“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Pequenas mãos calejadas

Desde os primeiros anos da industrialização, o uso de mão de obra infantil vem sendo prática frequente no país, fazendo com que milhares de crianças troquem a infância pelo trabalho.

Rosilene Alvim

               A publicação, em 1927, do Código de Menores, que estabeleceu limites ao trabalho infantil no Brasil, causou indignação nos meios patronais. Numa carta endereçada ao Centro Industrial de Fiação e Tecelagem - CIFTA -, um representante da Companhia de Tecidos Paulista, em Pernambuco, protestou: "A respeito dos menores, estranhamos muito que uma fábrica ou empresa não pode empregar um menor de 18 anos que não sabe ler, não obstante, pelo Código Civil do Brasil pode casar com 16 anos de idade; e ser pai de família aos 18 anos; podendo até ser soldado do exército! É estranhável". Em outro trecho escreve o signatário: "Outrossim, por toda a parte do mundo é permitido crianças trabalharem nos bancos de fiação, sendo para este trabalho necessário o serviço de pessoas com mãos muito pequenas".

               Mãos pequenas e salários idem. O secretário-geral do CIFTA de São Paulo, Puppo Nogueira, declarou em 1928 ao jorna Diário Popular que, se a lei fosse mesmo cumprida, ia ser difícil encontrar adultos para substituírem os menores nas indústrias, pois estes se dedicavam a tarefas pouco remuneradas e por isso sem atrativos para um pai de família: "Mesmo que [os adultos] aceitassem, nesse caso, nada poderiam fazer, seu rendimento seria nulo, uma vez que os menores fazem trabalhos ideados para a sua pequena estatura e para as suas forças, havendo grande número de máquinas para eles construídas. Um determinado trabalho, que uma criança de 14 anos faz sem cansaço, esgotaria um adulto ao cabo de algumas horas (...). Uma criança é capaz de fazer grande número de movimentos sem fadiga apreciável, tem agilidade da infância e um organismo íntegro".

               A argumentação do patronato é vastíssima, mas tudo pode ser resumido no seguinte cenário: o trabalho infantil, visto hoje por muitos segmentos da sociedade como uma forma de exploração, era apresentado pelos empresários como um favor que prestavam à infância carente, às famílias operárias e, consequentemente, à sociedade. Além das supostas vantagens anatômicas infantis, era sempre melhor para as crianças ficar dentro das fábricas do que permanecer nas ruas, na ausência dos pais, expostas à delinquência e a toda sorte de perigo.

               De fato, na vila operária da Companhia de Tecidos Paulista, cujo apogeu se deu entre os anos 1930- 50, o trabalho dos jovens e crianças era representado como uma "ajuda" econômica, que vinha para reforçar a autoridade do chefe de família. A fábrica costumava ser vista pelos patrões como uma escola, um lugar que podia formar um cidadão para o futuro. Hoje, esse argumento do passado, reforçado no Brasil pela problemática dos "meninos e meninas de rua", continua sendo compartilhado não apenas por empresários, mas também por famílias operárias, que enxergam o trabalho dos filhos jovens, de ambos os sexos, como uma contribuição para a manutenção da casa e do núcleo familiar.

               O trabalho infantil vem sendo objeto de críticas desde a Revolução Industrial, no fim do século XIX, e a literatura sobre a constituição da classe operária europeia apresenta frequentemente essa questão. O trabalho pioneiro de Peter Gaskell sobre a "população manufatureira da Inglaterra", em que se baseou largamente Engels, inclui o "exame do trabalho infantil" no próprio subtítulo. O Livro I de O capital, de Karl Marx, trata do trabalho infantil nos capítulos sobre a "jornada de trabalho" e sobre a "maquinaria e a grande indústria". Já historiadores ingleses como J. L. e Barbara Hammond, que abordaram o assunto em 1917, consideram que "o emprego de crianças numa vasta escala durante a primeira fase da Revolução Industrial é a característica mais importante da vida inglesa".

               Na Inglaterra, o trabalho de crianças era empregado não apenas na indústria têxtil, mas nas áreas de mineração e em outras atividades, e algumas leis foram formuladas na época para proteger as crianças das longas jornadas a que eram submetidas. No Brasil, um a lei do final do século XIX proibira o trabalho do adolescente entre 14 e 15 anos, mas a legislação só se cristalizou com a Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943. Ao estabelecer a idade mínima (14 anos) e o horário de trabalho para menores, a CLT produziu grande resistência por parte dos patrões, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, antiga capital da República.

               Através do CIFTA e de seus lobistas no Executivo e no Congresso Nacional, os empresários alegavam que o trabalho das crianças, sendo acessório ao trabalho dos adultos, não poderia ser diminuído, sob pena de sérios prejuízos à produção e aos próprios operários. Antes, como já foi dito, a categoria se rebelara contra o Código de Menores, e se recusou a cumprir as determinações da lei. Na época, sua estratégia era recorrer aos tribunais contra a aplicação das multas que lhes eram cobradas pelos juízes de menores do Rio e de São Paulo, entre os quais se destacou Cândido de Mello Mattos, duro defensor da lei que proibia o prolongamento da jornada de trabalho dos menores para mais de seis horas. A ação do juiz Mello Mattos - versão nacional de Leonard Horner, o inspetor de fábricas inglês elogiado por Karl Marx em O capital por sua firmeza e honradez diante dos industriais ingleses pela efetivação das leis de fábrica - foi justificada e apoiada por advogados progressistas, como Evaristo de Moraes.                   

Mello Mattos deu um prazo de três meses aos patrões para se porem de acordo com o Código. Entre 1928 a 1929, eram constantes as notícias publicadas nos jornais sobre as multas que aplicou às fábricas que não cumpriam o horário de trabalho estabelecido pela lei. Em sua defesa, o empresário Jorge Street, proprietário de uma fábrica têxtil, com vila operária em São Paulo, revela sua concepção patronal sobre a infância na classe trabalhadora. Alguns trechos de um texto de sua autoria:

               "A questão [da regulamentação do trabalho dos menores] relaciona-se com o desenvolvimento físico e moral das crianças, afeta, além disso, direta e grandemente, a economia da família operária, e tem também bastante importância para certos trabalhos nas fábricas que só podem ser feitos convenientemente por crianças."

               "Os operários da fábrica empenham-se fortemente, para obterem estas colocações para seus filhos e parentes, e sempre que eu lhes objeto achar prematuro o trabalho para estes petizes."

               "As crianças suportam perfeitamente bem, por exemplo, cinco horas de trabalho seguido, e assim poder-se-ia, ainda, estabelecer a frequência obrigatória da escola, por algumas horas, ora à manhã, ora à tarde, pelas respectivas turmas alternadas. Naturalmente, para isso, é preciso, sempre, que a escola apareça."

               Podem-se associar essas considerações de Jorge Street ao que viria a escrever o historiador Philippe Aries sobre a formação da concepção de infância na Europa:"(...) Durante a primeira metade do século XIX, sob a influência da mão de obra na indústria têxtil, o trabalho de crianças conservou uma característica da sociedade medieval: a precocidade da passagem para a idade adulta". É evidente que a lógica dos patrões difere da lógica dos trabalhadores. Para estes, só um a situação de extrema penúria justifica que seus filhos passem a ficar inteiramente subordinados ao trabalho fabril ou ao trabalho assalariado no campo. À parte esses casos extremos, não é "estranho", no entanto, que busquem através do trabalho dos filhos, mesmo crianças, meios para a manutenção do seu grupo doméstico.

               Enquanto na indústria, por força da legislação, da fiscalização trabalhista e das transformações por que passaram as fábricas, o trabalho realizado por menores diminuiu consideravelmente, na agricultura a questão vem chamando a atenção: com a extensão da legislação social ao campo, a partir dos anos 1960, e com a criação de sindicatos de trabalhadores rurais, antes proibidos, o uso de mão de obra infantil assalariada no trabalho rural, realidade ainda hoje muito presente, se tornou foco de pressões sociais em diversas instâncias. Assim, a partir dos anos 1980, entidades de trabalhadores rurais passaram a aderir a campanhas promovidas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), Unicef e ONGs nacionais, voltadas para denúncias contra o trabalho infantil. Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente proibiu definitivamente o trabalho de crianças e regulou a forma do trabalho do adolescente (entre 14 e 18 anos).

               Segundo o suplemento especial da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), "o nível da ocupação (percentual de pessoas ocupadas na população do mesmo grupo etário) das crianças e adolescentes vem apresentando redução ao longo dos anos. Entre os fatores que contribuíram para essa evolução estão as políticas implementadas pelas três esferas governamentais voltadas para proporcionar condições para que as crianças tenham acesso ao ensino, permaneçam na escola e, também, não precisem trabalhar para auxiliar no sustento da família". Várias ONGs, com apoio da OIT, desenvolvem ações relacionadas ao trabalho infantil, das quais posteriormente o governo participa através de fóruns e do fornecimento de bolsas para que as crianças não trabalhem.

               Há, na verdade, no Brasil de hoje, uma grande mobilização - com o lema "lugar da criança é na escola" -, que atinge também os empresários. Desde 1994, o Fórum pela Erradicação do Trabalho Infantil, que reúne o Unicef, OIT e mais quarenta organizações governamentais e não-governamentais, assim como associações patronais e sindicatos, vem atuando no sentido de impedir o uso do trabalho infantil e as condições de trabalho subumanas a que são submetidos os adolescentes no Brasil e outros países. Paralelamente, o governo federal criou o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, que atinge não só a área rural como também a urbana.

               Através da bolsa-escola e da ampliação da jornada escolar, as famílias carentes se comprometem a não utilizar a força de trabalho de suas crianças. Segundo dados do IBGE, "de 1992 para 2001 o nível da ocupação das crianças e adolescentes passou de 3,7% para 1,8%, no grupo de 5 a 9 anos de idade, de 20,4% para 11,6% no de 10 a 14 anos, e de 47,0% para 31,5% no de 15 a 17 anos de idade". O Unicef, no artigo intitulado "Prevenção e combate ao trabalho infantil e à exploração sexual", afirma que "cerca de 3,8 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 16 anos trabalham no Brasil. De 10 crianças que trabalham, uma frequenta a escola".

               Em consequência, a taxa do analfabetismo entre essas crianças atinge 20,1% contra 7,6% dascrianças que não trabalham. Na faixa etária de 15 a 17 anos, também se notam os efeitos danosos do trabalho sobre a escolarização. Entre os adolescentes que trabalham, somente 25,5% conseguiram concluir os oito anos de escolaridade, enquanto entre os que não trabalham o percentual foi significativamente maior: 44,2%.

               No entanto, apesar de todo o esforço para eliminar a exploração do trabalho de crianças e adolescentes, sabe-se que ainda se encontram menores trabalhando nas carvoarias, em plantações de tomate que utilizam grandes quantidades de veneno, no corte da cana, na agricultura do sisal, na plantação e colheita do mate e nas indústrias caseiras, como a da confecção de calçados. Na área urbana, registra-se o comércio ambulante e outras atividades exercidas por menores nos sinais de trânsito. Todas essas formas de trabalho são nocivas ao desenvolvimento de crianças e adolescentes que, mesmo frequentando a escola, não podem ter o mesmo rendimento de crianças e adolescentes que só estudam.

               As justificativas para essas formas de trabalho de crianças e adolescentes vêm acompanhadas pelos mesmos argumentos dos primeiros industriais brasileiros: o trabalho infantil e o do adolescente é necessário para a renda familiar e ao mesmo tempo evita que estes entrem para o mundo do crime, permitindo que através dessas atividades se formem bons cidadãos no futuro. Embora muito mais difíceis sejam as perspectivas de carreira dos atuais trabalhadores infantis, se comparados aos aprendizes operários do passado, que chegaram a prosseguir no trabalho industrial até sua aposentadoria, o argumento do valor do trabalho (influenciado pelo antigo modelo ideal do trabalho familiar), mesmo que sem futuro objetivo, ainda permanece.

               À crescente gravidade da questão (que inclui o aumento do mercado de trabalho da contravenção e da criminalidade) se opõe a crescente mobilização de movimentos e entidades, agora inclusive de vanguardas patronais, nas suas tentativas de resolver o problema. Tudo isso passou a inspirar políticas estatais de transferência de renda condicionadas à frequência escolar. Para a resolução do problema, o que se destaca, seguramente, é a necessidade de uma política educacional qualitativa de base, que transforme a escola numa instituição central na vida das crianças e dos jovens, aberta aos problemas e às potencialidades das classes populares, nas cidades e nas áreas rurais.

ROSILENE ALVIM É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ), DOUTORA EM ANTROPOLOGIA SOCIAL PELA MESMA UNIVERSIDADE E CO-ORGANIZADORA DE JOVENS & JUVENTUDES (EDITORA UNIVERSITÁRIA/UFPB, 2005).

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional – Ano 1- Edição nº 4 - outubro 2005

Saiba mais - Bibliografia

ARIES, Philippe. História social da criança e da família. São Paulo: LTC, 1981.

PINHEIRO, Paulo Sergio e Hall, Michel. A classe operária no Brasil 1889- 1930 documentos. São Paulo: Alpha Ômega, vol. 2, 1981.

THOMPSON, E.P A Formação da classe operária na Inglaterra. São Paulo: Paz e Terra, vol. 2, 1987

Saiba Mais: Link

Especial - Canudos - Órfãos do ódio

A memória afetiva da escravidão

De braços dados e cruzados

Mensagens do abandono

Pipa, pião e chicote

Saiba Mais: Filmes

Crianças Invisíveis

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Pipa, pião e chicote

Crianças brasileiras absorveram referências de diversas culturas do mundo, ampliando seu universo próprio de brinquedos e brincadeiras, com muita diversão e também crueldades.

Renata Meirelles

                              Nas casas-grandes das fazendas coloniais brasileiras, imagem comum era a de meninos negros, filhos de escravos, obrigados a imitar cavalos enquanto recebiam golpes de chicotes de seus sinhozinhos que se divertiam montados em suas costas. Em outras brincadeiras de menino, no entanto, essa relação de dominação se invertia: principalmente em disputas de jogos de pião e papagaio, como conta José Lins do Rego em Menino de engenho, de 1932. Fora do controle adulto e sob regras infantis, as diversões nos terreiros e pomares eram lideradas pelos moleques negros que mostravam sua superioridade nas habilidades de matar passarinho com bodoque, nadar em rios e subir em árvores. Assim, os pequenos fazendeiros acabavam por concordar em fazer trocas propostas pelos meninos negros: pediam para que furtassem coisas da casa-grande, como laranjas e pedaços de queijo, em troca de seus bodoques e piões, num processo de escambo permanente. Esses arranjos entre crianças marcaram a miscigenação de uma infância brasileira que agrega e eterniza outras culturas em seus brinquedos e brincadeiras

               O bodoque e o papagaio, por exemplo, nasceram em terras distantes, transitaram em culturas diversas e sofreram adaptações regionais até chegarem nas mãos dos meninos dos engenhos do país. As naus portuguesas aportavam carregadas de novas possibilidades lúdicas, que vinham nos bolsos das calças da população lusa, que na época pouco diferenciavam os jogos infantis dos de adultos.

               A cada passarinho morto pelo bodoque, revive-se no Brasil um pouco da influência moura. Na língua árabe, bondok significa projétil, pedra ou bola de chumbo. Foi essa palavra que deu origem ao nome do brinquedo citado por José Lins do Rego e utilizado até 1498 como um instrumento bélico europeu. Entre a arma e o brinquedo, o bodoque se assemelha a um arco de atirar flechas, com uma diferença na forma de amarrar as cordas: no lugar de uma, são utilizadas duas cordas paralelas, e a flecha é substituída por uma pedra. Existem registros de que este brinquedo já foi usado na indústria alimentícia no estado de Santa Catarina, que contratava atiradores de bodoque para quebrar a casca de nozes, lançando-as a paredes, sem que a polpa fosse atingida.

               Nas mãos dos meninos das fazendas, os bodoques eram confeccionados com facões e lixados com cacos de vidro. Com o acerto de cada passarinhada, um risco com a faca era feito no punhal do brinquedo, para revelar a todos as novas conquistas. Os meninos conheciam a época certa de se lançar na aventura da "caça", que coincidia com a chegada do inverno, quando normalmente, segundo a sabedoria popular, "dava muito sabiá".

              O papagaio é mais um exemplo típico de brinquedo sazonal, mas, à diferença do bodoque, tem origem oriental, chegando inicialmente no Maranhão no século XVI, trazido pelos portugueses. Os primeiros registros do brinquedo - ou brincadeira - contam que foi criado por um general chinês de 206 a.C , conforme indica a enciclopédia chinesa Khé-Tchi-King-Youen - citada pela educadora Tizuko Kischimoto em Jogos tradicionais infantis, o jogo, a criança e a educação (1993). Segundo a tradição chinesa, a pipa, como é também chamada, foi largamente usada em estratégias militares, servindo de instrumento de comunicação entre soldados, enviando notícias a locais sitiados ou pedindo ajuda. Os séculos correram e esse uso estratégico de um hábito infantil pode ser visto atualmente nas favelas do Rio de Janeiro, na comunicação constante feita com traficantes de drogas.

               Grande apaixonado pelo papagaio, o poeta amazonense Thiago de Mello, em seu Arte e ciência de empinar papagaio, oferece uma lista de palavras utilizadas no vocabulário específico ao brinquedo praticado no início do século XX em cidades da Amazónia. Alguns exemplos como imbicar ou embiocar (descer verticalmente de cabeça para baixo), papocar (quando a linha se rompe sozinha), quedar (triste verbo para quem é cortado) e aparar (pegar pela rabiola o papagaio de outra criança e descer com ele até sua mão). Palavras que também estão até hoje na boca de meninos e meninas do Nordeste e Sudeste brasileiros, interligando a cultura lúdica do país.

               Aparentemente simples, as brincadeiras de barbantes, mais conhecidas como cama-de-gato, de caráter estético, criavam, pelo menos desde o início do século XX, possibilidades de representações "artísticas" de aspectos do cotidiano. Em seus registros feitos em visita aos índios Taulipangues no Norte do Brasil no início do século XX, o antropólogo alemão Theodor Koch-Grunberg, que muito influenciou as obras do escritor Mário de Andrade, relata a maneira como as crianças se divertiam com esses fios entrelaçados entre os dedos formando diferentes figuras. Tratava-se de um a brincadeira de um ou no máximo dois meninos - nunca meninas - que recorriam (e ainda o fazem) até aos dentes para desvencilhar os dedos dos fios. Segundo Koch-Grunberg, as figuras que se formavam recebiam nomes de acordo com o que representavam, mesmo que a semelhança fosse bastante remota. Raízes da palmeira da bacaba, aranha grande, órgão sexual feminino e casas de índio eram algumas das figuras que uniam as imagens lúdicas ao cotidiano dos meninos das aldeias.     

               Alegria, ausência de brigas e desavenças e a presença constante de representações de animais foram as marcas registradas das brincadeiras entre crianças indígenas no início da colonização brasileira, registradas pelo padre Cardim, citado por Gilberto Freyre. Ainda antes das naus portuguesas atracarem suas brincadeiras nas terras do pau-brasil, crianças indígenas recebiam de suas mães animais e bonecas de barro cozido e aprendiam, em idades mais avançadas, a fazer brincadeiras de entrelaçar fios de algodão entre os dedos. Um brinquedo ainda hoje presente entre os curumins brasileiros, antes utilizado em rituais sagrados, é a perna de pau. A imagem de um pássaro pernalta chamado grou, representada na utilização da perna de pau, não tem registro de ter sido criada no Brasil, mas pode ser considerada mais uma dessas brincadeiras que surgem em terras distantes em épocas aproximadas.       

               E, se nas comunidades indígenas reinava a tranquilidade nas brincadeiras dos curumins, nos engenhos e cidades existiam certas malvadezas infantis, como as representadas nas cantigas de beliscões, tapas e chicotadas citadas por Gilberto Freyre. O autor acredita que o menino do engenho revoltava-se dos sofrimentos de uma educação rígida e de muitos castigos, e dos cinco aos dez anos tornava-se um verdadeiro menino-diabo. Mesmo em jogos de piões encontrava uma forma de "lascar-se o pião" do outro, uma prática mantida até hoje entre as crianças. No jogo do "belilisco de pintainha que anda pela barra de vinte e cinco", os beliscões e bolos eram frequentemente aplicados nas mãos das crianças menos espertas. Beliscão medroso por parte dos moleques e forte e doloroso quando aplicado pelos meninos brancos, o que serve como mais um exemplo de dominação racial refletida nas brincadeiras das crianças da época. Essa brincadeira do beliscão citada por Freyre continua até hoje como repertório da cultura infantil, demonstrada por inúmeras cantigas cantadas por crianças de comunidades ribeirinhas da Amazônia: "... quem se mexer vai levar um beliscão, bem na ponta do dedão".    

              Reforçando a tese de meninos-diabo, o padre Lopes Gama, citado por Freyre, rechaçava a educação libertina recebida pelos meninos de família, vistos nas cidades brincando pelos telhados como gatos, empinando papagaios, ou jogando pião pelas ruas com a "rapaziada mais porca e brejeira". Nos campos e fazendas, critica o padre, os meninos assim que podiam vestir-se com suas ceroulinhas ganhavam uma faquinha de ponta, "como no século dos cavaleiros andantes", e passavam a matar bichinhos inocentes em seus ninhos. E matavam mesmo, a cacetadas, como conta José Lins do Rego em um trecho de Menino de engenho, onde narra que muitas crianças se escondiam atrás de arbustos esperando as rolas sertanejas que vinham matar a sede em poças d'água - e pau nelas.

               Mas não foram apenas beliscões e desavenças que inspiravam músicas para crianças, outro belíssimo exemplo de uma cultura miscigenada e universal. A partir do século XIX, passaram a desembarcar no Brasil novas referências de cantigas e rodas infantis que chegavam junto a imigrantes de diferentes nacionalidades. Dessa maneira, ampliava-se a diversidade linguística nas canções, que já vinha agregando em suas letras palavras como dindinho, dengo, iaiá, moleque, vindas da África, ou arapuca, pereba, pipoca, originárias do tupi.

               Apesar de Mário de Andrade nos assegurar que a roda infantil brasileira, como texto e tipo melódico, permanece firmemente europeia e particularmente portuguesa, é possível encontrar influência francesa em versos como "eu sou pobre, pobre, pobre de marre deci" ("Je suis pauvre, pauvre, pauvre...") ou influência italiana na versão adaptada Capelinha de melão, que originalmente era a Capelinha de Milão. O nosso esconde-esconde é o escondoirelo espanhol, ou cache-cache francês. O jogo popular das cinco-pedrinhas, cinco-marias, ou bóle-bole, como é mais conhecido no Brasil, veio de Portugal com o nome de bato, pedras, chocos, jogas, temos, botelhas ou chinas, este último como também é conhecido na Espanha. Os romanos brincavam de sum sub luna, que o castelhano chama sonsoluna e o ibero-americano frio y caliente, tradução para o quente e frio tradicional no Brasil.

               A brincadeira da amarelinha é outro exemplo desta mistura linguística. Até que se prove o contrário, uma interpretação possível é que o nome amarelinha tenha vindo de um a corruptela do nome deste jogo em francês: marelle, que significa pedrinha, jogada nos desenhos feito no chão.

               Assim, em uma mistura de cores e saberes, o repertório cultural infantil permanece como um espelho vivo de cada cultura, garante representações do simbolismo humano e aproxima povos diversos que se reconhecem em gestos simples, como no lançar de um pião.

 RENATA MEIRELLES É MESTRANDA PELA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, IDEALIZADORA DO PROJETO BIRA - BRINCADEIRAS INFANTIS DA REGIÃO AMAZÔNICA, E DIRETORA DE CURTAS - METRAGENS, COMO BAMBEIA E CAPITÃO MENINO, QUE RETRATAM FORMAS DE SE BRINCAR EM COMUNIDADES DA AMAZÔNIA.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional – Ano 1- Edição nº 4 - outubro 2005

Saiba mais - Bibliografia

CASCUDO. Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global. 2001.

FERNANDES. F. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo, São Paulo: Martins Fontes. 3ª ed. 2004. KISCHIMOTO. T. M. Jogos tradicionais infantis, o jogo, a criança e a educação. Petrópolis: Vozes. 1993. MELLO, Thiago. Arte e ciência de empinar papagaio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

Saiba Mais: Link

Especial - Canudos - Órfãos do ódio

A memória afetiva da escravidão

De braços dados e cruzados

Mensagensdo abandono