foi um exemplo definitivo disso. Apesar de reverências oficiais à Coroa lusitana, o tráfico foi, principalmente a partir do século XVIII, um negócio bilateral que, envolvendo africanos e baianos, passava muitas vezes ao largo de Lisboa. Era uma atividade comercial que, em alguns mo­mentos, mediu forças com o poder lisboeta, espe­cialmente depois que a Inglaterra entrou no jogo para dar um basta ao negócio.

               Não se presta maior atenção a esse fato. Mas foi um fato - e não se deve perdê-lo de vista. Nos séculos XVIII e XIX, o tráfico foi uma relação direta entre baianos e africanos (assim como entre cariocas e angolanos), vinculando, particularmente, a cidade da Bahia e o Reino do Daomé. Era uma relação altamente lucrativa para ambas as partes. A Bahia comprava os escravos porque necessitava deles para funcionar. E o tráfico, em si mesmo, era um grande negócio, exigin­do investimentos pesados e gerando lucros imensos.

               O papel da África, no comércio de negros escravi­zados, nada teve de passivo. A parceria da Bahia e do Daomé é exemplo irrefutável do nexo orgânico que conectava as duas margens do Atlântico Sul. Em seu livro Em costas negras - Uma história do tráfico de es­cravos entre a África e o Rio de Janeiro, o historiador Manolo Florentino diz que "ao consumo do escravo [no Brasil] precedia um movimento típico da face africana do tráfico, o da produção social do cativo". O problema é que - por manipulação política, truque, cegueira ou estrabismo ideológico - se construiu, no mundo ocidental oitocentista e na África do século XX, a fantasia de que os negros, seres essencialmente bons, haviam caído, desde o século XV, nas garras cruéis dos brancos, seres essencialmente maus. A África conheceu a guerra, a estratificação social, a es­cravidão, a moeda e a tortura muito antes de os eu­ropeus aparecerem por lá. Em verdade, achar que não havia exploração do homem pelo homem na África, antes da chegada dos europeus, é considerar que os africanos eram seres inferiores.

                              Na África, o tráfico gerou riquezas, incrementou divisões sociais preexistentes, consolidou formações estatais. Os reis do antigo Daomé e a classe domi­nante dos grupos nagôs ou iorubás disputaram en­tre si o monopólio da exportação de escravos para o Brasil, despachando até diversas embaixadas oficiais à Bahia e a Portugal para tratar do assunto. Em Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, Pierre Verger, pioneiro da chamada "antropologia visual", informa que, de 1750 a 1811, foram enviadas à Bahia pelo menos quatro embaixadas do Daomé, duas de Onim (Lagos, Nigéria) e uma de Ardra (Porto Novo, Daomé). Seu objetivo, de um modo geral, era estreitar rela­ções comerciais com o Brasil.

               Por ocasião da embaixada daomeana de 1750, os enviados do rei Tegbessu presentearam o conde de Atouguia, então vice-rei do Brasil, com uma caixa de panos-da-costa e quatro negras, três das quais foram parar em Lisboa, servindo no quarto da rainha de Portugal (a quarta ne­gra ficara cega ao desembarcar em Salvador). Adiante, os dois embaixadores daomeanos de 1795, remetidos pelo rei Agonglô, deixaram os seus aposentos no Convento de São Francisco de Assis, onde estavam hospedados, para, em audiên­cia oficial, propor ao governador da Bahia, Fer­nando José de Portugal, a exclusividade do comér­cio de escravos em Uidá. O governador rejeitou a proposta do comércio privativo Bahia/Uidá, alegan­do que tal monopólio prejudicaria interesses baia­nos. Em 1805, por iniciativa do rei Adandozan, os daomeanos (aqui, chamados "jejes") voltaram a in­sistir, sem êxito, na pretensão do comércio exclusi­vo. Ou seja: assim como índios escravizavam e ven­diam índios, negros escravizavam e vendiam ne­gros. E queriam lucros cada vez maiores.

               É evidente que o objetivo das revoltas escravas no Brasil era se livrar do sistema econômico e social da escravidão. Mas - e isto é que é da mais funda im­portância - sempre em termos restritos, singulares. O sujeito não queria de modo algum ser escravizado por alguém, mas jamais hesitaria em fazer de alguém escravo seu. Triste ou lamentável, esta era a realida­de. Foi o que predominou no Brasil, pelo menos até à primeira metade do século XIX, quando começou a ganhar corpo o movimento abolicionista.

               Havia escravos até em Palmares. Os palmarinos li­bertários não abriram mão de contar com os seus próprios cativos. A documentação disponível fala da existência de homens que, sequestrados em investidas de guerrilheiros palmarinos, eram levados para os ar­raiais rebeldes, passando a trabalhar como escravos nas plantações. Nenhuma surpresa no fato, ao contrá­rio do que podem pensar aqueles que ainda cultivam o mito de que um Estado Negro Ideal se teria forma­do, no século XVII, em terras alagoanas.  Ganga Zumba e Zumbi vinham de áreas congo-angolanas onde o regime de trabalho escravo era uma institui­ção antiga, aceita social e culturalmente. E quanto mais as atividades agrícolas se foram desenvolvendo em Palmares, mais o escravismo se enraizou naquela "república".

               Num universo de povos que ad­mitiam com tranquilidade a existên­cia de escravos, o desejo índio e negro de reduzir brancos ou mulatos ao cativeiro foi intenso e comum na his­tória brasileira. Na hoje célebre Santidade de Jaguaripe - estudada por Ronaldo Vainfas em A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial -, o projeto era escravizar ou mesmo eliminar os brancos. Para sair do meio rural e dar um exemplo urbano, os negros malês, muçulmanos vindos de diversas regiões da África, que se insurgiram violentamente contra a ordem estabelecida, em 1835, que­riam alcançar a sua libertação do regime, mas não destruí-lo. A escravidão estava ins­crita em seu projeto de instalação de um "califado" na Bahia do século XIX.

               Palmares e a revolta dos malês ja­mais incluíram, em suas práticas ou em seus programas, a abolição da escravidão. Se o pequeno bando nômade de cinco ou seis quilombolas podia contentar-se com assaltos e roubos, pilhando fazendas de gado ou plantações, a ins­tituição de um macroquilombo significava outra coisa. E pedia escravos para tocar o seu dia-a-dia.

              Quando um africano ou descendente de africano conseguia a alforria, no Brasil, uma das suas primei­ras providências era comprar ou tentar comprar es­cravos. É impressionante o número de negros forros que possuíam cativos, como demonstram, irrefuta­velmente, as pesquisas documentais sobre a matéria. Os arquivos da Bahia estão cheios de exemplos, co­mo mostram as pesquisas de historiadoras como Kátia Mattoso e Maria Inês Cortes de Oliveira. Havia muitos testamentos em que escravos aparecem arro­lados entre as propriedades de negros alforriados. Mas não era exclusividade baiana. Era coisa corri­queira em todos os cantos e recantos da colônia, de Pernambuco a São Paulo, de Minas Gerais ao Rio de Janeiro. E continuou sendo na nação independente até quase às últimas décadas do século XIX, quando, finalmente, o regime escravista caiu por terra.

               Em A vida dos escravos no Rio de Janeiro -1808-1850, Mary Karasch registrou: "Alguns tinham até propriedades, inclusive outros escravos." Depois de observar que "os africanos libertos que compravam escravas estavam indiscutivelmente perpetuando uma forma africana no Rio", a estudiosa prossegue: "Uma vez que a posse era um fator determinante tão essencial da posição de uma pessoa no Rio do século XIX, os es­cravos buscavam ser donos de escravos... Eles compra­vam muitas vezes outros para ajudá-los a obter sua própria liberdade, ou para trocá-los pela sua pessoa."

               A Inconfidência Mineira foi uma conjuração de proprietários de escravos. "Cafre vil" é como Cláudio Manuel da Costa classifica o quilombola. Pouco antes de ser preso, Tiradentes vendera um mulato que era sua propriedade. O primeiro brado contra a escravidão só foi ouvido em 1798, com a chamada Revolução dos Alfaiates ou Conspiração dos Búzios, na Bahia. Mas a maré abolicionista ain­da tardou. O fato de todos terem sido proprietários, durante tanto tempo, teve repercussão profunda na vida nacional, com desdobramentos que ainda hoje marcam o cotidiano. Não deixa de ser ainda forte entrave à conquista da cidadania plena no Brasil.

Antonio Risério é antropólogo, poeta, ensaísta e historiador.

Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 04 – Fevereiro/2004

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O poder das letras - Medo de alfabetização

A face negra da Abolição

Especial - Abolição da Escravatura 13-05-1888

sábado, 1 de maio de 2021

Eldorado brasileiro

Fome, doença e matança de índios na busca do Eldorado brasileiro.

"Não fomos mais capazes de continuar a viagem por causa da cintilação que ofuscava os nossos olhos

Adriana Romeiro

               O sonho de um Eldorado encravado no coração da América portuguesa povoava a imaginação dos portugueses desde o Descobrimento. Narrativas fantásticas davam conta da existência de uma resplandecente serra de ouro, que os índios chamavam de Sabarabuçu, localizada na mesma latitude de Potosi, no Peru.

                Ainda em 1554, o padre Anchieta escrevia que na capitania de São Vicente havia grande abundância de ouro, prata, ferro, afirmando mesmo que os moradores tinham suas casas abarrotadas de metais preciosos. Por esta época, também o inglês John Whithall - conhecido por aqui como João Leitão - falava sobre a existência de ricas minas de ouro que estavam tão-somente à espera de mineiros práticos para explorá-las. Ou ainda Anthony Knivet, aventureiro dos tempos da rainha Elizabeth, autor de um curioso relato sobre suas viagens pelo continente, empreendidas a partir do Rio de Janeiro.

                Convencido de que ele e seus homens estavam próximos à costa do Pacífico, descreveu o seu encontro com o cerro de Potosi: "Chegamos numa região aprazível, e avistamos à nossa frente uma montanha reluzente, dez dias antes de alcançá-la; porque quando entramos na planície, deixando a região de montanhas, e o sol começou a atingir o seu pináculo, não fomos mais capazes de continuar a viagem, por causa da cintilação que ofuscava os nossos olhos".

                As notícias sobre a existência de metais preciosos, associadas à convicção inabalável da proximidade geográfica entre a América portuguesa e o El dorado peruano, bem cedo levaram Portugal a organizar uma série de expedições com o objetivo de encontrá-los. A descoberta do ouro tão almejado nos confins da capitania de São Vicente, ainda no século XVI, revelou-se um completo malogro: ouro ralo e escasso, de lavagem e não de mina - isto é, encontrado no leito dos rios —, em nada se assemelhava aos relatos correntes sobre minas riquíssimas e perenes.

                Ao longo dos séculos XVII e XVIII sucederam-se as histórias de expedições malogradas, perdidas no interior do continente, às voltas com tribos ferozes e febres mortais, vencidas muitas vezes pela fome mais atroz. A jornada inglória de Fernão Dias Paes (16081681) é emblemática: depois de se oferecer para chefiar uma bandeira em busca de esmeraldas, ele seguiu, acompanhado por grande séquito, em direção aos Cataguases, deixando atrás de si o caminho crivado de sepulturas.

                Foram longos anos de mil sofrimentos em meio aos sertões, nos quais os companheiros foram morrendo ou simplesmente abandonando a expedição, para fugir da miséria ou das "carneiradas" - as febres malsãs que assolavam os que andavam pelos matos. Houve até uma conspiração para assassinar o velho sertanista, liderada por um seu filho bastardo. Ao fim, no lugar das esmeraldas, a expedição carregou o corpo embalsamado de Fernão Dias Paes de volta à vila de São Paulo.

                Só na última década do século XVII é que o ouro dos sertões dos Cataguases foi finalmente descoberto. É quase certo que os paulistas já conheciam havia muito sua localização: em suas andanças pelo interior do continente, em bandeiras de apresamento de índios ou em expedições dirigidas ao Nordeste para lutar contra índios e quilombolas, eles haviam palmilhado todo o território que compreenderia depois a capitania das Minas Gerais, ultrapassando em muito as suas fronteiras.

                Basta lembrar a epopeia de Antônio Raposo Tavares (1598-1658), o célebre destruidor das missões dos índios guaranis. Ele chefiou, por volta de 1648, uma expedição que, partindo de São Paulo, atravessou o Paraguai e o Chaco, contornou em seguida o sopé dos Andes, para depois continuar rio Madeira abaixo, até o Amazonas, e alcançar finalmente Belém do Pará, em 1651.

                Não se sabe ao certo quando o ouro foi encontrado pela primeira vez. Se, a este respeito, as narrativas divergem entre si, a maioria delas aponta o nome de Antônio Rodrigues Arzão, paulista, "homem sertanejo, conquistador do gentio dos sertões da Casa". Percorrendo os sertões das Gerais, em busca de índios, ele teria encontrado, por volta de 1693, "alguns ribeiros com disposição de ter ouro". Munido de uma simples bateia, conseguiu apurar modestas três oitavas de ouro. A expedição, contudo, foi obrigada, diante da investida do "gentio bravo", a embrenhar-se pelos sertões da capitania do Espírito Santo, aonde Arzão chegou gravemente enfermo.

                De volta a São Paulo, pouco antes de morrer, ele entregou a um parente, Bartolomeu Bueno de Siqueira, um mapa com a localização do ouro, encarregando-o de organizar uma expedição para descobrir o metal. Em 1694, a expedição teria encontrado ouro em Itaverava. As descobertas se sucederão em ritmo vertiginoso, e em pouco tempo os três principais polos de povoamento da capitania - Ribeirão do Carmo, Ouro Preto e Sabará - já estavam consolidados.

                No começo, as técnicas de mineração eram rudimentares e atrasadas, tributárias da experiência dos escravos africanos que trouxeram para o Brasil a bateia - gamela de metal ou madeira - e outros instrumentos de garimpo. Todo o transporte do cascalho, desde o rio ou dos montes até os locais da lavagem, era feito única e exclusivamente por cativos. Animais de carga só tardiamente foram introduzidos. Nessas condições, os efeitos da mineração sobre o meio ambiente foram devastadores.

Adriana Romeiro é professora de História na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de Um visionário na corte de d. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

Fonte – Revista Nossa História - Ano III nº 36 - outubro 2006

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A Febre do ouro 

sábado, 13 de março de 2021

Guerreiros em transe

Tradicionais entre os índios da América portuguesa, especialmente os tupinambás, os rituais regados a cauim chocavam e preocupavam o colonizador europeu.

João Azevedo Fernandes

               O ano é 1500. O lugar, uma praia qualquer do litoral brasileiro. Na maloca, iluminada por fogueiras, vários homens se reúnem em volta de uma grande panela, uns sentados no chão, outros sobre pedaços de madeira. Algumas mulheres muito ágeis trazem cuias cheias de uma bebida densa e clara. Um dos homens se levanta e, vibrando um pequeno maracá, começa a dançar e cantar em torno da panela. Sua canção fala de um irmão morto, capturado quando da última expedição contra os inimigos do outro lado da montanha. O homem pede às vozes do maracá que o ajudem a vingá-lo, matando e devorando os odiados vizinhos.

               De repente, um velho que estava afastado se aproxima, um tanto trôpego, e começa a discursar. Fala de seu parentesco e afinidade com o morto, de quem era tio e cunhado. Conta que já havia matado, e comido, muitos daqueles inimigos, e que eles não eram grandes guerreiros, sendo mais afeitos às emboscadas do que ao combate direto. Os homens, e muitas mulheres, respondem ao discurso com risos e gritos altos. As cuias esvaziam-se em um ritmo cada vez mais rápido, e agora muitos estão dançando e discursando sobre lutas e sonhos. Alguns gritam e pedem mais cauim às mulheres, mas a bebida daquela maloca já está esgotada. Cambaleantes, mas ainda bastante dispostos a continuar a bebedeira, os homens levantam-se e vão para a maloca seguinte, onde os esperam vários potes cheios, e a promessa de uma grande noite de cantos e danças e de um dia de vitória e cabeças inimigas esmagadas.

               A colonização europeia do Brasil foi marcada pelo choque entre culturas e pela luta dos recém chegados contra vários costumes dos povos nativos. Entre esses costumes estavam as cauinagens, festas em que se consumiam bebidas feitas de mandioca, milho e frutas. Os índios, especialmente os tupinambás, se relacionavam com as bebidas alcoólicas de uma forma bastante diferente da que os europeus estavam acostumados no Velho Mundo. Aos olhos dos recém-chegados, os tupinambás produziam e consumiam suas bebidas fermentadas de uma maneira nauseante, pecaminosa e profundamente perigosa.

               Durante e após essas cerimônias, os europeus viam suas nascentes estruturas de poder, e seus instáveis mecanismos de controle, serem desafiados por nativos que pareciam "possuídos" por uma força demoníaca, que aparentemente fruía das jarras nas quais suas estranhas bebidas espumavam. Grande parte dos esforços dos colonizadores, especialmente dos missionários, foi dirigida à extinção das práticas etílicas dos índios, vistas como uma ameaça à colonização de seus corpos e mentes.   

               Durante essa luta contra o beber indígena, defrontaram-se lógicas mentais e práticas sociais bastante distintas, construindo-se identidades étnicas e estereótipos que permitiram a elaboração de discursos que legitimavam o domínio dos "civilizados". A visão do "índio bêbado", ainda bem presente nos dias de hoje, foi construída com base nas primeiras experiências dos europeus com as festas dos tupinambás.    

               Contudo, para compreendermos o significado cultural das cauinagens, é necessário abandonar um olhar sobre os prazeres etílicos que vê as bebidas unicamente a partir de um ponto de vista "patológico", como uma fonte de problemas sociais, ou mesmo como algo apenas recreativo. No mundo pré-industrial, e mais ainda naquelas sociedades chamadas de "primitivas", as bebidas fermentadas eram parte integrante da dieta e uma importante fonte de nutrientes essenciais. Além disso, até o advento da era moderna, não se conheciam as bebidas destiladas, que são a principal fonte dos problemas relacionados ao abuso do álcool.

               Desconhecer esses fatos, e lançar para o passado as nossas preocupações contemporâneas, pode levar-nos a equívocos, como o de considerar que o álcool representou um simples instrumento do domínio europeu sobre os povos indígenas, como se estes fossem vítimas passivas de um processo que estava além de seu controle.  

               Na verdade, os índios tinham ideais bastante firmes a respeito do que seria uma boa bebida, e deixaram esse ponto bem claro ao recusar o vinho que lhes foi oferecido pelos portugueses da armada de Pedro Álvares Cabral. Nas palavras do escrivão da frota, Pero Vaz de Caminha, “trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca, não gostaram nada, nem quiseram mais”. Alguns dias depois, mesmo que os nativos estivessem mais à vontade entre os portugueses, continuavam resistindo ao vinho: o capitão Sancho de Tovar levou, ao seu navio, “dous mancebos, despostos”, que comeram tudo que lhes foi oferecido (inclusive presunto), mas não receberam vinho “por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem”.

               Não é de se estranhar que os índios tivessem rejeitado (pelo menos em um primeiro momento) o vinho das caravelas, já velho e, possivelmente, avinagrado. Em comparação com sua própria bebida, o cauim, o vinho português era algo tão estranho quanto os “fartéis e confeitos”, que também lhes foram oferecidos e recusados sem qualquer cerimônia. Aquela bebida era muito diferente de suas suaves cervejas nativas, feitas de mandioca e milho, e de seus saborosos vinhos de frutas, dos quais se destacava aquele feito com o caju.

               Muitos homens da Europa, e seus descendentes nascidos no Brasil, adoravam as bebidas indígenas: no Tratado descritivo do Brasil em 1587, o senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa chamava a atenção para os portugueses e “mestiços” que bebiam os cauins “muito valentemente”. O missionário francês Claude d’Abbeville, que esteve no Maranhão em 1612, provou a bebida feita de milho e achou-a “ótima, saborosa, com um gosto picante nada desagradável”. Outro francês, o padre Yves d’Evreux, que também esteve no Maranhão entre 1613 e 1614, afirmou que a cerveja de milho era “muito mais saborosa e saudável, por causa do contínuo calor, do que o vinho e a aguardente”.

               Não nos enganemos, contudo, com essas opiniões favoráveis. O processo de elaboração do cauim causava asco aos europeus, e isso por uma razão bem simples: a massa, de mandioca ou milho, era mastigada pelas mulheres e cuspida nos vasos, onde era deixada a fermentar. O jesuíta José de Anchieta, grande inimigo das cauinagens, descreveu desta forma, em 1584, a fabricação do cauim: “este vinho fazem as mulheres, e depois de cozidas as raízes ou o milho, o mastigam porque com isso dizem que lhe dão mais gosto e o fazem ferver mais”.

               Claude d’Abbeville chegou a afirmar que muitos dos seus compatriotas, se vissem a fabricação do cauim, diriam “que os índios são pouco asseados” e que “prefeririam morrer de sede a experimentar essa bebida mastigada pelas mulheres indígenas”. Mas Jean de Léry (missionário protestante que participou da fracassada experiência colonial francesa na baía de Guanabara, entre 1555 e 1560) mostrou que o nojo dos europeus era bem infundado, ao comparar, de forma irônica, as práticas nativas com a técnica do Velho Mundo, na qual os vinhateiros, com seus “lindos pés, às vezes calçados de sapatões”, pisavam as uvas, processo no qual se passavam “muitas coisas talvez menos aprazíveis do que a mastigação das mulheres americanas”.

               Mais assustadora que a saliva das índias, porém, era a embriaguez provocada pelo cauim. No mundo católico europeu, de onde vinha a maior parte dos colonizadores do Brasil, a embriaguez era vista como um pecado, e grave, na medida em que demonstrava uma falta de controle sobre os impulsos e desejos que permitia, e incentivava, pecados piores, como a luxúria e a antropofagia. A temperança, por outro lado, era encarada como uma grande virtude, que sinalizava o domínio sobre atos e emoções que formava a base do comportamento de um verdadeiro cristão.

               Além disso, os povos mediterrâneos, como portugueses e franceses, tendiam a usar as bebidas como parte das refeições: vinho, azeite e trigo formavam a base da alimentação mediterrânea desde a antiguidade greco-romana. Beber fora das refeições e beber com o objetivo de se embriagar eram atos vistos como sinônimos de barbárie e selvageria.

               Nada mais diferente desse padrão do que o modo de beber dos índios. Para começar, os tupinambás (assim como muitos povos indígenas atuais) separavam radicalmente o comer do beber: quando se comia não se bebia, e vice-versa. Não é à toa que uma das afirmações mais comuns da documentação colonial, a respeito dos índios, é a de que “eles não bebem quando comem”, o que marca nitidamente o espanto dos colonizadores com uma atitude tão contrária aos seus pontos de vista.

               Os nativos bebiam, cotidianamente, suas tiquaras (água com um pouco de farinha) e mingaus, mas reservavam suas cervejas e vinhos para as ocasiões especiais, como nos casamentos e funerais, na recepção a convidados e visitantes, nas deliberações sobre guerras e alianças e, sobretudo, naquela que era a principal festividade dos tupinambás: a morte e devoração dos inimigos em seus rituais antropofágicos.

                              Nessas ocasiões, os índios bebiam até a última gota. O cristão-novo, e senhor de engenho, Ambrósio Fernandes Brandão, escrevendo em 1618 sobre os tupinambás de Pernambuco, dizia que a embriaguez era “seu costume mais ordinário”, e que, nas festas, os nativos ficavam “juntos em roda todo um dia e noite inteira, sem dormirem, bebendo sempre de ordinário muito vinho, até caírem todos por terra sem acordo”. Aos missionários, não passou despercebido o componente sexual daquelas festas, em que mulheres e moças também participavam alegremente, “parecendo bem difícil a presença de Baco sem Vênus”, como disse o francês Yves d’Evreux.

               Nas cauinagens, homens e mulheres se misturavam e se revezavam nas quedas e vômitos, mas também nos discursos, feitos em altos brados, relembrando os grandes feitos guerreiros de cada grupo em particular (“os vinhos são os memoriais e crônicas de suas façanhas”, disse um jesuíta em 1610). Tais festas representavam uma visão estarrecedora para muitos dos europeus, especialmente os missionários. O padre jesuíta Fernão Cardim, que viveu no Brasil entre 1583 até sua morte, em 1625, pareceu ficar mais horrorizado com a embriaguez do que com o canibalismo dos índios, ao descrever as festas que cercavam o sacrifício ritual do inimigo preso.

               Cardim observou os muitos “potes de vinho postos em carreira pelo meio de uma casa grande” e a barafunda de pessoas que se aglomeravam em torno deles. Quando começavam a beber, era “um labirinto ou inferno vê-los e ouvi-los”, pois seus gritos e bailes duravam vários dias, enquanto restasse bebida nos potes. Lançando um olhar profundamente crítico aos modos dos nativos (“a cada passo urinam [...] todos fallão a quem mais alto, afora outros estrondos...”), o padre apontou a íntima ligação entre a festa do cauim e o canibalismo: as bebedeiras eram “a própria festa das matanças”.

               Os jesuítas foram rápidos em perceber que as cauinagens representavam o pontapé inicial para as guerras e para os ritos canibais. Perceberam, também, que as festas formavam o arcabouço sobre o qual se construíam as relações políticas baseadas na hospitalidade entre os grandes chefes, chamados pelos cronistas de principais. Mais do que lutar contra “maus hábitos”, interessava aos jesuítas, e a outros colonizadores, romper as bases do sistema cultural dos índios, atacando ritos como a antropofagia, proibindo instituições como o casamento poligâmico e combatendo as cauinagens, por serem ocasiões em que toda a cultura indígena se expressava de forma entusiástica e, aos olhos dos colonizadores, incontrolável.

               Não é de espantar, portanto, que o abandono do “beber supérfluo” (isto é, beber para se embriagar) representasse uma condição sine qua non para a aceitação de determinado grupo no grêmio da Igreja. Em 1560, o padre Luis da Grã, delegado da Companhia de Jesus no Brasil, informou a alguns principais que queriam estabelecer boas relações com os padres que, entre “os pontos mais essentiais que avião de goardar”, estavam: “[...] que ninguem avya de ter mais [de huma molher], e outro que não avião de beber até se embebedar como custumavão, [...] e que não avião de matar nem comer carne humana”.

               Nessa difícil luta contra as bebidas, os padres tiveram a ajuda inestimável das mulheres nativas. Essa era uma estratégia importante, já que todo o processo de realização de uma cauinagem estava relacionado às mulheres. Além de produzir a saliva que fermentava as bebidas, eram elas que plantavam a mandioca e o milho, e que colhiam as frutas que seriam transformadas nos cauins.

               Às mulheres estava reservada a importante tarefa de fazer as igaçabas, grandes recipientes de cerâmica em que as bebidas eram fermentadas, e as cuias onde eram consumidas. No momento das festas, eram as mulheres que serviam os bebedores, e eram também as mulheres que procuravam impedir (nem sempre com sucesso) que as bebedeiras descambassem para a violência, escondendo armas e retirando maridos e filhos de situações de conflito. As índias cristianizadas ajudavam os padres, quebrando as talhas onde as bebidas espumavam e discursando sem trégua contra as bebedeiras.

               Outra estratégia era a de “cortar o mal pela raiz”. Desde cedo, os meninos nativos eram ensinados a evitar as cauinagens, ajudando as mulheres cristãs a quebrar potes e ridicularizar os bebedores. Contudo, o lugar cultural central das festas do cauim fica claro quando sabemos que os mesmos meninos, que destruíam as bebidas quando crianças, bebiam a mais não poder quando chegavam à idade adulta, “fazendo-se tão rudes e ruins” como seus congêneres pagãos, e fazendo das bebidas “o pecado mais difícil de ser extirpado”, como disseram vários jesuítas.

               Com todas essas dificuldades, os colonizadores acabaram por vencer as cauinagens. Espoliados de suas terras, impedidos de fazer suas guerras, e de comer seus inimigos, os tupinambás abandonaram suas antigas festas. As bebidas tradicionais perderam seu lugar central como espaço de congraçamento e hospitalidade, sendo substituídas por uma legítima invenção do Brasil colonial: a cachaça. Mas esta é uma outra história.

João Azevedo Fernandes é autor de “De cunhã a mameluca: a mulher Tupinambá e o nascimento do Brasil”. João Pessoa: Ed. UFPB, 2003.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional – Ano 1- Edição nº 4 - outubro 2005

Saiba mais - Bibliografia

CAMARA CASCUDO. Luís da. História da alimentação no brasil. São Paulo: Global, 2004.

EVREUX. Yves d'. Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614. São Paulo: Siciliano, 2002. FERNANDES, Florestan. A organização social dos Tupinambá. São Paulo: Hucitec/Brasília: Edunb, 1989 (1948).

Saiba Mais: Filmes

Como era gostoso o meu francês. Direção Nelson Pereira dos Santos. Brasil/1970.

Hans Staden. Direção Luís Alberto Pereira. Brasil/1999.

Saiba Mais: Link

Antropofagias: a amorosa tapuia e a vingativa tupi

Santos e rebeldes

Solução caseira

Guarani, a língua proibida  

Pinga, cachaça, jeribita

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Pipa, pião e chicote

Crianças brasileiras absorveram referências de diversas culturas do mundo, ampliando seu universo próprio de brinquedos e brincadeiras, com muita diversão e também crueldades.

Renata Meirelles

                              Nas casas-grandes das fazendas coloniais brasileiras, imagem comum era a de meninos negros, filhos de escravos, obrigados a imitar cavalos enquanto recebiam golpes de chicotes de seus sinhozinhos que se divertiam montados em suas costas. Em outras brincadeiras de menino, no entanto, essa relação de dominação se invertia: principalmente em disputas de jogos de pião e papagaio, como conta José Lins do Rego em Menino de engenho, de 1932. Fora do controle adulto e sob regras infantis, as diversões nos terreiros e pomares eram lideradas pelos moleques negros que mostravam sua superioridade nas habilidades de matar passarinho com bodoque, nadar em rios e subir em árvores. Assim, os pequenos fazendeiros acabavam por concordar em fazer trocas propostas pelos meninos negros: pediam para que furtassem coisas da casa-grande, como laranjas e pedaços de queijo, em troca de seus bodoques e piões, num processo de escambo permanente. Esses arranjos entre crianças marcaram a miscigenação de uma infância brasileira que agrega e eterniza outras culturas em seus brinquedos e brincadeiras

               O bodoque e o papagaio, por exemplo, nasceram em terras distantes, transitaram em culturas diversas e sofreram adaptações regionais até chegarem nas mãos dos meninos dos engenhos do país. As naus portuguesas aportavam carregadas de novas possibilidades lúdicas, que vinham nos bolsos das calças da população lusa, que na época pouco diferenciavam os jogos infantis dos de adultos.

               A cada passarinho morto pelo bodoque, revive-se no Brasil um pouco da influência moura. Na língua árabe, bondok significa projétil, pedra ou bola de chumbo. Foi essa palavra que deu origem ao nome do brinquedo citado por José Lins do Rego e utilizado até 1498 como um instrumento bélico europeu. Entre a arma e o brinquedo, o bodoque se assemelha a um arco de atirar flechas, com uma diferença na forma de amarrar as cordas: no lugar de uma, são utilizadas duas cordas paralelas, e a flecha é substituída por uma pedra. Existem registros de que este brinquedo já foi usado na indústria alimentícia no estado de Santa Catarina, que contratava atiradores de bodoque para quebrar a casca de nozes, lançando-as a paredes, sem que a polpa fosse atingida.

               Nas mãos dos meninos das fazendas, os bodoques eram confeccionados com facões e lixados com cacos de vidro. Com o acerto de cada passarinhada, um risco com a faca era feito no punhal do brinquedo, para revelar a todos as novas conquistas. Os meninos conheciam a época certa de se lançar na aventura da "caça", que coincidia com a chegada do inverno, quando normalmente, segundo a sabedoria popular, "dava muito sabiá".

              O papagaio é mais um exemplo típico de brinquedo sazonal, mas, à diferença do bodoque, tem origem oriental, chegando inicialmente no Maranhão no século XVI, trazido pelos portugueses. Os primeiros registros do brinquedo - ou brincadeira - contam que foi criado por um general chinês de 206 a.C , conforme indica a enciclopédia chinesa Khé-Tchi-King-Youen - citada pela educadora Tizuko Kischimoto em Jogos tradicionais infantis, o jogo, a criança e a educação (1993). Segundo a tradição chinesa, a pipa, como é também chamada, foi largamente usada em estratégias militares, servindo de instrumento de comunicação entre soldados, enviando notícias a locais sitiados ou pedindo ajuda. Os séculos correram e esse uso estratégico de um hábito infantil pode ser visto atualmente nas favelas do Rio de Janeiro, na comunicação constante feita com traficantes de drogas.

               Grande apaixonado pelo papagaio, o poeta amazonense Thiago de Mello, em seu Arte e ciência de empinar papagaio, oferece uma lista de palavras utilizadas no vocabulário específico ao brinquedo praticado no início do século XX em cidades da Amazónia. Alguns exemplos como imbicar ou embiocar (descer verticalmente de cabeça para baixo), papocar (quando a linha se rompe sozinha), quedar (triste verbo para quem é cortado) e aparar (pegar pela rabiola o papagaio de outra criança e descer com ele até sua mão). Palavras que também estão até hoje na boca de meninos e meninas do Nordeste e Sudeste brasileiros, interligando a cultura lúdica do país.

               Aparentemente simples, as brincadeiras de barbantes, mais conhecidas como cama-de-gato, de caráter estético, criavam, pelo menos desde o início do século XX, possibilidades de representações "artísticas" de aspectos do cotidiano. Em seus registros feitos em visita aos índios Taulipangues no Norte do Brasil no início do século XX, o antropólogo alemão Theodor Koch-Grunberg, que muito influenciou as obras do escritor Mário de Andrade, relata a maneira como as crianças se divertiam com esses fios entrelaçados entre os dedos formando diferentes figuras. Tratava-se de um a brincadeira de um ou no máximo dois meninos - nunca meninas - que recorriam (e ainda o fazem) até aos dentes para desvencilhar os dedos dos fios. Segundo Koch-Grunberg, as figuras que se formavam recebiam nomes de acordo com o que representavam, mesmo que a semelhança fosse bastante remota. Raízes da palmeira da bacaba, aranha grande, órgão sexual feminino e casas de índio eram algumas das figuras que uniam as imagens lúdicas ao cotidiano dos meninos das aldeias.     

               Alegria, ausência de brigas e desavenças e a presença constante de representações de animais foram as marcas registradas das brincadeiras entre crianças indígenas no início da colonização brasileira, registradas pelo padre Cardim, citado por Gilberto Freyre. Ainda antes das naus portuguesas atracarem suas brincadeiras nas terras do pau-brasil, crianças indígenas recebiam de suas mães animais e bonecas de barro cozido e aprendiam, em idades mais avançadas, a fazer brincadeiras de entrelaçar fios de algodão entre os dedos. Um brinquedo ainda hoje presente entre os curumins brasileiros, antes utilizado em rituais sagrados, é a perna de pau. A imagem de um pássaro pernalta chamado grou, representada na utilização da perna de pau, não tem registro de ter sido criada no Brasil, mas pode ser considerada mais uma dessas brincadeiras que surgem em terras distantes em épocas aproximadas.       

               E, se nas comunidades indígenas reinava a tranquilidade nas brincadeiras dos curumins, nos engenhos e cidades existiam certas malvadezas infantis, como as representadas nas cantigas de beliscões, tapas e chicotadas citadas por Gilberto Freyre. O autor acredita que o menino do engenho revoltava-se dos sofrimentos de uma educação rígida e de muitos castigos, e dos cinco aos dez anos tornava-se um verdadeiro menino-diabo. Mesmo em jogos de piões encontrava uma forma de "lascar-se o pião" do outro, uma prática mantida até hoje entre as crianças. No jogo do "belilisco de pintainha que anda pela barra de vinte e cinco", os beliscões e bolos eram frequentemente aplicados nas mãos das crianças menos espertas. Beliscão medroso por parte dos moleques e forte e doloroso quando aplicado pelos meninos brancos, o que serve como mais um exemplo de dominação racial refletida nas brincadeiras das crianças da época. Essa brincadeira do beliscão citada por Freyre continua até hoje como repertório da cultura infantil, demonstrada por inúmeras cantigas cantadas por crianças de comunidades ribeirinhas da Amazônia: "... quem se mexer vai levar um beliscão, bem na ponta do dedão".    

              Reforçando a tese de meninos-diabo, o padre Lopes Gama, citado por Freyre, rechaçava a educação libertina recebida pelos meninos de família, vistos nas cidades brincando pelos telhados como gatos, empinando papagaios, ou jogando pião pelas ruas com a "rapaziada mais porca e brejeira". Nos campos e fazendas, critica o padre, os meninos assim que podiam vestir-se com suas ceroulinhas ganhavam uma faquinha de ponta, "como no século dos cavaleiros andantes", e passavam a matar bichinhos inocentes em seus ninhos. E matavam mesmo, a cacetadas, como conta José Lins do Rego em um trecho de Menino de engenho, onde narra que muitas crianças se escondiam atrás de arbustos esperando as rolas sertanejas que vinham matar a sede em poças d'água - e pau nelas.

               Mas não foram apenas beliscões e desavenças que inspiravam músicas para crianças, outro belíssimo exemplo de uma cultura miscigenada e universal. A partir do século XIX, passaram a desembarcar no Brasil novas referências de cantigas e rodas infantis que chegavam junto a imigrantes de diferentes nacionalidades. Dessa maneira, ampliava-se a diversidade linguística nas canções, que já vinha agregando em suas letras palavras como dindinho, dengo, iaiá, moleque, vindas da África, ou arapuca, pereba, pipoca, originárias do tupi.

               Apesar de Mário de Andrade nos assegurar que a roda infantil brasileira, como texto e tipo melódico, permanece firmemente europeia e particularmente portuguesa, é possível encontrar influência francesa em versos como "eu sou pobre, pobre, pobre de marre deci" ("Je suis pauvre, pauvre, pauvre...") ou influência italiana na versão adaptada Capelinha de melão, que originalmente era a Capelinha de Milão. O nosso esconde-esconde é o escondoirelo espanhol, ou cache-cache francês. O jogo popular das cinco-pedrinhas, cinco-marias, ou bóle-bole, como é mais conhecido no Brasil, veio de Portugal com o nome de bato, pedras, chocos, jogas, temos, botelhas ou chinas, este último como também é conhecido na Espanha. Os romanos brincavam de sum sub luna, que o castelhano chama sonsoluna e o ibero-americano frio y caliente, tradução para o quente e frio tradicional no Brasil.

               A brincadeira da amarelinha é outro exemplo desta mistura linguística. Até que se prove o contrário, uma interpretação possível é que o nome amarelinha tenha vindo de um a corruptela do nome deste jogo em francês: marelle, que significa pedrinha, jogada nos desenhos feito no chão.

               Assim, em uma mistura de cores e saberes, o repertório cultural infantil permanece como um espelho vivo de cada cultura, garante representações do simbolismo humano e aproxima povos diversos que se reconhecem em gestos simples, como no lançar de um pião.

 RENATA MEIRELLES É MESTRANDA PELA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, IDEALIZADORA DO PROJETO BIRA - BRINCADEIRAS INFANTIS DA REGIÃO AMAZÔNICA, E DIRETORA DE CURTAS - METRAGENS, COMO BAMBEIA E CAPITÃO MENINO, QUE RETRATAM FORMAS DE SE BRINCAR EM COMUNIDADES DA AMAZÔNIA.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional – Ano 1- Edição nº 4 - outubro 2005

Saiba mais - Bibliografia

CASCUDO. Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global. 2001.

FERNANDES. F. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo, São Paulo: Martins Fontes. 3ª ed. 2004. KISCHIMOTO. T. M. Jogos tradicionais infantis, o jogo, a criança e a educação. Petrópolis: Vozes. 1993. MELLO, Thiago. Arte e ciência de empinar papagaio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

Saiba Mais: Link

Especial - Canudos - Órfãos do ódio

A memória afetiva da escravidão

De braços dados e cruzados

Mensagensdo abandono

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Sexo forte

Enfrentando riscos, assumindo responsabilidades próprias dos homens e lutando pelos seus direitos, as mulheres participam da construção do Brasil desde os tempos da Colônia.

Eni Mesquita Samara


                    Ao contrário do que comumente se pensa, a luta pela emancipação feminina não é uma característica da modernidade. Pesquisas recentes mostram que as mulheres, desde o período colonial, estiveram integradas ao processo de povoamento e de circulação de riquezas no país. Lideraram famílias e negócios e, mais ainda, quando estavam insatisfeitas com o casamento não se acanhavam em pedir o divórcio. Já no século XVII, muitas habitantes da colônia demonstravam grande coragem acompanhando maridos ou filhos que se embrenhavam no sertão, desbravando terras virgens e fundando vilarejos. Outras, tendo ficado viúvas e sozinhas, davam continuidade às atividades antes desenvolvidas pelos homens da casa. Muitas deixaram sua marca na história, como Francisca Cardoso, braço direito do marido, Gaspar Vaz, juiz e vereador em São Paulo de 1596 a 1601, que após esse período recebeu ordens do governador d. Francisco de Souza para abrir uma estrada e fundar um novo povoado, Mogi das Cruzes; ou Maria de Moraes, que, com a morte do marido em 1683, assumiu com sucesso a administração das Minas de Caaguaçu, em São Paulo.

               Processos datados dos séculos XVIII e XIX mostram que as mulheres, enfrentando preconceitos e muitas vezes a truculência dos próprios maridos, sabiam muito bem como lutar para libertar-se de um casamento infeliz. Curiosamente, as ações de divórcio eram, na maioria, movidas por mulheres e aceitas pelo tribunal eclesiástico, especialmente nos casos de adultérios e de maus-tratos. Cabe esclarecer que desde a Colônia até o final do Império, os pedidos de separação e de anulação de matrimônio eram julgados pelo tribunal eclesiástico, pois tratava-se de assunto da alçada da Igreja, que embora aceitasse legalmente os pedidos de divórcio, exigindo a separação de corpos e bens, não permitia que os cônjuges contraíssem novas núpcias. O processo podia ser amigável ou litigioso e era concedido sob duas formas: anulação do casamento (permitida caso este não tivesse sido consumado por relações sexuais) e separação de corpos. Só era concedido a partir de alegações consideradas graves na época: adultério, abandono de lar, eventuais questões religiosas, maus-tratos, doenças infecciosas ou injúrias.

               Diferente daquele solicitado sob alegação de sevícias, o divórcio por adultério possuía natureza perpétua, incluindo o "toro" (camas separadas) e a separação dos consortes, que passavam a habitar, por decisão do tribunal, casas diferentes. Já no caso da prática de maus-tratos denunciada pela mulher, a separação era concedida de forma temporária, de modo que o marido pudesse ter tempo de abrandar o gênio e vir a assinar depois um "auto de composição", no qual propunha-se a mudar o comportamento e tratar a mulher de modo moderado. Caso isso não acontecesse, a cônjuge descontente podia retomar o processo.           

               Conforme percebemos nos relatos das esposas envolvendo adultério, havia sempre por parte dos juízes a preocupação em definir com exatidão que tipo de infração fora cometida pelo marido. Uma coisa era trair a mulher de forma casual, com meretrizes. Outra, considerada bem mais grave pela Igreja, era um concubinato estável e perdurável. Isso provocava escândalo e agredia a moral da sociedade. O fato de o marido ter uma concubina, supunha-se, o levava a ausentar-se de casa, deixando faltar alimentos e roupas para a família. Exemplo dessa situação aparece no processo que Jesuína Luiza dos Santos moveu em 1828 contra o esposo.

               A mulher, que se diz "matrona grave, honesta e de reconhecida probidade", justifica o seu pedido de divórcio alegando viver "o dito marido" concubinado com uma "Francisca de Tal", desta mesma cidade (São Paulo) e de, além disso, estar contagiado pela "morféa", nome que se dava à hanseníase. Por esse motivo, ela "se não tem resolvido a ter ajuntamento carnal com o sobredito marido". Jesuína informa que, antes de casar-se, não tinha conhecimento de que o esposo estava infeccionado e que ignorava o fato do mesmo viver concubinado, pois "que se tal soubesse certamente não se casava com ele".

               Em outro processo, de 1855, este movido por um homem contra uma mulher, um italiano naturalizado brasileiro, casado com uma italiana e residente em São Paulo, ausentou-se do Brasil por prescrição médica, indo à Itália tratar da saúde. Ele deixou aos cuidados da esposa a administração de todos os bens do casal, incluindo uma casa de pensão e um hotel. Para sua surpresa, ao retornar, em 1856, a mulher havia vendido o hotel e passara para o nome do amante a casa de pensão, além de continuar vivendo como adúltera.

               Como se pode perceber, homens e mulheres viveram situações de conflito no casamento que resultaram em traições de ambos os lados. No entanto, em função da legislação que vigorava na época, havia diferenças nos julgamentos dessas ações "pecaminosas". Para os maridos, era necessário provar-se a existência de uma concubina "teúda e manteúda". Para as mulheres, um simples desvio bastava para incriminá-las. Por isso, quando as esposas alegavam adultério, frequentemente os maridos tentavam acusá-las do mesmo crime. Se conseguissem prová-lo, o processo estaria encerrado, pois afinal uma fornicação fora paga com outra.

               As desigualdades também persistiam ao longo dos julgamentos, pois, para assegurar que obteria a separação, a suplicante deveria, no tempo em que estivesse correndo o processo, manter uma conduta idônea, sem nem mesmo poder sair de casa. Caso fosse vista perambulando pela cidade, o marido podia requerer, exigindo que ficasse "depositada" em casa honesta. Uma forma de as esposas garantirem o ganho da causa era sempre colocar-se diante do júri conforme os padrões aceitos pela sociedade. Deviam apresentar-se como mulheres honestas, obedientes e recatadas. O ideal era conseguir provas de que o marido não cumpria seu papel de provedor e protetor.

               Ao alegarem maus-tratos por parte dos cônjuges, elas conseguiam mais facilmente ganhar a causa, já que as sevícias constituíam uma ameaça à integridade física e à preservação de suas vidas. Essa acusação sempre tinha mais peso do que supostas relações extramatrimoniais do marido. Se este fosse acusado apenas de traição, caberia à esposa o ônus da prova, e ela podia também ser acusada de adultério, o que dificultaria o ganho da ação.

               A atuação das mulheres não se resumia, entretanto, a disputas jurídicas com os seus maridos. Desde a Colônia é possível perceber sua marcante presença nos setores de serviços e de abastecimento. Eram costureiras, doceiras, tecelãs, lavadeiras e quitandeiras. No campo, trabalhavam na lavoura e também nos ofícios domésticos. Este era um nicho do mercado frequentemente descartado pelos homens. Portanto as mulheres, assim como os trabalhadores livres e pobres, tinham no sistema a alternativa das atividades mais humildes e menos rentáveis.

               O movimento constante da população dos séculos XVII ao XIX, associado à forte migração masculina, principalmente para as áreas de fronteira, deixou muitas mulheres sozinhas, sem perspectiva de casamento. E estas tiveram de buscar por conta própria meios que garantissem sua sobrevivência, a de seus filhos e agregados. O panorama certamente explica a alta incidência de mulheres chefes de família, especialmente nas áreas urbanas. Em São Paulo, no ano de 1836, elas estavam representadas em 35,8% dos domicílios. Em Fortaleza, em 1887, correspondiam a 30%. Um dos índices mais altos é o de Vila Rica de Ouro Preto, em 1804, onde 45% das famílias eram encabeçadas por mulheres. Seja numa economia em florescimento, como a São Paulo da segunda metade do século XIX, ou numa situação econômica desfavorável, como a Fortaleza assolada pela seca, as mulheres chefes de família constituem destaque na organização social, exercendo profissões consideradas tradicionais, comandando escravos e agregados ou em outras ocupações surgidas com a diversificação econômica.

               Ao longo do século XIX, vão ocorrer uma série de mudanças na vida das mulheres, abrindo-se novas oportunidades no mercado de trabalho. Segundo o Recenseamento Geral do Brasil, realizado no ano de 1872, notamos que nas ocupações femininas da população ativa, com idade maior de dez anos, que declararam ter atividade, há destaque para serviços domésticos (22,83%), serviços agrícolas (18%) e de costura (10,59%). No século XX, a sociedade brasileira muda. As migrações para a cidade e o ritmo da vida urbana industrial transformaram tanto os aglomerados familiares, modificando o tamanho das famílias e as relações entre parentes, quanto a autoridade do pai e do marido frente à entrada efetiva da mão de obra feminina no mercado de trabalho. Isso implicou um processo de reconhecimento do trabalho feminino, na medida em que complementava a renda familiar. Neste período, as mulheres, apesar de exercerem atividades marginais ao processo produtivo, preenchiam os quadros de prestação de serviços exigidos pela urbanização, empregando seu conhecimento de técnicas domésticas na industrialização incipiente. No entanto, ainda eram obrigadas a assumir uma dupla jornada de trabalho, pois continuavam responsáveis pelos cuidados da casa.

               Com isso, uma nova gama de profissões vai-se consolidando. Em 1940, para a população brasileira, elas aparecem em atividades domésticas não remuneradas (70,74%), serviços domésticos remunerados (3,99%), como professoras (7,23%), trabalhadoras industriais (2,17%), agricultoras em geral (9,69%) e atividades extrativistas (0,27%). Estão ainda nas profissões liberais, em menores porcentagens, aparecendo como médicas, veterinárias, dentistas, farmacêuticas e profissionais do ensino.

               Se no século XIX o ideal burguês de valorização da família, da mulher dedicada ao lar, sustentada pelo marido e preservada dos males da rua, foi desejado pela maioria das mulheres, já ao longo do século XX o mercado de trabalho atraía cada vez mais mulheres. Com a recente possibilidade de ascensão e independência financeira, começou a delinear-se o redimensionamento dos papéis de gênero na sociedade. A cidadania, por sua vez, é uma conquista através do voto feminino concedido no processo democrático brasileiro em 1933.

               Concluindo todo esse percurso da história das mulheres no Brasil, podemos dizer que se hoje elas desfrutam da cidadania, da igualdade de direitos, do acesso à educação e ao mercado de trabalho, isso foi conquistado com muito esforço. Por outro lado cabe ainda observar que mesmo no passado as mulheres brasileiras não estiveram apenas restritas ao âmbito doméstico, como se pensava, mas presentes no processo de colonização, na formação de vilas, no gerenciamento de negócios e atividades e nas chefias de domicílio. A sua presença também pode ser constatada na documentação processual e nas reivindicações pela igualdade, que já aparecem por volta de 1850, com as primeiras vozes feministas. Ao ser resgatada, a história da participação das mulheres na sociedade brasileira nos mostra que, apesar das diferenças de classe e etnias, elas souberam desde cedo organizar-se, em contextos quase sempre desfavoráveis, para reivindicar direitos e oportunidades.

 ENI MESQUITA SAMARA é professora de História na USP, diretora do Museu Paulista e autora dos livros As mulheres, o poder e a família. São Paulo: Marco Zero, 1989 e Família, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII. Bauru/SP: EDUSC, 2003

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005

Saiba mais - Bibliografia

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995. NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

PERROT, Michelle. Os excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Saiba Mais: Link

As perseguidas

Maria da Penha demora a sair do papel

Ficando para titia

Mulheres Invisíveis (2011)

O sexo a quem compete?

Pisando no "sexo frágil"

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