“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Presidentes da 1ª República - Arthur Bernardes - Washington Luís

O homem forte do Catete
Governando em período de grande instabilidade política, Arthur Bernardes conduziu o país sob estado de sítio.
Fabiano Vilaça dos Santos
     Ele era "alto, esguio, de nariz aquilino, testa larga". Seus "olhos castanhos, pequenos e irrequie­tos lhe boiavam no rosto com­prido", segundo a descrição de um contemporâneo. Mineiro, percorreu firme e paciente o ca­minho para a Presidência da Re­pública. Mas chegou em mo­mento político extremamente agitado. Era a década de 1920, tempo do movimento tenentista, da Revolução Libertadora no Rio Grande do Sul (1923) e da Revolução Paulista de 1924. E de medidas drásticas. Não foi à toa que o país permaneceu em esta­do de sítio - suspensão de garan­tias constitucionais em nome da ordem pública - durante quase todo o mandato presidencial (1922-1926).
     Arthur da Silva Bernardes nas­ceu em Viçosa, na Zona da Mata mineira, em 8 de agosto de 1875. Quarto dos oito filhos do portu­guês Antônio da Silva Bernardes, advogado provisionado (sem di­ploma), e de Maria Aniceta Pinto Bernardes, teve uma infância mo­desta. Em 1887, foi matriculado no tradicional Colégio Caraça, de onde saiu dois anos depois por falta de recursos. Com 14 anos, foi trabalhar na firma Pena & Graça, que negociava café e, mais tarde, na Casa Adriano Telles & Cia., co­mo guarda-livros (contador).
     Voltou a estudar no Externato do Ginásio Mineiro, em Ouro Preto, colaborando no jornal Aca­demia. Em 1896, matriculou-se como ouvinte na Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais, fun­dada em 1892. No quarto ano do curso, Bernardes se transferiu pa­ra a Faculdade de Direito de São Paulo. Para se manter, trabalhou como revisor no jornal Correio Paulistano, estafeta (mensageiro a cavalo) dos Correios e professor de português e latim.
     Formado em 1900, voltou para Viçosa e abriu um escritório. Foi quando uma situação insólita se instalou em sua casa. Nessa épo­ca, seu pai já era promotor da co­marca e toda vez que Bernardes atuava como advogado de defesa os dois ficavam em lados opostos. Para acabar com o impasse, Antô­nio Bernardes se exonerou e pas­sou a trabalhar com o filho.
     Em 15 de julho de 1903, casou-se com Clélia Vaz de Melo, com quem teve oito filhos. O enlace foi a porta de entrada de Bernardes na política. Seu sogro, o senador Carlos Vaz de Melo (1842-1904), era homem influente em Viçosa. E, ao contrário do que se poderia pensar, logo após sua morte a car­reira do genro deu um salto. Eleito presidente da Câmara Municipal, em 1905, recusou o cargo prefe­rindo trabalhar como advogado, mas o assumiu no ano seguinte. Deputado estadual em 1907 e fe­deral em 1909, pelo Partido Republicano Mineiro (PRM), seu prestígio político se consolidou ao se aproximar das principais oligarquias do país que apoiavam a candidatura do marechal Hermes da Fonseca à Presidência.
     Depois de ocupar a Secretaria de Finanças de Minas e de exercer mais um mandato de deputado estadual, Arthur Bernardes deu um importante passo na carreira: chegou à presidência de seu esta­do (1918-1922). Em um banque­te, fez um discurso defendendo que "a nenhum estado deve ser lí­cito sonhar com a hegemonia po­lítica na Federação", e o café, "termômetro de nossa situação eco­nômica". Uma de suas principais realizações foi a criação, em 1922, da Escola Superior de Agricultura e Veterinária, embrião da Univer­sidade Federal de Viçosa. Nessa época, deu provas do forte nacio­nalismo que marcaria sua futura gestão no Catete, ao recusar um contrato com a empresa Itabira Iron para exportar ferro do vale do rio Doce.
     Os anos de 1921 e 1922 foram de acirrada disputa pela sucessão de Epitácio Pessoa (1919-1922). Inicialmente, o paraibano foi con­tra a ideia de Minas eleger mais um presidente, pois desejava que seu sucessor viesse de algum esta­do do Norte. Para obter o apoio desta região à candidatura de Arthur Bernardes, segundo a his­toriadora Cláudia Viscardi, as oli­garquias mineiras se comprome­teram com a continuidade das obras iniciadas pelo "Pitaço" e es­peraram o apoio dos gaúchos e do Rio de Janeiro. Mas a corrida pre­sidencial exigiria fôlego. Enquan­to Epitácio e os paulistas aderiram ao nome de Bernardes, Rio Gran­de do Sul, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro apostaram em Nilo Peçanha, que encabeçou a chapa da "Reação Republicana". Para in­crementar a disputa, entrou em campo um terceiro concorrente: Hermes da Fonseca. Eleito presi­dente do Clube Militar, o mare­chal foi apontado como mentor de um estratagema para minar a indicação do mineiro: o episódio das "cartas falsas", publicadas no jornal Correio da Manhã - pró-Nilo -, em 1921.
     Uma das cinco missivas "assi­nadas" por Arthur Bernardes e enviada a Raul Soares (1877-1922), então presidente de Mi­nas, dizia: "estou informado do ridículo e acintoso banquete da­do pelo Hermes, esse sargentão sem compostura, aos seus apaniguados (...) Espero que use com toda energia, de acordo com as minhas últimas instruções, pois essa canalha precisa de uma re­primenda para entrar na discipli­na..." O objetivo das "cartas fal­sas" era indispor os militares com Bernardes. O clima entre a oficia­lidade, em plena agitação tenentista, favorecia o plano. Além dis­so, o próprio Hermes da Fonseca buscava apoio entre alguns setores da política mineira para sua candidatura, o que reforçou as suspeitas da autoria das cartas.
     A imprensa não perdeu a oportunidade de satirizar a dispu­ta presidencial. Os partidários de Nilo Peçanha pularam o Carna­val de 1922 cantarolando a marchinha "Ai, Seu Mé!", de Freire Júnior (1881-1956) e Luiz Nunes Sampaio (1886-1952), o Careca. A letra fazia referência a dois apelidos de Bernardes, "Seu Mé" e "Rolinha": Ai Seu Mé/ Lá no Palácio das Águias, olé!/ Não hás de por o pé.../ O Zé Povo quer a goiabada campista./ Rolinha desista/ Abaixa esta crista.../Embora se faça uma bernarda a cacete,/ Não vais ao Catete! Não vais ao Catete!
     Mas, apesar de toda a oposi­ção, a adesão de São Paulo garan­tiu a vitória do "Seu Mé" por 466.877 votos. Para vice, foi esco­lhido o maranhense Urbano San­tos (1859-1922), que morreu dois meses depois de eleito, sendo substituído, em novo pleito, pelo pernambucano Estácio de Albu­querque Coimbra (1872-1937). Bernardes tomou posse em esta­do de sítio devido ao Levante dos Dezoito do Forte, no final do governo de Epitácio, e percebeu que para conter as oposições e manter a or­dem teria que ser enérgico.  Seus métodos, considerados violentos e arbitrários pelos adversários, deram origem ao "bernardismo".  Exemplo disso foi o envio de políticos, líderes ope­rários, militares re­beldes e todos que conspiravam contra a ordem pública para a colónia agrícola de Clevelândia, criada em 1922 no Pará.
     Os momentos de turbulência não tardaram. Movimentos ex­plodiram pelo país expressando ora a cisão entre as oligarquias dos estados ora a per­da de apoio do governo federal. No primeiro caso está a disputa en­tre grupos políti­cos gaúchos - a Revolução Libertadora de 1923 -, em que o estancieiro Assis Brasil (1857-1938) se opôs ao governo estabelecido de Borges de Medeiros (1863-1961). O go­verno federal interveio e a con­tenda terminou em dezembro com a assinatura do Tratado de Pedras Altas.
     Quando os ânimos pareciam serenar, os paulistas deram voz à sua insatisfação. Presidente e cafeicultores - aliados na campanha - andavam às turras por causa dos rumos da política em relação ao café (o governo segurava as expor­tações para especular com o preço e deixava os pro­dutores sem capi­tal para reinvestir na lavoura). Por outro lado, a ma­nifestação do "ber­nardismo" fez com que militares de São Paulo articu­lassem um movi­mento armado que começou no dia 5 de julho de 1924. Sob o co­mando do general Isidoro Dias Lopes (1865-1949), a capital do estado foi tomada, le­vando o governo federal a decretar estado de sítio e ordenar o bom­bardeio, inclusive aéreo, da cidade. Os paulistas exigiam as reformas propostas pelo movimento tenentista: voto secreto, ampliação do ensino primário obrigatório e limitação do poder do Executivo, em clara oposição ao "bernardismo". O episódio de 1924 foi a cha­ve para outro importante movi­mento tenentista: a Coluna Pres­tes, que teve como principais líde­res Luiz Carlos Prestes (1898-1990) e Miguel Costa (1885-1959). De 1925 a 1927, a Coluna - formada por militares rebeldes - percorreu o país em aberta oposi­ção ao governo.
     Se no plano interno a ordem foi garantida por meio de medi­das repressivas, a política externa de Arthur Bernardes não foi me­nos incisiva. Em 1926, após a bem-sucedida missão de Afrânio de Melo Franco (1870-1943) na V Conferência Pan-Americana, no Chile, quando foi discutido um programa de desarmamento dos países da América do Sul, o presi­dente encarregou o conterrâneo de chefiar a delegação brasileira na Liga das Nações, da qual o país se retirou por não concordar com a entrada da Alemanha.
     Ao deixar o Catete em 1926, sob protestos e acusações de au­toritarismo, "Rolinha" assumiria um lugar no Senado no ano se­guinte. Mas preferiu bater asas rumo à Europa para respirar ares menos carregados e só tomou posse em 1929. Na volta, encon­trou o país em ebulição. O des­contentamento político reinava e um clima de revolução pairava sobre o governo de Washington Luís (1926-1930). Setores da po­lítica mineira estavam dispostos a aderir ao movimento que vinha do Sul, comandado por Getúlio Vargas (1882-1954). Bernardes o apoiou acreditando que o líder gaúcho garantiria a ordem públi­ca e conduziria o país à legalida­de convocando uma constituinte logo após chegar ao poder.
     Suas expectativas foram frus­tradas, mas o ex-presidente conti­nuou defendendo a legalidade aliando-se às forças mineiras na Revolução de 1932. Por causa dis­so, tornou-se uma pedra no sapa­to do novo governo que tentou afastá-lo do cenário político nomeando-o para uma embaixada. A oferta foi recusada e Bernardes passou a sofrer perseguições e ameaças de devassa nas contas de sua gestão. Acabou forçado a par­tir para o exílio, em Lisboa. No momento do embarque, seus ini­migos políticos ainda atentaram contra sua vida, mas o tiro atin­giu, sem gravidade, Arthur Ber­nardes Filho. O episódio nunca foi devidamente esclarecido.
     O afastamento durou até a abertura dos trabalhos para a ela­boração da Carta de 1934, quan­do foi eleito deputado consti­tuinte. Com o golpe que inaugu­rou o Estado Novo, em 1937, foi cassado e ficou fora da vida pú­blica até o fim da ditadura de Vargas, em 1945. No ano seguin­te, elegeu-se deputado constituinte. Ainda foi suplente no Parlamento em 1950, e, quatro anos depois, deputado federal.
     Na manhã do dia 23 de março de 1955, uma quarta-feira, Arthur Bernardes sofreu um infarto. Ti­nha 79 anos e estava em pleno exer­cício do mandato de deputado. Faleceu pouco antes das 15 horas e foi enterrado no Rio de Janeiro com honras de chefe de Estado. Em sua conturbada passagem pe­la Presidência, desmentiu a profe­cia de Epitácio Pessoa (citada pela historiadora Isabel Lustosa) lan­çada em maio de 1922: "ele não aguentará 24 horas no Catete".
Fabiano Vilaça dos Santos é doutorando em História Social na USP e pesquisador em Nossa História.
Fonte: Revista Nossa História - Ano III nº 36 – Outubro 2006


O paulista de Macaé
Legítimo representante da oligarquia paulista, o fluminense Washington Luís enfrentou a Revolução de 1930 e criou o lema "Governar é abrir estradas"
Nívia Pombo
     Sexta-feira, 24 de outubro de 1930. Washington Luís vivia suas últi­mas horas como presidente da República. Pelos belos salões do Palácio Guanabara, caminhava impaciente de um lado para outro, retrucando aos poucos amigos que lhe restara: "Eu não renuncio!... Só aos pedaços sairei daqui!...". Convencido de que teria o mesmo apoio popular, quando de sua elei­ção em 1926, nem imaginava que, do lado de fora, uma multidão in­dócil dava vivas à "revolução", aguardando ordens para bombar­dear a sede do governo. Seu man­dato estava sendo prematuramen­te interrompido, assinalando o fim da era "café com leite".
     Washington Luís Pereira de Souza nasceu em Macaé, cidade do litoral norte do Rio de Janeiro, em 26 de outubro de 1869. São escassos os registros sobre sua in­fância. Primogênito dos quatro filhos do tenente-coronel Joa­quim Luís Pereira de Souza e de Florinda Ludgera de Sá Pinto Ma­galhães, pertencia a uma família de proprietários de engenhos de açúcar que gozava de grande prestígio político no Império.
     Prestígio que não impediu que a família passasse por dificuldades financeiras. Antes da abolição da escravidão em maio de 1888, seu pai libertou todos os seus escravos. Apesar de prometerem a permanência até o fim da colheita, os al­forriados abandonaram a proprie­dade, deixando a família em ruína. A esta altura "Chinton", como era chamado pelos familiares, já havia passado pelos colégios Pe­dro II e Augusto, no Rio de Janei­ro. Em 1889, ingressou na Facul­dade de Direito de São Paulo, mas se transferiu para a Faculdade de Direito de Recife, com o intuito de terminar o curso em três anos. A falta de recursos da família preo­cupava Washington e seus irmãos, como mostra a carta de seu irmão Lafaiete, de 8 de outubro de 1888: "Papai disse que o Chico não estu­da mais, nem este ano, nem outro, porque não há meios".
     "Chinton" não foi um estudan­te exemplar. Boêmio, preferia os passeios pela capital pernambuca­na a dedicar-se às leituras que o curso exigia. Era perito em jogar bilboquê, brincadeira que pertur­bava a concentração de Otávio Costa, seu colega de quarto. Às vés­peras das provas, decorava a matéria de madrugada e, assim, conseguia boas notas. Em outubro de 1891, voltou a São Paulo para prestar os exames finais, bacharelando-se no mesmo ano. Com a ajuda de familiares, foi nomeado promotor de Barra Mansa, no Rio de Janeiro, mas, insatisfeito com o salário, em 1893 se transferiu para Batatais, São Paulo, onde abriu um escritório de advocacia.
     Frequentava bailes carnavales­cos, teatro e tinha um gosto espe­cial por óperas, especialmente pelas composições do italiano Giuseppe Verdi (1813 -1901). Mas não só a música italiana acalenta­va o seu coração: desde jovem, mostrava fraqueza com as italia­nas. Segundo João Lima, autor de Como vivem os homens que gover­naram o Brasil, nos tempos de fa­culdade, "Chinton" teve "os senti­dos perturbados por uma atriz ita­liana, de nome Gisela, rapariga de rara sedução". Em maio de 1928, já no governo, um caso com uma marquesa italiana quase acabou em tragédia: após um jantar, a jo­vem, por ciúme, teria atirado em Washington, ferindo-o no ventre. A imprensa tentou abafar o caso, informando que o presidente ha­via sido internado às pressas para a retirada do apêndice. Mas os ru­mores aumentaram, quando, dias depois, a moça se suicidou.
     Fazia o tipo sportsman: partici­pava de ralis automobilísticos em Santos e no Vale do Paraíba e, em 1919, fez seu batismo aéreo, levan­tando voo num avião Sopwith, em Guarulhos. Nas horas de folga era historiador. Publi­cou dois estudos a partir de suas pes­quisas no Arquivo Público de São Paulo: Contribuições para a história da capitania de São Paulo. Gover­no Rodrigo César Meneses (1904) e Testamento de João Ramalho (1905). Jovem, já era tido como elegan­te e inteligente, só faltava mesmo o respeito no círculo político pau­lista. Isso ele conseguiu casando-­se, em 4 de março de 1900, com a filha dos barões de Piracicaba, So­fia Paes de Barros (1877-1934). A moça também apreciava música clássica e canto.  Tiveram quatro filhos: Florinda Maria (1901), Rafael Luís (1902), Caio Luís (1905) e Vítor Luís (1907).
     Membro do Partido Republi­cano Paulista, sua carreira políti­ca teve início em 1904, ao ser eleito deputado estadual. Dois anos depois, com a ajuda da so­gra, foi nomeado para a Secre­taria de Justiça com a missão de reformar as polícias civil e mili­tar. Entre outras medidas, estabe­leceu a obrigatoriedade do diploma de advogado para os delega­dos de polícia. Nesse período, ao colocar detentos para trabalhar na reconstrução da via São Paulo-Santos, cunhou o lema: "Governar é abrir estradas".
     Após deixar a Secretaria de Jus­tiça, em maio de 1912, foi eleito deputado estadual e, por dois man­datos consecutivos, prefeito de São Paulo. Em 1919, se candidatou ao governo do estado. Eleito, cum­priu as promessas de campanha: manteve a velha política de valori zação do café e construiu cerca de 1.326 quilómetros de estradas. Na área cultural, fundou o Museu Histórico Republicano de Itu (1923) e incentivou projetos histó­ricos sobre o passado paulista.
     Sua indicação para a Presidên­cia da República resultou, mais uma vez, de um consenso entre Minas Gerais e São Paulo. No en­tanto, desde a eleição de Epitácio Pessoa, em 1919, representantes de outros estados exigiam uma maior democratização do processo, queixando-se da alternância "café com leite" na Presidência. À revelia dessas discussões e sem concorren­tes, foi eleito com 688.528 votos. Ao tomar posse em 15 de novem­bro de 1926, foi recebido calorosa­mente por uma multidão no Rio de Janeiro. No mesmo dia, mon­tou o novo ministério, escolhendo nomes que não ameaçassem o po­der presidencial. Ironia do destino, entre os indicados figurava Getúlio Vargas para a pasta da Fazenda.
     Uma das primeiras medidas do novo governo foi a aprovação da reforma monetária, proposta por Júlio Prestes de Albuquerque. A intenção era fixar a taxa de câmbio e proteger a indústria nacional. Previa-se até a implanta­ção de uma nova moeda, o cruzei­ro. Inicialmente, o governo de "Chinton" parecia ser um refrigé­rio para as almas brasileiras: as me­didas de exceção, implementadas por Arthur Bernardes, ao poucos eram suspensas. Libertou presos políticos, desativou presídios como o da Clevelândia, e, em janeiro de 1927, autorizou a legalização do Partido Comunista do Brasil (PCB).
     Mas a abertura tinha lá as suas limitações. Os pedidos de anistia, como aos envolvidos no movi­mento de 1922, no Forte Copaca­bana, foram negados. A polícia secreta acompanhava de perto a movimentação da Coluna Pres­tes, que neste momento se en­contrava exilada na Bolívia. Fo­cos de oposição foram silencia­dos com a "Lei Celerada", que res­tabeleceu a censura à imprensa e recolocou o PCB na ilegalidade. Em São Paulo, com o apoio dos tenentes, foi criado o Partido Democrático (PD), que defendia o voto secreto e a moralização do processo eleitoral.
     Instabilidade interna e externa. Em 1929, a crise econômica defla­grada com a quebra da Bolsa de Nova York provocou um forte abalo na economia brasilei­ra. Desesperados, os cafeicultores exigiram que o governo federal comprasse a produção excedente. Washington Luís negou, pois te­mia a desvalorização da moeda. Tudo que conseguiu foi angariar novos inimigos. Por intermédio do Instituto Paulista de Defesa do Café, os oligarcas ameaçaram: "O lema é a lavoura, hoje com o go­verno. Se não formos atendidos, amanhã será [...] a lavoura contra o governo". O crack da Bolsa im­pediu também a implementação do cruzeiro. A crise serviu de ins­piração para o compositor Eduardo, autor de "É sim sinhô": "Ele é paulista? É sim senhor. / Falsificado? É sim senhor. [...] / Ele é estradeiro? É sim senhor. [...] / Mas o cruzeiro? É sim se­nhor. / Ovo gorado? É sim senhor..."
     Por fim aconteceu uma crise política provocada pelas discor­dâncias na escolha do sucessor de Washington Luís. Contrariando os mineiros, que pretendiam in­dicar o vice-presidente Fernando de Mello Vianna, "Chinton" op­tou por apoiar o candidato pau­lista, Júlio Prestes de Albuquerque. Irritado, o presidente de Minas, Antônio Carlos Ribeiro, procurou alianças com Getúlio Vargas. Apesar dos apelos de Washington Luís para conven­cer os líderes gaúcho e mineiro a desistirem da empreitada, em se­tembro de 1929, a Aliança Liberal lançou a candidatura de Getúlio, tendo como vice o presidente da Paraíba, João Pessoa.
     Washington Luís jogou duro: ordenou a execução das dívidas de Minas e da Paraíba com o Banco do Brasil e impediu que os mineiros pedissem empréstimos no exterior. Foi acusado também de fomentar conflitos locais nos dois estados com o objetivo de enfraquecer os governos. O can­didato oficial acabou levando vantagem: Júlio Prestes recebeu 1.115.377 votos contra os 782.663 de Getúlio Vargas.
     Acusado pela oposição de fraudar as eleições, Washington Luís sofreria ainda outro golpe. No Uruguai, um desastre aéreo, em maio de 1929, revelou que dois brasileiros tinham ido à Ar­gentina pedir o apoio de Luiz Carlos Prestes para depor o presi­dente. Um deles, Antônio de Siqueira Campos, morreu no de­sastre. O clima de conspiração aumentou, quando João Pessoa, presidente da Paraíba e candida­to derrotado, foi assassinado em Recife, no dia 26 de julho. O epi­sódio fortaleceu a Aliança Liberal, que, além das denúncias de fraude eleitoral, passou a cul­par o presidente pelo crime.
     O país ficou em polvorosa. Forças militares se levantaram no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais e na Paraíba. Na capital, o povo incendiou jornais favorá­veis ao governo. Tropas gaúchas lideradas por Vargas e pelo gene­ral Góes Monteiro marchavam para um confronto com os pau­listas. Em poucos dias foram derrubados os governos do Espírito Santo, Santa Catarina e Paraná. Nas regiões Norte e Nordeste, só escaparam o Pará e a Bahia. Infle­xível, Washington Luís não acre­ditava que Getúlio Vargas, seu amigo íntimo, o único que podia entrar fumando em seu gabinete, o estivesse traindo.
     Na manhã do dia 24 de outu­bro, uma esquadrilha sobrevoou a capital lançando panfletos infor­mando a queda do presidente. No final da tarde, após a visita do car­deal d. Sebastião Leme, ele aceitou se entregar como prisioneiro e não como renunciado. Conduzi­do ao Forte Copacabana, ficou preso até 21 de novembro, dia que embarcou com sua família rumo à Europa. O exílio durou até 1947, quando voltou ao Brasil. Fixou re­sidência em São Paulo, mas não se envolveu mais com a política, dedicando-se ao seu trabalho de his­toriador. Faleceu em 4 de agosto de 1957, vítima de complicações de uma gripe. Apesar do pedido de um funeral simples, sem hon­ras oficiais, uma multidão seguiu o cortejo com fortes demonstrações de carinho.
Nívia Pombo é mestre em História Social pela Universidade Federal Flumi­nense e pesquisadora de Nossa História.
Fonte: Revista Nossa História - Ano IV nº 37 – Novembro 2006

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Presidentes da 1ª República - Delfim Moreira - Epitácio Pessoa

Presidente por acaso
Chamado a governar no impedimento do presidente eleito, o vice Delfim Moreira não teve tempo nem disposição para realizações.
Fabiano Vilaça dos Santos
     Aos trin­ta minutos do dia 16 de janeiro de 1919, Rodrigues Alves, último conselheiro do Império eleito pre­sidente da República, faleceu víti­ma da implacável "Espanhola". Restou ao vice, Delfim Moreira, um mineiro sem aspirações à Presidência e tido por apático e desinteressado dos negócios de Estado, ocupar temporariamente o Catete. Seu governo, apelidado de "regência republicana" - em alusão às regências no Império -, durou apenas oito meses e 16 dias e foi marcado pelas negociações sobre quem seria o verdadeiro su­cessor de Rodrigues Alves e por uma onda de greves operárias.
      Delfim Moreira da Costa Ri­beiro nasceu em Cristina, sul de Minas Gerais, em 7 de novem­bro de 1868. Filho de Antônio Moreira da Costa (1842-1903) - português que tra­balhou como caixeiro antes de se tornar proprietário de terras - e de Maria Cândida Ribeiro (1844-1921), come­çou os estudos no Colégio Padre Francisco Fraissat, em Santa Rita do Sapucaí, passan­do depois para o Colégio Men­donça, na vizinha Pouso Alegre. Quando cursava Letras no tra­dicional Seminário de Mariana, "Delfinzinho" passou por uma experiência que se transformou em lição para os filhos. Conta a paren­te distante Luzia Rennó Moreira -realçando os valores do antepassa­do - que um dia, voltando para ca­sa acompanhado de um amigo, Delfim perdeu todo o dinheiro da­do pelo pai para as despesas da viagem. Para se refazer, foi à fazen­da da família do companheiro de seminário, recebendo de sua mãe um farnel para completar a jorna­da. Afoito, comeu toda a carne e deixou o restante, que se estragou, mas nem assim foi jogado fora. Por isso, toda vez que um filho re­clamava da comida, Delfim repe­tia: "comam, meninos, nada faz mal, pois não estão vendo que quem comeu até arroz azulado aqui está rijo e forte!".
     Em 1886, após os preparató­rios no Colégio Joaquim Carlos, em São Paulo, entrou para a Fa­culdade de Direito do Largo de São Francisco. Republicano con­victo, declamava trechos do Mani­festo Republicano de 1870 e repe­tia de cor os nomes dos seus signa­tários. Militante, criou com os amigos Pinto de Moura e Estevão Lobo Leite Pereira, em 1888, os jornais Vinte e Um de Abril e República Mineira, participando também da fundação do Clube Republicano Acadêmico Mineiro, ao lado do primo Wenceslau Braz e de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada. Formado em 1890, casou-se no ano seguinte com Fran­cisca Ribeiro de Abreu (1873-1965), sua prima, com quem teve seis filhos. Construiu sua carreira entre Santa Rita do Sapucaí e Pouso Alegre, como promotor público e juiz. Mas logo a política seduziria definitivamente o mineiro "alto, magro, de bigode dis­creto e bem aparado", descrito pe­lo historiador Fábio Koifman.
     Eleito vereador em Santa Rita do Sapucaí, ocupou a presidência da Câmara municipal e foi depu­tado estadual entre 1894 e 1906. Neste ano, convidado para a secre­taria do Interior de Minas, preferiu uma vaga no Senado. Mas, em vez de comemorar a ascensão política, caiu em depressão - tinha 38 anos e acreditava que senadores deviam ser mais velhos e experientes. Re­colhido em uma propriedade da família, passou meses se "transfor­mando" em um homem à altura do cargo: não cortava os cabelos nem aparava a barba. Quando vol­tou para casa, disse a d. Maria Cândida: "Venha, minha mãe, cor­tar os cabelos deste velho senador". Estava pronto para tomar posse, dois anos depois de eleito.
     Em 1914, chegou à presidência de Minas pelo Partido Republica­no Mineiro (PRM) e concentrou esforços em duas áreas considera­das vitais: instrução pública e de­senvolvimento agrário. Para tanto, criou escolas técnicas e estimulou a imigração - com a República, a po­lítica de incentivo à vinda de es­trangeiros ficou a cargo dos esta­dos. Alertado por seu secretário de governo, Raul Soares de Moura, sobre os altos empréstimos para a promoção do ensino e da agricul­tura, Delfim teria dito: "Quando em Minas não houver um analfa­beto e na terra fertilíssima toda a gente souber manejar uma ferra­menta, haverá trabalho para todos, e com ele prosperi­dade, bem-estar e riqueza", conta Lu­zia Rennó Mo­reira. Mais que ex­pressões de um go­vernante preocu­pado com seu esta­do, suas palavras refletem o estágio de desenvolvimento da economia brasileira, ainda muito dependente da produção agrícola.
     Delfim ficou mais perto do Catete quando as principais oligar­quias do país começaram a deba­ter a sucessão de Wenceslau Braz (1914-1918). São Paulo se esfor­çava para emplacar a candidatura de Rodrigues Alves, considerado o político ideal para guiar o país na conjuntura do final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e le­var adiante o esforço de recupera­ção econômica promovido por Wenceslau (ver Presidentes da 1ªRepública - Wenceslau Braz). Rodrigues Al­ves tornara-se res­peitado por ter se destacado como ministro da Fa­zenda em dois momentos críti­cos: durante a "crise do encilhamento" e na for­mulação do acordo financeiro conhecido como funding loan (ver Presidentesda 1ª República - Campos Salles).
     Em meio às negociações entre os líderes dos estados interessados na sucessão, o nome de Delfim Moreira chegou a ser cogitado por Nilo Peçanha, presidente do Rio de Janeiro, e por Francisco Antônio de Salles, influente político minei­ro. Mas, segundo a historiadora Cláudia Viscardi, a indicação não emplacou nem mesmo em Minas, tanto que o nome de Rodrigues Alves foi acolhido pelo grupo di­verso de Francisco de Salles após contatos entre o presidente de São Paulo, Altino Arantes (1876-1965), e o mineiro Sabino Barrozo (1859-1919), ex-ministro da Fazenda.
     A indicação de Rodrigues Alves para presidente e Delfim Moreira para vice acabou sendo uma solu­ção de conciliação entre paulistas e mineiros. De qualquer modo, nas fontes consultadas não há qual­quer indício de que Delfim tenha se entusiasmado quando seu nome foi apontado como possível candi­dato à Presidência, o que reforça a imagem de um governante indis­posto com o cargo. As eleições aconteceram em 1º de março de 1918, ficando a posse marcada pa­ra 15 de novembro. A vitória de Rodrigues Alves apenas confirmou as negociações entre as principais oligarquias do país, mas nos basti­dores do poder corria à boca miú­da que o conselheiro em breve en­tregaria a alma ao Criador - alguns achavam que ele morreria antes da posse. O que por pouco não acon­teceu. Com a saúde frágil desde a presidência de São Paulo (1912-1916) e prestes a completar setenta anos, Rodrigues Alves não resistiria à gripe espanhola contraída menos de um mês antes da posse.
     Declarando-se impedido de ocupar o cargo, o conselheiro se dirigiu, em carta, ao Congresso Nacional e conclamou Delfim Moreira a assumir como vice-presidente em exercício, conforme a Constituição. O fardo indesejável começava a pesar nos ombros do mineiro que, aos cinquenta anos, também não era saudável - consta que sofria havia alguns anos de um tipo de arteriosclerose. Mas a mor­te de Rodrigues Alves não lhe dei­xou alternativa. Delfim teve que governar até a realização de nova eleição, o que segundo a Carta de 1891 deveria acontecer em um ano.
     Os aborrecimentos não foram poucos nos oito meses de gestão, a começar pelos enfrentamentos com a equipe ministerial, montada pelo presidente moribundo, que não lhe foi amigável nem lhe deu paz. Antes mesmo da morte do conselheiro, o potiguar Amaro Cavalcanti (1851-1922), ministro da Fazenda, e o mineiro Afrânio de Mello Franco (1870-1943), da Via­ção e Obras Públicas, já andavam às turras disputando quem man­dava mais no governo. Diante da briga de egos, Delfim tomou uma resolução firme, talvez a única no período: ou governava com minis­tros "mais dóceis" ou se retirava para Minas. A solução foi a substi­tuição do titular da pasta da Fa­zenda, no dia seguinte à morte de Rodrigues Alves, pelo mineiro João Ribeiro (1863-1933), amigo do vi­ce-presidente em exercício. O "vencedor" da contenda, Afrânio de Mello Franco, tornou-se o ho­mem forte do país, pois o enfadado Delfim deixou para o conterrâneo a responsabilidade das decisões. Por isso, aqueles oito meses tam­bém ficaram conhecidos como o "consulado Mello Franco".
     Apaziguados os ânimos no mi­nistério, 1919 reservava dissabores mais do que suficientes para um presidente que não teve tempo nem disposição para realizações - o senador gaúcho Soares dos San­tos chegou a dizer que Delfim era homem de "inteligência abaixo do medíocre e tão incompetente co­mo nulo". Os acontecimentos mais relevantes se resumiram às obras de remodelação da capital promo­vidas pelo prefeito Paulo de Fron­tin (1860–1933). 
     O país vivia um clima de in­tranquilidade gerado por inúme­ras greves operárias, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, in­tensas desde 1917. E para isso con­tribuiu a ação de anarquistas e de comunistas, em muitos casos es­trangeiros que chegaram no período da Grande Imigração.  Além da atuação nas paralisações, os libertários di­vulgavam suas ideias em diversos jornais operários e fundaram, em junho de 1919, um Partido Comu­nista do Brasil. A mobilização dos trabalhadores por direitos, como a jornada de oito horas diárias de trabalho, levou a manifestações de peso. Nas comemorações do 1º de maio de 1919, segundo fontes ope­rárias, mais de 50 mil trabalhado­res teriam se reunido na Praça Mauá, na zona portuária da capi­tal. Cinco dias depois, lideranças proletárias apresentaram uma pe­tição a Delfim Moreira, cobrando uma posição do governo sobre a jornada de oito horas. Em res­posta, o presidente encaminhou uma mensagem ao Congresso que nomeou uma Comissão de Legislação Social. Mas as greves continuaram pressionando os patrões e o governo, que reagiu com prisões e deportações de anarquistas e de comunistas.
     Além da conturbada situação socioeconômica, nos corredores do poder negociava-se a indicação do verdadeiro sucessor de Rodri­gues Alves. Rui Barbosa ou Epitá­cio Pessoa? Depois da morte do conselheiro, São Paulo desejava emplacar a candidatura de Altino Arantes. E Minas, que se achava na si­tuação com Delfim, não queria que os paulistas tomassem a dian­teira. Como mostra Cláudia Viscardi em importante trabalho de revisão da "política do café-com-leite", a indicação de Rui Barbosa (1849-1923), apoiado por Rio, Ba­hia, Santa Catarina e Mato Gros­so, acabou enfraquecida, abrindo espaço à candidatura do paraibano Epitácio Pessoa (1865-1942). Desejado pelos mineiros e rejeita­do pelos paulistas, sua vitória foi possível graças à adesão do Rio Grande do Sul.
     Epitácio Pessoa, o verdadeiro sucessor de Rodrigues Alves, to­mou posse em 28 de julho de 1919. Mesmo depois de lhe entre­gar o cargo, Delfim continuava no direito de ser vice até 1922 e de ocupar a presidência do Senado. Mas, com a saúde abalada, decidiu encerrar a carreira política - sendo substituído por Francisco Álvaro Bueno de Paiva (1861-1928) - e voltar para Santa Rita do Sapucaí, onde ainda sofreu a perda da filha Alzira, em janeiro de 1920. Seis meses depois Delfim Moreira fale­ceu. Não havia completado um ano que deixara a Presidência.
Fabiano Vilaça dos Santos é doutorando em História Social na USP e pesquisador em Nossa História.
Fonte: Revista Nossa História - Ano III nº 34 – Agosto – 2006


Epitácio e o jeito brasileiro de governar
O paraibano Epitácio Pessoa tentou combater a seca do Nordeste, fez concessões a grupos políticos e foi acusado de uso da máquina administrativa em proveito próprio.
Nívia Pombo
    "Nunca aspirei à Presidência da República [...] porque a máquina política do país estava montada de tal maneira que ao represen­tante de um estado pequeno, co­mo a Paraíba, não era lícito levar tão longe a sua ambição." Ao dei­xar a Presidência, em 1922, Epi­tácio Pessoa tinha a certeza de ter realizado uma proeza a ser regis­trada nos livros de História do Brasil. Intelectual respeitado, orgulhava-se de sua posição neutra, independente de qualquer parti­do. Mas foi na Presidência que o paraibano descobriu que não se governava este país sem o apoio das oligarquias dos estados.
     Epitácio Lindolfo da Silva Pes­soa nasceu a 23 de maio de 1865, em Umbuzeiro, pequena localidade próxima à Serra do Cariri. Filho do coronel José da Silva Pessoa (1837-1873) e de Henriqueta Pereira de Lucena (1837-1873), era, tanto pe­lo lado paterno quanto materno, descendente de grandes senhores de terras e de escravos na Paraíba e em Pernambuco. Teve uma infân­cia simples de menino de enge­nho. Desde os cinco anos, acom­panhava o pai em longas viagens a cavalo pelo interior da província.
     Seus pais faleceram em 1873, vítimas da varíola. Órfão aos oito anos, foi enviado a Pernambuco, aos cuidados do tio, o desembar­gador Henrique Pereira de Luce­na, barão de Lucena (1835-1913). Figura de destaque no Império, Lucena governou Pernambuco, Rio Grande do Norte, Bahia e Rio Grande do Sul e, na República, foi ministro da Fazenda e conse­lheiro do marechal Deodoro da Fonseca. Severo, não se preocupou em acolher afetuosamente o sobrinho, matriculando-o no Gi­násio Pernambucano.
     Na escola, sua inteligência rendeu-lhe o apelido de "menino prodígio". Mas era um "génio indoma­do": vivia de castigo e só não era expulso por causa de suas excelen­tes notas. No último ano, ao tacar um biscoito num funcionário, foi trancado num quarto escuro, a pão e água, fugindo três dias depois. Em 1882 ingressou na Faculdade de Direito do Recife, sendo apro­vado do primeiro ao último ano com distinção e louvor.
     Para custear os estudos, dava aulas particulares, chegando a as­sumir o posto de promotor em Ingá, no interior da Paraíba. Franzino, mas com uma elo­quência ferina, chamava a aten­ção do povoado que se amontoa­va para assistir suas acusações. Em 1886, foi nomeado promotor público em Bom Jardim e, no ano seguinte, foi transferido para a comarca de Cabo. O início da carreira parecia promissor, mas uma contenda com um juiz local o levou a pedir demissão e em­barcar para o Rio de Janeiro.
     Na capital, Epitácio reencon­trou seu irmão mais velho, o te­nente José Pessoa - ajudante-de-ordem do presidente Deodoro (1889-1891) - e o tio, barão de Lu­cena. Com trânsito fácil no gover­no, foi designado secretário-geral da Paraíba, em 1889, dando início a sua carreira política. Em 1890 foi eleito à Assembleia Nacional Constituinte. No ano seguin­te, deputado federal pela Paraíba, fez oposição ao presidente Flo­riano Peixoto (1891-1894). Como ministro da Justiça e Ne­gócios Interio­res, no governo Campos Salles (1898-1902), ela­borou com o ju­rista Clóvis Bevi­lacqua o projeto do Código Civil. Procurador da República e minis­tro do Supremo Tribunal Federal (STF) entre os anos de 1902 e 1912, foi incumbido de preparar o Código de Direito Internacional.
     A esta altura, Epitácio já era viúvo de Francisca Justiniana das Chagas, a "Chiquita", que faleceu ao dar à luz um menino natimorto, em 1895. Três anos depois se casou com a carioca Maria da Conceição Manso Sayão. Segundo Oswaldo Trigueiro (1905-1989) - autor de A política do meu tempo -, "Mary", como era chamada, não estreitava laços com famílias paraibanas, dizendo que "dos sel­vagens paraibanos, o melhorzi­nho era mesmo Epitácio". Tive­ram três filhas: Laura, Angelina e Helena. Pai "coruja", brincava com as meninas, levando-as para parques, circos e cinema.
     Apesar de cultivar hábitos simples, como andar a pé e fazer compras nos armazéns próximos à residência de Petrópolis, Epitá­cio e a família costumavam pas­sar longas temporadas na Euro­pa. Nos finais de 1911, voltou de Paris com uma novidade: após uma cirurgia para a retirada da vesícula, resolve se aposen­tar do STF, aos 47 anos, sob a alegação de in­validez. Sem pu­dor, Epitácio ainda se conce­de vencimentos integrais. Em meio às críticas dos adversários - afinal viveu por mais trinta anos e chegou à Pre­sidência da Re pública -, voltou à Europa, mes­mo tendo acabado de ser eleito se­nador pela Paraíba (1912-1919).
    Com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o então mi­nistro das Relações Exteriores, Do­mício da Gama, convida Epitácio Pessoa para presidir a delegação brasileira à Conferência de Paz, em Versalhes. Acompanhado de nu­merosa comitiva - afinal, as despe­sas seriam pagas pelo erário públi­co -, seguiu para a França a fim de resolver duas questões: garantir que a Alemanha pagasse pelas 1.850.000 sacas de café destruídas nos ataques a navios brasileiros e que o Brasil restituísse - a preços módicos - os setenta navios ale­mães presos nos portos nacionais.
     A morte do presidente eleito Rodrigues Alves, em janeiro de 1919, mudaria o destino da Repú­blica. Desinteressado em assumir o mandato, o vice-presidente Del­fim Moreira, sem demora, convo­cou novas eleições. As elites dos principais estados, pegas de sur­presa, apresen­taram dificuldades em escolher um
sucessor.
     São Paulo queria o apoio de Minas para a candidatura de Altino Arantes, mas os mineiros propunham Arthur Bernardes e Afrânio de Mello Franco. Os gaúchos, sem nome para indicar, apenas vetavam os demais. Apolítica do café-com-leite parecia mais uma trans­bordante xícara de água quente.
     Reagindo às pretensões paulis­tas, Rio Grande do Sul, Rio de Janei­ro, Santa Catarina, Mato Grosso e Pa­rá formaram a "concentração de estados", com o aval de Delfim Moreira. Exigiam que o candidato fosse indicado numa Convenção, que de fato ocorreu em fevereiro de 1919. O nome de Epitácio foi lançado pelos gaúchos e apoiado pelos mineiros. São Paulo, contra­riado, apoiou Rui Barbosa.
     Epitácio Pessoa seria presidente da República, mesmo sem ter plei­teado o cargo. Fora do país, não fez campanha e, a despeito das acusa­ções de Rui Barbosa - que no "corpo-a-corpo" lembrava a aposenta­doria precoce do paraibano -, ga­nhou as eleições com 294.324 votos. Avisado por telegrama de que era o novo presidente, nem acreditou, e só voltou para casa dois meses depois. Suas viagens não passaram incólu­mes na imprensa. Em maio de 1919, a revista Careta publicou a quadrinha: "O papa que a nossa Pátria/ dedica amizade boa/ quando lá for o Epitácio,/ vai re­cebê-lo em pessoa".
     A gestão do paraibano foi conturbada. Tentou agradar, dividindo os ministérios entre paulistas, mineiros e gaúchos. Mas ao inovar, escolhendo civis para as pastas militares, arranjou foi confusão. Angariou a antipatia dos quartéis e, até o final do man­dato, a situação só piorou. O auge foi o episódio das "cartas falsas" - críticas ao marechal Hermes pu­blicadas na imprensa -, estopim para o Levante do Forte de Copaca­bana, ocorrido em julho de 1922.
     Outro barril de pólvora foi o mo­vimento operário. Epitácio herdara um país economi­camente equilibrado, graças à com­petência de Wen­ceslau Braz (ver Wen­ceslau Braz). O Brasil tinha aumentado sua atividade industrial e, de acordo com o Censo de 1920, possuía 13.346 fábricas, empregando cer­ca de 275 mil operários. Frente às exigências dos trabalhadores - co­mo a jornada de oito horas e a re­gularização do trabalho de meno­res e mulheres - o Legislativo mantinha-se inerte e o presidente, mostrando inabilidade para lidar com os protestos que se intensifi­cavam, fechava jornais, prendia e deportava líderes operários.
     Sem esquecer suas origens, Epi­tácio recordava-se das secas que atingiam a população nordestina. Com o apoio dos Estados Unidos, criou um pro­grama que previa a construção de açudes, barragens, poços, estradas de ferro e de rodagem. De custo elevado, o projeto para alguns deu origem à chamada "indústria da seca". Na imprensa, o uso de traba­lhadores debilitados pela fome foi motivo de piadas. Numa delas um matuto em Fortaleza, contemplan­do uma estátua de d. Pedro II, de­sabafou: "Papai Pedro mandava cozinhado e o Pitaço manda cru!" Lamentava que, ao contrário dos socorros oferecidos no Império, as obras de "Pitaço" levariam anos para serem concluídas.
     As obras do Nordeste custa­riam ainda mais caro ao "menino prodígio". Com o fim da guerra, o preço do café despencou no mer­cado internacional. Ameaçado pe­las bancadas dos estados, sobretu­do pelos paulistas, Epitácio con­traiu mais um empréstimo com os bancos londrinos e, pela terceira vez na República, implementou-se a política de valorização do café.
     A gestão foi marcada também por um saudosismo do Império. Em setembro de 1920, a visita dos reis da Bélgica fez a capital do país reviver dias de gala. Numa das festas, o rei Alberto I, sem saber, criou um constrangi­mento: presenteou a todos com condecorações, um dos símbolos da monarquia, porém objeto de aversão dos republicanos. Epitá­cio, já acostumado com esta honraria, autorizou o uso do mi­mo. A noite, o banquete foi dig­no de galhofas: ninguém sabia usar as insígnias.
     Epitácio revogou o decreto de 1889 que bania a família impe­rial. Determinou a transferência dos restos mortais de d. Pedro II e d. Teresa Cristina, que foram depositados num jazigo na Cate­dral de Petrópolis.
     No último ano do seu gover­no, o país comemorou o Cente­nário da Independência. Mesmo com os cofres públicos no verme­lho, o presidente fez questão de um grandioso espetáculo. O evento de maior destaque foi a Exposição Universal do Rio de Janeiro. Para edificar os pavi­lhões, demoliu-se parte do Mor­ro do Castelo. Na ocasião, a letra do Hino Nacional do Brasil, de Osório Duque Estrada, foi final­mente oficializada. Os festejos atraíram tanta gente que foi pre­ciso construir o Hotel Glória. A representação da Paraíba contava com tantos membros da família do presidente, que o comentário geral era: "Paraíba, terra boa/ Pouca gente, mas muitas pessoas".
     No último dia do seu governo, Epitácio despediu-se de cada um dos funcionários do Catete. De­sejou que seu sucessor, Arthur Bernardes (1922-1926), fizesse pelo Brasil, segundo suas pala­vras, "todo o bem que eu quis, mas não pude ou não soube fa­zer". Continuou ativo na política, mas não no Brasil: nomeado juiz da Corte Permanente da Justiça Internacional de Haia, seguiu pa­ra a Holanda, na manhã seguinte à posse de Bernardes. Em 1930, voltou ao país, após o assassinato do sobrinho João Pessoa (1878-1930), candidato a vice-presidente ao lado de Getúlio Vargas. Depois de mais uma temporada na Euro­pa, descobriu os primeiros sinto­mas do mal de Parkinson. Faleceu em 13 de fevereiro de 1942, em seu sítio, em Petrópolis.
Nívia Pombo é mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense e pesquisadora de Nossa História.

Fonte: Revista Nossa História - Ano III nº 35 – Setembro 2006