“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Doce lucro

A cana-de-açúcar reforçou o papel do Brasil na economia global e foi responsável pela invenção de uma nova sociedade. O negócio era ser “senhor”
     O Brasil colonial não nasceu do açúcar, mas do pau-brasil. Foi a famosa madeira, da qual se extrai um corante, que primeiro deu motivos aos portugueses para se estabelecer e explorar a terra a que tinham chegado em 1500. Porém, foi a introdução da cana-de-açúcar e a dos engenhos, com sua tecnologia para a produção de açúcar, as verdadeiras responsáveis por transformar a colônia três décadas depois desse primeiro contato. O açúcar foi a madrasta da colonização, que por quase dois séculos regeu a história econômica, social e política do Brasil. E, em algumas regiões, continua a dominar.
     Ao longo da costa brasileira – primeiro em São Vicente, Pernambuco e Bahia, depois no Rio de Janeiro e em outras áreas – foi no espaço dos engenhos que a sociedade colonial tomou forma. Essa nova sociedade era fruto da Europa medieval, a partir do conceito jurídico de estados ou ordens, com nobres e plebeus, pagãos e cristãos, cristãos-novos e cristãos velhos. Foi modificada ainda com as novas realidades americanas de etnias ou raças. A presença de índios e africanos, que tinham diferentes cores de pele, culturas, religiões e línguas, criava novas hierarquias.
     Os engenhos não erigiram essa pirâmide social, mas a reforçavam. Nessas verdadeiras indústrias, os brancos eram os donos da terra e das moendas. Os indígenas e depois os africanos eram a força de trabalho. E cabia aos brancos pobres, mulatos, mestiços e libertos os chamados “ofícios mecânicos”. Essas fazendas se transformaram no espelho e na metáfora da sociedade brasileira: os brancos nas mais altas posições, os negros (ou índios) na mais baixa, e as pessoas de raças misturadas, no meio. Gradações bem parecidas, aliás, com as da produção do açúcar: o branco como o mais valorizado; o de panela, escuro, e de menor valor; e o marrom, mascavo, no meio.
     Claro que sempre houve segmentos da sociedade que não estavam diretamente envolvidos na produção açucareira – como roceiros, boiadeiros, calafates (profissionais que vedam as frestas de uma embarcação) e sertanistas – mas era frequente, de um jeito ou de outro, que seus negócios (as plantações, o gado, as embarcações, os índios cativos) estivessem relacionados com a economia do açúcar. Até o surgimento de Minas Gerais como força econômica, era comum dizer que o Brasil era uma “sociedade e civilização do açúcar”.
     É fácil entender por quê. A produção do açúcar cresceu de forma rápida especialmente em Pernambuco e na Bahia. Em 1570, havia 60 engenhos no Brasil. Em 1630, eram 350 e produziam mais de 20 mil toneladas por ano. A riqueza estava sendo criada. No fim do século XVII, o lucro que a colônia dava a Portugal já era cerca de 50% maior que o seu custo de manutenção. Esse período de rápida expansão no século XVI, quando algumas fortunas foram criadas, foi possível em função dos altos preços do açúcar no mercado europeu. Já na década de 1620, guerras e retrações econômicas diminuíram as margens de lucro.   Embora os preços tenham subido novamente em 1640, o início da competição com o açúcar das ilhas caribenhas nas décadas seguintes acabou abaixando os valores novamente. Junto a isso, a demanda nessas ilhas por trabalho aumentou o custo dos escravos no Atlântico. No fim da década de 1680, os senhores de engenho no Brasil reclamavam que a indústria açucareira estava quase falindo. Mas as guerras europeias novamente mudaram as condições do mercado, e os produtores brasileiros outra vez ganharam confiança.
     Depois de 1670, o Brasil nunca mais dominou o mercado do açúcar no Atlântico da mesma maneira que antes, mas a indústria açucareira permaneceu lucrativa. Na maior parte do século XVIII, os senhores de um engenho bem administrado contavam com um lucro anual de 5 a 10%. E em algumas décadas, como a de 1790, os ganhos foram consideravelmente maiores que isso. Também é importante lembrar que, até no ápice da mineração de ouro no século XVIII, o valor da produção agrícola sempre excedeu o do garimpo. Mesmo quando Barbados, Jamaica e outras ilhas se tornaram grandes produtores de açúcar, o Brasil produzia mais do que todos eles. Apesar das rivalidades e competições entre si, o setor açucareiro – os senhores de engenho, os lavradores de cana, os mercadores que entregavam o açúcar – continuaram sendo uma força política na colônia.
     O Brasil se tornou uma colônia de sucesso porque a coroa portuguesa podia taxar a produção e o comércio de açúcar, e percebia que a indústria açucareira crescia principalmente a partir de investimentos privados. Enquanto isso foi verdade, a coroa portuguesa deu aos produtores de açúcar alguma liberdade. O crescimento da produção de açúcar foi acompanhado por outra mudança e, de alguma forma, só foi possível graças a ela: a questão da mão de obra indígena. Na primeira metade do século da produção brasileira, os povos nativos foram contratados ou forçados a trabalhar no campo. Mas a relutância de guerreiros em trabalhar na agricultura – que eles consideravam serviço de mulheres – as doenças epidêmicas da década de 1560, as guerras de resistência, as leis reais contra a escravização dos indígenas (de 1570, 1595 e 1609), além dos esforços dos jesuítas que exigiam um tratamento mais digno para os índios, tornaram muito caro e difícil o uso de trabalhadores indígenas. A resposta veio da África.
      Os escravos africanos eram caros, mas os portugueses acreditavam que eles eram mais produtivos que os índios, e menos propensos a fugir ou a morrer de doenças. “Sem açúcar, não há Brasil; sem a escravidão, não há açúcar; sem Angola, não há escravos”, era um dito comum que mostrava a centralidade do açúcar, da escravidão e da África para a existência da colônia. O que saiu daí foi o sistema de plantation, que ao fim se espalhou pelas Américas, de Luisiana a Barbados, como uma forma clássica de produção do açúcar e, depois, para o cultivo de café, cacau e outras monoculturas
     A escravidão fazia parte de todos os aspectos da vida brasileira, mas nas áreas do açúcar os escravos eram frequentemente 70% da população. A alta mortalidade e as baixas taxas de fertilidade dos escravos nessas áreas exigiam uma importação contínua de mais africanos – um fato que ajuda a explicar a presença e a persistência da cultura africana no Brasil. Quando o Conde de Arcos, governador da Bahia, reclamou com exasperação em 1760 que sua capitania era “uma terra de hotentotes [povo do sudoeste da África]”, ele estava reconhecendo a herança do açúcar.
     A influência do doce produto ultrapassava as porteiras dos engenhos. Quase todas as primeiras cidades brasileiras foram portos criados para exportar o açúcar e importar maquinário, materiais, comida e pessoas necessárias às moendas. Já a “incrível machina e fábrica”, como o padre Antônio Vieira chamou os engenhos, por sua vez, eram verdadeiras cidades: escravos, administradores, trabalhadores livres e artesãos se reuniam nas lavouras, o que reduzia a necessidade de pequenas vilas rurais e comunidades. As capelas, por exemplo, encontradas em muitos engenhos, serviam como centros da vida religiosa. Além disso, nos primeiros anos da colonização, os engenhos também tinham uma função defensiva contra ataques indígenas, ou seja, cada engenho era “uma nação dentro de si”, conforme comentou um contemporâneo. Outros observadores ressaltaram que, por estar tão diluído nesses pequenos pontos isolados, faltava ao Brasil colonial o senso de comunidade e coesão social.        
     Nas cidades verdadeiramente constituídas era possível encontrar ainda figuras importantes, como mercadores portugueses e estrangeiros, advogados, inspetores, fiscais de impostos e oficiais do governo. Essa aglomeração até alimentava as tensões entre engenho e município, senhor de engenho e mercador, mas pesquisas recentes têm mostrado que as elites urbana e rural estavam muitas vezes interligadas, e que a posse de um engenho era um objetivo social, não apenas uma atividade econômica. Os senhores de engenho insistiam em usar esse título porque ele significava autoridade senhorial. Eles raramente se autodenominavam “fazendeiros”. Como na famosa passagem de padre Antonil (pseudônimo do jesuíta italiano Giovani Andreoni, que viveu no Brasil entre os séculos XVII e XVIII): “é título [o de senhor] a que muitos aspiram, porque traz consigo a ser servido, obedecido e respeitado de muitos”.
     Muitos dos senhores de engenho tinham origem plebeia ou eram cristãos-novos (ou seja, descendentes de judeus), mas agora viviam e agiam como se pertencessem a uma aristocracia. Eles eram apoiados pelos lavradores de cana, que não tinham capital suficiente para ter seus próprios engenhos, mas que, ainda assim, cultivavam a cana-de-açúcar em suas propriedades ou em terras alugadas. Essa classe era característica da economia brasileira do açúcar. Entre esses lavradores havia desde homens ricos com alto status até pobres e dependentes. O certo é que a maioria era branca e quase todos desejavam possuir seu próprio engenho. Por volta de 1710, quando o Brasil tinha 525 engenhos, havia cerca de 450 famílias controlando-os, e em torno de 2 mil famílias de lavradores. Juntos, eles formavam a elite colonial. Mesmo que fossem frequentes as dívidas com mercadores da colônia, o setor açucareiro encantava estes comerciantes: até eles buscavam ganhar prestígio social para também se tornarem senhores de engenho.
     Conforme a indústria açucareira se desenvolveu, o campo se ajustou ao seu produto principal e às suas necessidades. Gado, lenha e farinha de mandioca estavam todos ligados ao mundo dos engenhos. E no centro de tudo estava a safra de nove meses, com a qual o engenho operava dia e noite, moendo a cana e consumindo a lenha e as pessoas para produzir açúcar e riqueza. “Um engenho de açúcar é o horror, e todos os seus senhores são malditos”, disse o jesuíta Andrés de Gouvea, na Bahia, em 1627. Padre Antônio Vieira fez uma comparação do caldeirão de cobre e da fumaça que subia das caldeiras com o inferno. Em um famoso sermão, ele equiparou os escravos do engenho à paixão de Cristo.
     Vieira era um realista, cujo irmão era dono de engenhos na Bahia. Ele conhecia bem a economia da cana. Sempre reconheceu que a riqueza do açúcar assegurava o crescimento do Brasil. O seu comércio garantia a Portugal a capacidade de se manter independente e de defender o seu império contra as ameaças de conquistas dos holandeses invejosos ou a absorção pela vizinha Castela. Mesmo que no fim do século XVII Vieira tenha reconhecido que a frota brasileira, às vezes, carregava “mais queixas que caixas”, ele, como as demais pessoas, viram que o açúcar moldou o corpo e a alma da colônia, suas virtudes e seus pecados, e deu importância ao Brasil dentro do império de Portugal e da economia global. Esse legado continuaria de diversas formas bem depois de o açúcar deixar de ser o principal produto brasileiro.

Stuart B. Schwartz é professor da Universidade de Yale (EUA) e autor de Segredos internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835 (Companhia das Letras, 1995).

Saiba mais - Filme
Menino de Engenho
O filme (uma adaptação do romance de José Lins do Rego) foi um dos maiores sucessos populares do Cinema Novo. Inaugurou a carreira do diretor Walter Lima Jr., que dirigiu o primeiro longa-metragem com produção de Glauber Rocha. 
O filme que aborda a infância do personagem Carlinhos em meio à fase decadente do “ciclo da cana-de-açúcar”, transcorre na Paraíba dos anos 1920, como testemunha do advento de modernas usinas de cana-de-açúcar. Carlinhos cresce acompanhando as consequentes transformações sociais e econômicas da produção canavieira. Após a morte de sua mãe, o menino vai viver com o avô e os tios no engenho Santa Rosa. Depois de conviver com os moleques e empregados dos canaviais e de sofre sucessivas perdas e readaptações afetivas, chega à hora de partir para o colégio e ele não é mais o garoto inocente que chegou. O trem que corta a campina paraibana é um signo das transformações por que passa a produção canavieira e, por extensão, a vida dos personagens.
Direção: Walter Lima Jr.
Ano: 1965
Áudio: Português

sábado, 22 de fevereiro de 2014

O amargo avanço da doçura

No rastro da disseminação de uma única planta, transformaram-se sociedades, paisagens e culturas.
     Com as campanhas de Alexandre Magno na Índia, e o retorno de alguns dos seus participantes, começaram a chegar à Europa notícias sobre a existência, no Oriente, de “uma espécie de bambu que produzia mel sem intervenção das abelhas, servindo também para preparar uma bebida inebriante”, nas palavras do historiador português Henrique Parreira.
     Era por volta de 327 a.C., e aquelas notícias inscreviam-se em um dos movimentos mais fascinantes da história da humanidade: a disseminação, entre os diferentes povos e regiões, da grande diversidade de plantas e animais existente nas diferentes regiões do planeta. A cana-de-açúcar se tornaria uma das protagonistas deste fenômeno. Até então desconhecida dos europeus, foi descrita a partir de elementos do mundo natural que eles então conheciam. Ela se parecia fisicamente com os bambus e produzia um líquido doce comparável ao mel.
     As primeiras notícias sobre a utilização da cana no Ocidente não mencionavam o açúcar. A extração do caldo da cana, assim como seu emprego para produzir “bebidas inebriantes”, marcou o início da sua presença nas sociedades humanas. Segundo pesquisas recentes, a Saccharum officinarum, espécie de cana dominante no mundo, é uma gramínea originária da região onde hoje se encontra a Papua Nova Guiné, na zona tropical do Oceano Pacífico, onde deve ter sido domesticada por populações tribais há mais de 7 mil anos. Não se sabe com precisão como se propagou na direção da Índia e da China, mas por volta do século IV a.C. ela era cultivada nessas regiões, inclusive com a manufatura do açúcar em escala reduzida. No século III a.C., fabricava-se na China, a partir da cana, um produto sugestivamente identificado pelos ideogramas “pedra” e “mel”.
     O primeiro grande impulso para transformar a cana-de-açúcar em um dos ícones do mundo moderno foi a sua disseminação para a Bacia Mediterrânica, a partir do século X. O movimento ocorreu através dos circuitos que conectavam a expansão árabe entre a Índia e a Europa. O açúcar da cana passou a ser produzido no norte da África, no sul da Península Ibérica e no sul da Itália. Era um mercado de escala reduzida, mas com ganhos significativos, voltado para o ornamento culinário dos muito ricos e para algumas práticas medicinais.
     A partir do século XV acontece um segundo impulso inovador, que ampliará enormemente o volume da produção e o alcance social do seu consumo.  De tal forma que no século XIX o açúcar já seria artigo de primeira necessidade para os trabalhadores e a classe média dos países em processo de urbanização e industrialização – um consumo frequentemente associado à difusão do café, do chá e do chocolate, que o antropólogo norte-americano Marshall Sahlins chamou de “drogas suaves” da modernidade.
     A indústria açucareira do Atlântico será responsável pela invenção da primeira commodity agrícola, ou seja, um produto cuja escala de produção e a cotação dos preços são definidas pelo mercado global. Para entender o desenvolvimento dessa nova etapa, é preciso considerar as características biológicas da planta e as especificidades físicas do produto. A ecologia original da cana-de-açúcar é profundamente tropical, o que delimitou sua difusão geográfica. O clima quente do Mediterrâneo até aceitou a aclimatação da cana, mas de forma limitada. Os colonizadores portugueses, em seu pragmatismo estratégico, aprenderam algumas lições sobre as restrições ecológicas de novos cultivos. Foi o caso, por exemplo, do fracasso da introdução do trigo, que exige uma espécie de clima temperado, no Nordeste do Brasil. Com o tempo, eles se especializaram em introduzir nas colônias atlânticas espécies originárias dos trópicos asiáticos e africanos. O pleno florescimento da produtividade da planta ocorreu quando ela foi levada para ilhas como a Madeira e as Canárias e, depois, com muito maior intensidade, ao Brasil e ao Caribe.
    A aceleração da produção de açúcar nas regiões de floresta tropical do “novo mundo” também está relacionada com um impacto social de enorme alcance: foi o principal estímulo para a construção do escravismo moderno. Foi nos territórios da América tropical que o modelo de produção de monoculturas e trabalho escravo gerou o maior impacto na ecologia das paisagens. Desde o início da agricultura, especialmente no contexto das civilizações complexas surgidas nos últimos 7 mil anos, o desflorestamento global concentrou-se nas florestas temperadas do hemisfério norte. O desmatamento tropical é um fenômeno moderno, que atingiu o seu auge no século XX. O Brasil e algumas ilhas do Caribe, como Cuba e Jamaica, tornaram-se os símbolos do desmatamento provocado pela cana. Mas ele se alastrou para várias outras regiões, como as Ilhas Maurício, Indonésia, Filipinas, Havaí e Fiji.
     Em seu livro Nordeste, de 1937, Gilberto Freyre apresentou a entrada da cana na região como “um conquistador em terra inimiga, matando as árvores, secando o mato, afugentando e destruindo os animais e até os índios, querendo para si toda a força da terra”. Mais de dois séculos antes, em 1711, o jesuíta Antonil já havia descrito a fórmula sintética do canavial como um impiedoso conquistador ecológico – “feita a escolha da melhor terra para a cana, roça-se, queima-se e alimpa-se, tirando-lhe tudo o que podia servir de embaraço”. A floresta tropical, com toda a sua diversidade, aos olhos dos produtores, representava apenas um “embaraço” para o avanço da cana. 
    É importante não sermos anacrônicos no julgamento dos agentes do desflorestamento tropical na formação do mundo moderno. Naquele contexto cultural e ecológico, no qual as matas pareciam infindas, eles fizeram uso dos fatores de produção com os quais contavam, montando um sistema bastante eficaz.  No Brasil, as variedades de cana introduzidas de fora estavam livres das doenças e dos parasitas que as atacavam em seus lugares de origem. Os solos da região, especialmente o massapé, revelaram-se propícios. A chuva abundante e contínua dispensava a necessidade de irrigação. As cinzas da biomassa queimada da Mata Atlântica fertilizavam o solo, dispensando a adubação. O esgotamento dos solos, após alguns anos de uso, era enfrentado com novas queimadas e com o avanço da fronteira econômica.
     E o impacto nas florestas não se devia apenas à abertura de terras para o plantio. Para cada quilo de açúcar produzido, cerca de 15 quilos de lenha eram queimados nas fornalhas que alimentavam os enormes caldeirões onde o caldo da cana era cristalizado. Para purgar o açúcar nas moendas, utilizava-se cinza de madeira, em muitos lugares retirada dos manguezais. O conjunto da infraestrutura estava calcado na madeira ou em materiais cuja produção requeria o uso de lenha em fornalhas – como tijolos, telhas e cal.  Das árvores tropicais provinham até as caixas onde o açúcar era acondicionado para exportação.
     No outro extremo da cadeia econômica, o açúcar transformava a ecologia do consumo. No mundo pré-moderno, a culinária pouco utilizava o sabor adocicado – era pontual o uso de mel, de sorgo doce, de frutas etc. O açúcar foi uma revolução. Por ser fácil de armazenar e transportar, além de adoçar sem modificar muito o sabor da comida, tornou-se o adoçante quase hegemônico. Apenas o açúcar de beterraba possui propriedades físicas semelhantes. Mas, após crescer com força na produção europeia do século XIX, chegando a gerar 65% do açúcar consumido mundialmente em 1900, a beterraba perdeu fôlego no século XX diante do vigor resistente da velha cana tropical. Hoje representa não mais do que 30% do consumo total.
     Quais as consequências hoje do consumo global de mais de 160 milhões de toneladas de açúcar, contra apenas 8 milhões no início do século XX? Quais os efeitos sociais de um consumo médio anual de 23 quilos, em uma escala que vai de um mínimo de 8 quilos em Bangladesh para um máximo de 66 quilos em Israel?  Como avaliar o efeito da combinação do açúcar com as bebidas energéticas (como o café) que estimulam a atividade dos corpos humanos no ritmo de vida frenética da civilização urbano-industrial? Como equacionar o cortejo de delícias gustativas que o açúcar gerou, associado ao crescimento epidêmico da diabetes, das cáries dentárias e da obesidade?
     A sensação doce na boca tornou-se um dos traços culturais distintivos da globalização. Mas quem considerar todos os seus componentes históricos – incluindo os desflorestamentos, as escravidões e as chamadas “doenças da civilização” – não poderá deixar de notar um gosto amargo, por vezes demasiadamente amargo, do império da doçura.
José Augusto Pádua é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil (1786-1888), (Zahar, 2002).
Saiba mais- Bibliografia
CARNEIRO, Henrique. Comida e Sociedade. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
DEAN, Warren. A Ferro e Fogo: A História e a Destruição da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
FERLINI, Vera. Terra, Trabalho e Poder: O Mundo dos Engenhos no Nordeste Colonial.  Bauru: Edusc, 2003.
FREYRE, Gilberto. Nordeste: Aspectos da Influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A Persistência da Cultura do Estupro

Pela primeira vez, casos notificados no País superam os de mortes violentas; preconceito ainda interfere nos registros.
     Pela primeira vez desde que começaram a ser publicados os anuários de segurança pública no Brasil, os números de casos de estupros foram maiores que os de mortes vio­lentas. A taxa média brasileira ultrapassou 26,1 ocorrências por 100 mil habitantes, com 50.617 registros em 2012, contra 42.482 em 2011. Ape­sar do aumento, pesquisadores e profissionais que trabalham de alguma forma com a questão afir­mam que os números ainda estão muito aquém da realidade. De forma geral, as estatísticas policiais são pouco confiáveis, mas para crimes contra a li­berdade sexual, a subnotificação é muito grande, por várias razões. "Parte desse aumento reflete, na verdade, um ganho de consciência e uma mu­dança no trabalho da polícia, que agora é regula­do por uma legislação diferente", diz a socióloga Wânia Pasinato, que há 30 anos pesquisa o tema. A legislação brasileira está melhor do que era des­de a publicação da Lei 12.015, de agosto de 2009, que ampliou as punições para qualquer tipo de coerção sexual. Até então, só era considerado cri­me de estupro quando havia penetração vaginal.
     Qualquer outra agressão era considerada atenta­do violento ao pudor. Hoje, os crimes sexuais es­tão todos sob a denominação de "crimes contra a liberdade sexual", o que permite incluir os ataques que não chegam à penetração, envolvam outros atos libidinosos, agressões verbais e também a ga­rotos - que embora aconteçam em menor núme­ro, são mais comuns do que se imagina. "Como os números de 2012 uniram dois tipos de ocorrências diferentes e os índices de atentado também eram altos, pode estar havendo algum impacto", ressal­va a coordenadora técnica do Fórum Nacional de Segurança Pública, Patrícia Nogueira. Embora sutil, a nova nomenclatura provocou grandes alterações na rotina e no registro dos cri­mes, e também na sua punição. Com a nova lei, uma vítima tem mais chances de ver seu agressor condenado e punido, mas ao mesmo tempo está mais vulnerável do que nunca às distorções pro­vocadas pela mentalidade atrasada que perdura na sociedade, em geral marcada pelo que as fe­ministas estão chamando de "cultura do estupro". Por exemplo, se a vítima estava bêbada no momento do ataque, ou com roupas consideradas provocativas, ou ainda em local ou situação vul­nerável, esses detalhes são citados como atenuan­tes e, na maioria das vezes, desqualificam a vítima que, no limite, acaba sendo culpada pela agres­são que sofreu. "Já li sentenças em que o juiz ar­gumenta que não houve estupro porque a vítima era casada com o acusado e o sexo é uma obriga­ção conjugal", conta alarmada, a advogada Cyn-tia Semíramis, doutoranda na Universidade Fede­ral de Minas Gerais e militante na seção local da Marcha das Vadias.
     Outro problema é que como o texto da lei não de­fine exatamente o que é crime, essa decisão fica nas mãos do policial que atender a ocorrência. Cyntia diz que está no meio do caminho, traba­lhando com os policiais e as vítimas. "A situa­ção dos policiais é ruim, eles sofrem um estres­se grande por conta da militarização da polícia", afirma. Ela diz que há uma violência institucio­nal no treinamento da Polícia Militar, principal­mente, e uma grande cobrança nas duas corpo­rações por metas e resultados. "Ao mesmo tempo eles não têm segurança para trabalhar e moram no aglomerado (favela) ao lado dos bandidos e são hostilizados", diz. Segundo a pesquisadora, mesmo treinado e totalmente consciente de como deve agir, o atendimento não é bom. "Acontece de tudo. Da negligencia até o exagero", diz. Ela conta o caso de um turista italiano preso na pis­cina de um resort na Bahia em 2009 denunciado por estupro. "Ele havia dado um selinho na filha, que estava nadando apenas de calcinha", conta. "A culpabilização da vítima é hoje o maior pro­blema nessa área", diz Haydée Svab, estudan­te na Escola Politécnica de Engenharia da Universidade de São Paulo (Poli/USP), integrante do PoliGen, um coletivo feminista que atua na fa­culdade. Haydée cita o IntegraPoli, uma ginca­na organizada para receber os calouros como a mais pura expressão da cultura do estupro. "Es­tudantes da Poli fazem festas com conteúdos se­xistas e machistas, sempre em tom de brincadeira. A lista de tarefas publicada este ano incluía pro­vas como a piscina do Gugu, em que as calouras deveriam entrar na piscina de biquini e lutar com os veteranos; lavar carro com roupa branca, gra­var um vídeo com um "cumshot surprise" (vídeos em que um aluno ejacula em uma mulher sem o consentimento dela)", conta. A festa virou notícia por conta de uma prova bizarra, que consistia em construir uma metralhadora para atirar elásticos ao vivo em calouras vestidas apenas de biquini. O caso ganhou visibilidade nos jornais, provocou escândalo e a direção da Poli suspendeu o evento temporariamente. "Eles refizeram a lista, retiran­do as provas mais polêmicas, mas isso não sig­nifica que elas deixaram de existir. Na verdade, foram abafadas", conta a militante. A única me­dida foi contratar prostitutas para o banho na ba­nheira do Gugu. O IntegraPoli ocorre em março. Em agosto, na festa junina realizada pelo Centro Acadêmico, outro escândalo, desta vez por con­ta da barraca do tapa, uma versão torta da barra­ca do beijo. "Eles xingam a garota violentamente para que ela fique com raiva e pague para dar um tapa na cara do cara", conta Haydée. Organizações feminis­tas e alunas reagiram mal, o caso novamen­te ganhou visibilidade - desta vez por meio de um relato publi­cado no Facebook - e a direção do Centro Académico de Mecânica e Mecatrônica, respon­sável pela barraca, publicou uma nota de esclarecimento. Segundo o texto, os excessos foram promovidos por uma minoria e não são aprova­dos pela direção. Uma desculpa, já que o texto do convite da barraca é uma apologia ao preconcei­to e a discriminação de mulheres:
"Você já foi taxada de vagabunda pelos seus colegas de classe? (...)
Aquele babaca já te chamou de gorda? (...)
A sociedade te menospreza pelo simples fato de ser mulher? (...)
Se sim, saiba que nós, do CAM, incentivamos e apoiamos todos esses tipos de práticas que dei­xam vocês, mulheres, putas da vida."

"Cu de Bêbado(a) Tem Dono Sim!"
     A frase acima tornou-se o bordão dos coletivos feministas da USP e título de uma tese de mestrado de uma aluna que aborda a questão. Como um microcosmo social, a Cidade Univer­sitária reflete o modo como a sociedade, de uma forma geral, trata da questão. Durante a apura­ção foram ouvidos vários relatos de casos ocor­ridos há poucos dias, em conversas informais com alunos, professores e funcionários, como o de uma professora que teria sido arrastada para uma obra do campus e atacada em ple­no sol de meio dia. Ou de ocorrências em fes­tas com alunas embriagadas, que são estupra­das por mais de um colega. "O bêbado é considerado, pela le­gislação, um incapaz e, portanto, esses ra­pazes cometeram cri­me, mas a sociedade considera que o erro é da garota", diz Sil­via Pereira de Cas­tro Casa Nova, mili­tante do Genera, um grupo da Faculdade de Economia e Adminis­tração da USP de pesquisa em género e raça. Nenhuma dessas ocorrências, no entanto, mes­mo as que foram constatadas pela comuni­dade, chegaram a ser registradas ou, se gera­ram algum registro, não foram investigadas.
     O último caso com esse enredo e noticiado na imprensa aconteceu no início do ano na Es­cola de Engenharia de Lorena, da USP, durante uma festa de república e entre amigos de classe. "A garota só entendeu que havia sido vítima de um crime depois de conversar conosco. Até en­tão, ela estava se sentindo mal, mas achava que a culpa era dela, por estar na república onde foi atacada e ter bebido mais do que devia", con­ta a estudante de ciências sociais Paula Kauf­mann, que faz parte da Frente Feminista da USP, criada em 2010 para tentar reduzir o número de casos e ampliar o debate em torno da ques­tão. "A primeira coisa que queremos é ter acesso às estatísticas, o que é importante para adotar medidas de controle", diz.
     Segundo Silvia, o Serviço de Assistência So­cial (SAS) tem dados sobre ocorrência não ape­nas de estupros, mas de vários tipos de violência cometida contra mulheres no campus. "Também são parciais, mas eles existem. O SAS administra o Crusp (Conjunto Residencial da USP) e é lá que acontece a maior parte dos casos", explica Silvia. Mas Paula reclama que esses dados não são divul­gados para a comunidade. "Não sei por que. Aqui atendemos, em média, dois casos por mês e elas nos procuram porque não há outra opção. É um número alarmante", avalia. Paula explica que a Frente é a reunião de todos os coletivos feministas da USP e foi criada para fortalecer o movimento e tentar mudar a situação. Hoje existe uma pauta de reivindicações em curso, que prevê a melhora da iluminação do campus, corte da vegetação rasteira e um plano de treinamento da guarda universitá­ria para atender as ocorrências. "Além de despreparada, a guarda é impedida de fazer a seguran­ça pessoal, pois o estatuto diz que ela foi criada para fazer a segurança patrimonial apenas", ex­plica Paula. A iluminação está sendo instalada.

Denúncias Crescem Mais
     A cientista política Natália Fontoura, pesqui­sadora da Coordenação de Igualdade de Género e Raça da diretoria de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisas e Econômicas Aplicadas (Ipea), diz que nos últimos anos surgiram reflexões interessantes que os nú­meros dos anuários ajudam a intensificar. "A discussão da cultura do estupro, em que o acesso ao corpo da mulher pelo homem é vis­to como natural e que não depende de con­sentimento, está vindo à tona e isso ajuda a aumentar a conscientização", diz. Inclusive das próprias mulheres, que segundo a pes­quisadora acabam assumindo posições ma­chistas e equivocadas. "O caldo cultural ser­ve para todo mundo. Muitas mulheres sequer percebem", conta. Ela cita uma pesquisa so­bre cantadas. "É considerado natural o fato de uma mulher não poder circular com a roupa que quer em qualquer lugar. Ou des­viar o caminho para não passar por grupos de homens em posturas agressivas", expli­ca. Movimentos como a Marcha das Vadias, que cresceu nos últimos anos, esclarecem o equívoco e também podem estar influen­ciando os números apresentados pelo fórum.
     Patrícia, a coordenadora do fórum, explica que foram tomadas várias medidas para tentar me­lhorar a qualidade dos dados e diminuir eventu­ais distorções nos resultados provocadas por fa­lhas na apuração. "Fizemos uma classificação por grupos de dados, com duas variáveis; a primei­ra sobre a qualidade da alimentação de dados pe­los estados do Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e, a segunda, relativas à for­ma como os bancos de dados estaduais são cons­truídos", explica. Os dados recolhidos são com­parados com outras fontes, de forma a criar uma referência. Com relação às denúncias, os núme­ros de registros no sistema foram cruzados com o levantamento do Ligue 180, voltado para de­núncias de violência contra mulher. "Esse sistema tem registrado aumentos ano a ano e entre 2011 e 2012, o número de denúncias especificamente de violência sexual aumentou 66%", conta. O que para ela é um sinal claro de que a cons­cientização está crescendo no Brasil.
     Cyntia também aponta o aumento da cons­cientização, em especial entre as meninas das novas gerações, que engrossam as fileiras de movimentos como o Marcha das Vadias. Mas também vê o crescimento de grupos conser­vadores, ligados principalmente às igrejas neopentecostais. "Eles têm forte influência sobre as novas gerações e colocam a mulher ideal como a santa, que deve ser submissa ao homem, não tem direito ao prazer e só se re­laciona sexualmente para ter filhos", conta. Um quadro que gera grandes debates, mas ao mesmo tempo, em vez de promover a aproximação, reforça e acirra os conflitos entre homens e mulheres. 
Lilian Primi é repórter freelancer at Editora Abril, Revista PIB, Carta Capital.

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terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Pisando no "sexo frágil"

Ainda na passagem para o século XX, as mulheres eram alvo de descrédito em suas lutas pela emancipação. Depois de tanto lutar, elas hoje ocupam 41 % do mercado de trabalho.
Rachel Soihet
      Nas últimas décadas do século XIX, a Revista Ilustrada, comandada por Ângelo Agostini, era uma das publica­ções mais importantes do país. Com grande aceitação popular, publicava artigos bem-humorados e irônicos que defendiam posições po­líticas avançadas para a época, contra a escravidão e o conservadorismo do governo imperial. Mas, co­mo se pode ler num de seus editoriais, intitulado "Com as damas", de 1886, a situação da mulher e sua reivindicação por maior participação na socie­dade não eram vistas com bons olhos, merecendo até mesmo tratamento caricato:
     "Não será da nossa parte que as legítimas aspira­ções do sexo gentil, da mais simpática e apreciável metade do gênero, encontrarão qualquer embaraço, por mais insignificante que seja, à sua justa expansão. Confiamos muito no bom senso e na inteligência ser­vida pela educação para recear que as mães, as irmãs e as esposas, abandonando a serenidade dos lares, se atirem à política e aos meetings, obrigando-nos a velar pela cozinha e pelos recém-nascidos. Não! A mu­lher manter-se-á na órbita que lhe convém e, se algu­ma exceção houver, estamos certos que esse papel fi­cara reservado às sogras."
     A emancipação feminina era vista pelos mais di­versos setores sociais e tendências políticas co­mo grave ameaça à or­dem estabelecida, e o predomínio masculino encontrava legitimidade até no pensamento cien­tífico da época. A filosofia considerava que a infe­rioridade da razão entre as mulheres era fato incontestável, cabendo a elas apenas cultivá-la na medida necessária ao cumprimento de seus deve­res naturais: obedecer ao marido e cuidar dos fi­lhos. A medicina do século XIX afirmava que a fra­gilidade, o recato e o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais eram características biologicamente femininas, assim como a subordi­nação da sexualidade ao instinto maternal. Em oposição, o homem somaria à sua força física uma natureza autoritária, empreendedora, racional, e uma sexualidade sem freios.
     O recurso da ironia e da comédia foi um pode­roso instrumento para desmoralizar a luta pela emancipação feminina e reforçar o mito da inferioridade e passividade da mulher.
Numa crônica maliciosamente intitulada "Emancipada" (revista Careta, Rio de Janeiro, 20/2/1909), depois de ressaltar de forma grotes­ca a inversão dos papéis naturais de cada sexo, faz-se quase um alerta lançando mão de um desfecho trá­gico: os homens teriam de "velar pe­la cozinha e pelos recém-nascidos". Madame Linhares, após um longo dia no escritório, encontra a casa em polvorosa: "Os meninos ainda não haviam jantado (...) por­que o Cazuza Linhares não havia acertado com o meio de fazer a sopa e o assado." O Cazuza, que fi­cara em casa tomando conta dos filhos, presta con­tas à esposa de suas dificuldades, informando que já vinha há três horas tentando sem sucesso prepa­rar o jantar. O diálogo que se segue acentua a sub­serviência do marido e o autoritarismo da mulher. Era a inversão do quadro habitual, o horror que ameaçava as famílias de bem:
-   Tambêm você para nada presta.
-   Mas, Milu, se eu nunca aprendi a fazer isso...
-   E o que foi que aprendeu, não me dirá? O se­nhor é um imprestável.
-   Mas Milu...
-   Cale-se homem, cale-se! (...) Irra! Molenga! Banana! Pastelão!
-   Eu só queria ver você na cozinha...
-   Sim? Queria? Pois esse gosto não há de ter, meu caro. Então eu, uma mulher superior, vou lá me ocupar com esses cuidados domésticos...
-   E as crianças?
-   Pois aí não tem queijo? Não tem pão? Vá ferver água para o chá.
-   Chá, pão e queijo? Mas isso é lá um jantar?
-   E basta. Também você só cuida da barriga (...). E passará a dormir na sala de visitas durante três meses. É para ensiná-lo a respeitar uma mulher emancipada.
     Apesar do tom de galhofa, essa abordagem não estava tão distante da adotada por criminalistas e médicos da época, que alertavam para o perigo re­presentado pelas mulheres intelectualizadas. No Rio de Janeiro, vários médicos concordavam com essas afirmações. Comentando os motivos que levariam a mulher a cometer o terrível crime do infanticídio, o Dr. Augusto Militão Pacheco aponta as "mulheres originais", distintas das demais "pela extrema devassidão (...) pelo gosto infrene de pintar, escrever, viajar etc." Interessante notar que são en­quadradas, em primeiro lugar, a mu­lher infiel e, em segundo, a emanci­pada. Para grande parte dos estudio­sos em comportamento da virada do século XIX para o XX, a intelectual emancipada era mau exemplo para as outras mulheres, pois faria com que acreditassem que poderiam so­breviver sem o auxílio do marido. Ao se recusarem a restringir seu univer­so à maternidade e ao lar, desprezando suas funções naturais, essas mulheres de comportamento dife­renciado seriam a fonte de todos os flagelos sociais.
     Nenhum meio foi desprezado na difusão do princípio de que os cui­dados com os filhos exigiam que a esfe­ra feminina fosse aquela da casa, nessa campanha desenvolvida, a fim de salvaguardar os privilégios masculinos, incluin­do a música carnavalesca. Deixava-se claro que, além dos males acarretados aos filhos, a competi­ção, que se desenvolveria entre homens e mulheres, prejudicaria o relacionamento conjugal, levando à ruína a instituição do matrimônio. As ideias con­trárias ao feminismo circulavam também nas cama­das populares, e o papel de provedor, destinado aos homens na organização patriarcal, constituía-se em ideal que não escapava a todas as camadas, embora dificilmente se concretizasse.
     A charge foi um recurso muito utilizado para ri­dicularizar o movimento de emancipação feminina. O caricaturista Raul Pederneiras, que teve grande atuação na imprensa do Rio de Janeiro, foi um crí­tico implacável das mulheres que pretendiam am­pliar seu espaço de atuação na sociedade. Entre as cenas que privilegiava, buscava realçar a incompati­bilidade entre o exercício de atividades extradomésticas (o trabalho em especial) e as funções de mãe.
     Numa caricatura intitulada A mulher polícia, observa-se uma mulher gorda, pesadona, de rosto carrancudo, vestida com uniforme policial, en­quanto amamenta uma criança de colo. O conjun­to pretende denunciar o caráter grotesco da situa­ção, já que a figura está longe de representar a idea­lização difundida da fragilidade e docilidade das mães. A policial é instada por um homem a tomar uma medida, o que é mostrado, não apenas pela postura dele na figura, como na frase: "Acuda!... es­tão apitando lá fora!" Ao que ela responde: "Não vê que estou presa?" O autor, assim, procura desmora­lizar as pretensões das mulheres de acumular duas funções, de mãe e de profissional, demonstrando sua impossibilidade e o perigo que representa para a sociedade confiar nelas.
     O grande J. Carlos, por sua vez, costumava retratar em suas charges personagens femininas dos segmen­tos superiores - mulheres sedutoras, extremamente sofisticadas e ocupadas com a aparência. Mas a preo­cupação com o avanço do feminismo está demons­trada em pelo menos dois de seus trabalhos. Num de­les (na página 16), denominado Emancipação (revista Para Todos, 1926), um pai aparece sentado, totalmen­te rendido ao cansaço, segurando um bebé ao colo com a infalível mamadeira. Em torno dele, brinque­dos espalhados e três crianças entregues às mais di­versas travessuras. Elegante, a mãe chega então com um chapéu masculino na cabeça, indiferente à confu­são. A segunda caricatura (na mesma página 16), Mater Dolorosa (revista Fon-Fon, 1935), mostra tam­bém um homem abatido ao lado do bebé, cercado de grande quantidade de brinquedos espalhados.
     Raul Pederneiras, porém, aponta a solução para esses problemas. Em seu álbum Cenas da vida ca­rioca, de 1926, há um painel de quatro caricaturas representando um dia na rotina de uma mulher. Um deles, intitulado Dia útil, mostra justamente uma mulher com o filho ao colo, mexendo uma panela no fogão - a imagem perfeita para a boa or­dem da sociedade, segundo o ideal masculino. Havia, portanto, que alertar para os perigos da par­ticipação feminina em esferas consideradas do do­mínio dos homens, expondo-os a situações incom­patíveis com sua natureza.
     Mas não apenas a questão da profissionalização feminina mereceu severas críticas. As demais reivindicações do género, com vistas ao exercício da ple­na cidadania, particularmente a luta pelo voto, eram objeto de chacotas, com o propósito de ri­dicularizá-las. Um exemplo é a crónica "Mais uma reivindicação femi­nina" (revista Fon-Fon, 4/1/1908): "Já não são so­mente nas profissões, já não se limitam aos direi­tos civis e políticos; não param também nos vestuários as reivindicações das nossas ar­dentes feminis­tas. Há uma tendência pronunciada para usar coisas até agora permitidas ao sexo feio. É assim que bre­vemente aparecerá uma obra da ilustrada senhora X... reivindicando o direito de senhoras usarem barbas também."
     Por trás dessa piada sobre a pretensão feminina de usar barba parece estar a intenção de sugerir que a feminista é uma mulher ansiosa para não só assu­mir papéis considerados privativos dos homens, mas também seus atributos físicos. Para terminar, o autor destaca mais uma das alegadas fraquezas da mulher: "(a barba) servirá (...) para demonstrar a falsidade da alegação de que toda mulher é tagarela, pois necessariamente terão de ficar caladas, ao me­nos enquanto fizerem a barba".
     Alguns autores tentaram manifestar sua oposição às mudanças pretendidas pelas feministas apelando para um tom cavalheiresco, beirando a pieguice: "Não concebo a mulher fora do seu ciclo, apostro­fando os deuses ou discutindo a origem das espécies. Ela foi feita para domar o homem. Que será da hu­manidade no dia em que ela, rasgando o peignoir de rendas (...) sair para a rua, não mais com a leve som­brinha de seda, mas com o humilhante cacete do ca­panga eleitoral? Desaparecerá o encanto dos salões, a alma da paisagem, o amor do lar..." Repetem-se ve­lhos estereótipos sobre a importância de os diferen­tes atributos dos homens e mulheres serem respeitados - um conceito presente na religião, aprimorado pelos filósofos iluministas e adotado pela ciência da época. No fim, a crónica adota um tom vulgar: "Só (...) as muito feias hão de querer se emancipar... coi­tadas! As bonitas não (...). Que nos importa as feias! Salvem-se as belas, que a humanidade se aperfeiçoa­rá." ("Páginas da Cidade" Careta, 11/1/1919).
     A necessidade de a mulher ser bela é sempre res­saltada. Algumas crónicas propõem estratégias para a superação desse obstáculo, a fim de garantir às feias a possibilidade do casamento, única aspiração feminina considerada legítima pela mentalidade machista da época. Em certo artigo, a atuação das militantes brasileiras é atribuída à ociosidade: "Se não tiverem com o que se distrair em casa, vão para as fábricas, namorem ou façam-se telefonistas." Para finalizar, a suprema ameaça: "Se persistirem nessas bobagens... ficarão todas solteironas, o que é o dia­bo!" (Careta, 2/2/1918).
     Outro cronista propõe com sarcasmo que sejam realizados "leilões matrimoniais", recurso útil para que as moças feias tivessem mais chance de conse­guir o casamento: "Talvez fosse esse o único, excelente, maravilhoso meio de acabar duma vez com as sufragis­tas, as literatas, as neurastênicas, as cochichadeiras e as beatas, horríveis espécies femininas nascidas da classe imensa, descontente, vingativa e au­daz das vieilles filies" ("O leilão das moças", Fon-Fon, 5/1/1918). A curio­sa conclusão é que a mulher não agraciada com a beleza, vendo-se re­legada à humilhante situação de sol­teirona, a vieille filie, buscaria vin­gança questionando sua condição e aderindo aos movimentos de emancipação.
     Em outra caricatura de Raul Pederneiras, intitu­lada Miss Alma, tipo feminista, vê-se uma mulher magra e feia usando cha­péu e sapatos masculinos e portando um livro - estereótipo da intelectual solteirona. E outra mulher mais gorda, de ar arrogante, apresenta as mesmas características: feiúra, masculinização e o inevitável livro. Não é de admirar que esse tipo seja classifica­do na seção "Sapatos".
     Apesar desse bombardeio, mais e mais mulheres reagiam no sentido de alterar sua posição relativa às esferas pública e privada. Não poucas assumiam abertamente a campanha pela obtenção de seus di­reitos. Organizaram-se em associações; faziam pro­nunciamentos públicos, utilizando-se fartamente da imprensa; buscavam apoio de lideranças nos diversos campos, constituindo grupos de pressão para garantir apoio de parlamentares e de outras autoridades, da imprensa, da opinião pública etc. Mas, apesar disso, em sua maioria, procuravam revestir seu discurso com um tom moderado. Não apenas porque consideravam que esta seria a forma adequada de expressão feminina, mas, igualmente, por estratégia política.
     Curiosamente, uma revista mensal dirigida por uma mulher que contava com a colaboração de figuras destacadas da época, como a poetisa Cecília Meireles e até militantes do movimento feminista, a Única, e que publicava artigos sobre literatura, arte, elegância e sociologia, noticiava a invasão das pistas de corrida de cavalo e dos quarteirões elegantes de Londres por "mulheres apaches" de porte másculo e bem vestidas, pertencentes a um grupo cujo nome bizarro seria Bando dos Quarenta Elefantes. "Tais criaturas dedicam-se ao roubo nos grandes estabeleci­mentos, à violação das fechadu­ras, à chantagem e até ao assalto a mão armada... resultado dos direi­tos equiparados da mulher" ("Feminismo e suas desvanta­gens", outubro de 1925).
     Essa maneira debochada de apresentar as mulhe­res empenhadas na luta por direitos questionava a seriedade de certas preocupações femininas. Em consequência, não foram poucas as mulheres que rejeitaram o feminismo e adotaram o discurso con­servador, sempre presente nos diversos meios de co­municação, que acusava o movimento de ser in­compatível com o ideal vigente de beleza, meiguice, paciência e resignação, e identificava as mulheres engajadas como viragos, pesadas como elefantes, perigosas e inclinadas a cometer atos criminosos.

Rachel Soihet é professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e autora de Condição feminina e formas de violência. Mulheres pobres e ordem urbana (1890-1920). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 3 - 2004

Saiba Mais: Bibliografia
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo. A luta da mulher pelo voto no Brasil. Petrópolis: Ed.
Vozes, 1980.
HAHNER, June E. Emancipação do sexo feminino - a luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850/1940, Editora Mulheres/Unisc, 2003. 

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