“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 29 de janeiro de 2017

Santos e rebeldes

Violentamente reprimidas, as “Santidades”, rebeliões indígenas ocorridas na Bahia do século XVI, se apoiavam na crença de um paraíso tupi.
      Bahia, 1585. O capitão Bernaldim da Grã, à frente de pequena tropa, invadiu a fazenda do principal senhor de Jaguaripe, Fernão Cabral, que não lhe opôs resistência. Sabia ele o que Bernaldim pretendia fazer e ainda lhe indicou o lugar que procurava, distante meia légua ou três quilômetros da casa-grande. Ali ficava uma grande maloca, onde cabiam centenas de pessoas, chefiadas por uma índia conhecida por Santa Maria Mãe de Deus e auxiliada por índios, também chamados por nomes de santos – um deles, Santíssimo. Faziam orações cristãs, rezavam por rosários, confessavam suas culpas numa cadeira grande de pau e houve quem visse ali umas tabuinhas com riscos, que pareciam ser os breviários da seita. À porta da maloca, havia uma cruz de madeira fincada, indicando com nitidez a identidade católica do grupo.
      Catolicismo à moda tupi, é claro, que não excluía ritos e crenças tupis no dia-a-dia do culto. Bailavam à moda indígena da mesma maneira como Jean de Léry, quase 20 anos antes, descrevera o baile tupinambá na Guanabara, abrindo uma fresta indiscreta na maloca principal da aldeia. Dançavam unidos, embora de mãos soltas e fixos no lugar, formando roda e se curvando para a frente. Moviam somente a perna e o pé direito, cada qual com a mão direita na cintura e o braço esquerdo pendente. Fumavam desbragadamente o tabaco – petim, na língua nativa – que os portugueses chamaram de erva-santa. Por meio do fumo, os índios se comunicavam com seus mortos, falavam com os ancestrais, recordavam seus heróis, como Tamandaré, que, segundo o mito, se refugiara no topo da palmeira mais alta da terra para escapar de um dilúvio lendário. Os índios de Jaguaripe fumavam e bailavam em torno de um ídolo de pedra, com jeito de figura humana, nariz, olhos, cabelos, e ainda vestido com uns trapos que o senhor do lugar, Fernão Cabral, lhe havia ofertado, para agradar aos índios. Media um côvado de altura – 66 centímetros – e tinha nome pomposo: Tupanasu, deus grande.
      Bernaldim da Grã invadiu a fazenda para destruir aquela “abusão”, como diziam, a mando do governador Teles Barreto. Mas, a bem da verdade, fora enviado menos por causa das festas gentílicas do que pelas rebeliões que se alastravam pelo Recôncavo havia pelo menos seis meses, estimuladas pelo que acontecia na fazenda de Jaguaripe. Emissários da seita percorriam engenhos e lavouras, incitando os índios escravizados a fugir. Faziam o mesmo nos aldeamentos da Companhia de Jesus. Chegaram a incendiar um engenho e destruíram a Igreja de Santo Antônio. Escravistas de toda a capitania protestavam junto ao Governador. Os jesuítas, desesperados, exigiam providências. Os moradores, em geral, viviam apavorados. A Bahia vivia atormentada por esta que foi, sem dúvida, a maior rebelião indígena do século XVI.
      Mas a rebelião ocorrida na Bahia, em 1585, não foi senão o auge de uma série de movimentos que, dotados de forte cunho milenarista, pipocavam desde meados dos quinhentos em todo o litoral. Deles informam diversos cronistas, a exemplo de Jean de Léry, e vários jesuítas, como Anchieta e Nóbrega. Todos acentuavam os aspectos religiosos desta inquietação indígena, na qual “feiticeiros” percorriam as aldeias do litoral incitando os índios a largar o trabalho, porque era chegado o tempo em que os frutos cresceriam da terra sem que ninguém os plantasse, e as flechas caçariam sozinhas nos matos. As mulheres, se velhas, recobrariam a juventude e todos se tornariam imortais. Pregavam, pois, a chegada de um autêntico paraíso tupi. E pregavam em transe, depois de se embriagar de fumaça que baforavam, em meio aos bailes, chacoalhando maracás ornados com penas. Alguns cronistas carregavam nas tintas para descrever o frenesi indígena, dizendo, como Léry, que “as mulheres urravam, saltavam com violência, agitavam os seios e espumejavam pela boca até desmaiar”.
      Os tais “feiticeiros”, que os jesuítas descreviam como diabólicos, eram, na verdade, grandes pajés: os chamados pajés-açú. Diferiam do comum dos pajés, simples curandeiros, porque tinham este dom de tratar com os mortos. Eram quase deuses. Homens-deuses. Percorriam aldeias, depois engenhos e missões cristãs, para pregar aos índios. Pregavam a busca da Terra sem Males, antiga crença dos tupis que, segundo os etnólogos, teria mesmo estimulado a migração dos diversos grupos desta língua para o litoral do futuro Brasil.
      Com o início da colonização, a migração mudou de rota. Rota de fuga, do litoral para os sertões, e a pregação tupi se transformou cada vez mais numa profecia anticolonialista. Os tais pajés passaram a anunciar que, com o triunfo que se avizinhava, todos os portugueses seriam mortos ou se tornariam escravos dos índios; e também os índios que não aderissem teriam destino atroz: virariam paus, pedras ou caça para ser comida. O mito indígena da Terra sem Males sofreu, assim, verdadeira metamorfose, incorporando, para extirpá-la, a nova realidade colonial. Os pajés pregavam, os índios fugiam, todos lutavam. E tanto mais o faziam quanto mais avançava a colonização, a economia açucareira, com suas lavouras e engenhos, a missionação da Companhia de Jesus, com sua disciplina, badalar dos sinos, repressão dos pecados. O quadro se agravou de vez na altura dos anos 1560, com a peste das bexigas – a varíola – que ceifou a vida de milhares de índios, em especial na Bahia. Os 40 mil índios contabilizados pelos jesuítas na capitania em 1564, mal passavam de 10 mil em 1585.
      A vida das aldeias consumidas pela peste tornou-se dantesca. Os infectados – e febris – se diziam tomados de um “fogo no coração”, segundo contou um padre, e depois rebentavam as purulências pelas faces, mãos, pés, “tão asquerosas e hediondas que não havia quem as pudesse suportar com a fetidez que delas saía”. Outro padre não ficou atrás na descrição: “bexigas tão nojososas e de tão grandes fedores que punham espanto”. O quadro era infernal: gritos dos doentes, cadáveres mal enterrados, porcos devorando defuntos. Os jesuítas se esforçavam em vão para cuidar dos doentes, que morriam como moscas. Incapazes de curar os índios, tentavam ao menos salvá-los em espírito, ministrando batismos in extremis. Não admira que os pajés, para desafiarem os padres, dissessem que o batismo cristão matava. Não admira que os índios que ingressavam na seita rebelde fossem rebatizados, ganhando outros nomes, às vezes nomes de santos.
      Por esta e outras razões, as rebeliões indígenas do século XVI ficaram conhecidas como Santidades. Nóbrega foi quem primeiro chamou deste modo a cerimônia, em 1549, ao ver um pajé pregar em transe aos índios de uma aldeia baiana. E o nome acabou pegando, pelo verniz católico de muitos movimentos, pela adoção de nomes santos, pelo tom profético das pregações. 
      A Santidade de Jaguaripe foi a mais importante de todas, ao mesmo tempo em que o último suspiro da resistência tupinambá na Bahia. Antes de se refugiar na fazenda de Fernão Cabral, se organizou nos sertões de Jaguaripe, chefiada por um índio fugido de Tinharé, aldeia de Ilhéus. Nascido em missão inaciana, batizado cristão com o nome de Antônio, instruído na doutrina de Cristo, era por vocação um tremendo pajé. Tornou-se grande pregador da Santidade e dizia encarnar ninguém menos que Tamandaré, o ancestral-mor dos tupinambás. No entanto, formado nas missões, Antônio também dizia ser o “verdadeiro Papa” da Igreja, ordenava bispos e distribuía nomes de santos. Uma verdadeira corte celeste, com suas hierarquias clericais, fumando petim, bailando em torno de Tupanasu, e incendiando a Bahia. Detalhe importante: este pontífice tupinambá era casado. Sua esposa era ninguém menos que a Santa Maria Mãe de Deus, que chefiaria o culto na fazenda de Fernão Cabral.
      Dessa forma, na Santidade de Jaguaripe, catolicismo e mitologia tupinambá se mesclavam de maneira formidável: o Papa era Tamandaré, a Virgem Maria era casada com o Papa, a cruz e o ídolo se revezavam na devoção dos índios, rosários eram desfiados, maracás chacoalhados. Os membros da Santidade canibalizaram o catolicismo para revigorar suas tradições. Apegaram-se a seus mitos, devidamente cristianizados, para enfrentar a história trágica que lhes reservava a colonização. Na luta entre mito e história, venceu a história.
      E começou a vencer quando o Governador cedeu aos argumentos do senhor de Jaguaripe, para quem a melhor maneira de vencer aquela “abusão” rebelde era atrair os índios com promessas de liberdade de culto, direito de terem os homens quantas mulheres quisessem, de que bailassem à vontade, bebessem cauim e fumassem petim até a exaustão. Teles Barreto cedeu à estratégia de Fernão Cabral, que mandou grupo numeroso de mamelucos, seguidos de índios flecheiros, no encalço da Santidade, de preferência do Papa Tamandaré, para tentar convencê-lo de que o melhor era partir com seus fiéis para a fazenda de Jaguaripe.
      Chefiava a tropa um certo Domingos Fernandes, mameluco de alcunha Tomacaúna, homenzarrão espadaúdo, experimentado nas lides dos sertões, 40 anos de idade e largo currículo de negócios com índios para resgatar cativos, vender facas e arcabuzes, trocar pólvora por escravos. Nesta missão que lhe confiou Fernão Cabral, saiu-se muito bem. Depois de muita andança pelos matos, Tomacaúna se aproximou do Papa, caiu de joelhos e pôs-se a chorar, fazendo a “saudação lacrimosa” tupinambá e aproveitando para tratar do assunto particular: a transferência do grupo para o litoral. Acabaram fazendo acordo em que cerca de 300 índios, chefiados pela tal Santa Maria, seguiriam para a fazenda de Fernão Cabral. Tomacaúna ficou, talvez como refém, com certo grupo de mamelucos. O Papa Antônio preferiu acautelar-se e também ficou com outra banda de seguidores. E assim partiram os 300 índios, carregando o ídolo para o engenho de Jaguaripe, enquanto Tomacaúna e outros bailavam, bebiam e fumavam “ao modo gentílico”.
      Uma vez na fazenda de Jaguaripe, a “abusão só fez crescer”. Fernão Cabral nada fez para destruí-la, gerando ódio mortal dos demais senhores da Bahia, bem como dos padres. Os índios corriam para a maloca santa a cada dia. Mamelucos e brancos passaram a frequentar o culto, e até alguns “negros da Guiné” aderiram ao culto de Tupanasu. O próprio Fernão Cabral vez por outra ia à “igreja dos índios”, e se ajoelhava diante do ídolo, tirando o chapéu como reverência.
      Por seis meses este imbróglio não se desfez. A razão que motivou um senhor escravista a proteger por meses uma seita que prometia morte e escravidão para os portugueses é, aparentemente, um mistério. Mas nem tanto, se considerarmos que este homem, natural do Algarve, era conhecido por sua ambição escravista, roubara índios de aldeias, prestara serviços militares ao governo contra os aimorés e certa vez perpetrou uma das maiores brutalidades da História do Brasil. Era do conhecimento público que, irritado com uma índia que o intrigara com a esposa, dona Margarida, contando-lhe sobre certa “fornicação simples” que cometera com outra negra da terra, Fernão mandou queimar a moça na fornalha de seu engenho. Pena atroz, agravadíssima pelo fato de que a vítima estava grávida. Fernão mandou queimá-la viva e ainda ameaçou a quem tentasse ajudá-la com o mesmo castigo medonho. Contou uma testemunha que “lançada no fogo, a índia arrebentou pelas ilhargas e apareceu a criança”. Chamava-se Isabel e, no seu martírio, começou a gritar por Deus e terminou chamando pelos “diabos do inferno”. Numa sociedade acostumada, seja na colônia ou na metrópole, com a banalidade da violência atroz, este fato ultrapassou as medidas e calou fundo na memória local. Pois este era Fernão Cabral. Fez o que fez por ambição, quem sabe motivado a acrescentar ad infinitum sua escravaria, quem sabe esperando melhor ocasião para destruir a igreja indígena. Mas que perdeu o controle da situação, disto não há dúvida.
      Voltamos, assim, ao início da narrativa. Bernaldim da Grã, enviado pelo governador, pôs fogo à maloca, confiscou o ídolo, reenviou os índios para seus donos, os escravos aos senhores, os aldeados aos jesuítas, e desterrou três “principais”, inclusive a Santa Maria. Para onde foram os desterrados não se sabe. Também o Papa índio fugiu sem deixar rastro. E o governador fez as pazes com Fernão Cabral, passando-lhe uma certidão fantasiosa de que ajudara na destruição da “abusão”.
      Assim terminou a Santidade da Bahia. E ficaria esquecida, senão desconhecida, não fosse a chegada da Visitação do Santo Ofício, em 1591. Tudo o que se conhece desta história provém dos papéis da Inquisição, confissões, denúncias, processos, inclusive contra Fernão Cabral, que passou um ano preso por ter “protegido” a Santidade. Mas até a Inquisição pactuou com a escravidão colonial. Fernão Cabral foi punido, é certo, com dois anos de desterro para fora da capitania e uma pesada multa. Nada além disto. E tudo voltou à monotonia de sempre na Bahia de Todos os Santos.

Ronaldo Vainfas é professor titular de História Moderna na Universidade Federal Fluminense.

Saiba Mais – Bibliografia
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfose indígenas: identidade e cultura nas aldeias colônias do Rido de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
MONTEIRO, John. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. São Paulo: EDUSC, 2003.
VAINFAS, Ronaldo. A heresias dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. 3ª edição. São Paulo: companhia das Letras, 2005.

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Histórias do Brasil a Série

domingo, 22 de janeiro de 2017

“Macumba” de branco

Proposta original da Umbanda era negar o passado negro do país e submeter as religiões vindas da África aos valores dominantes da cultura brasileira.
Artur Cesar Isaia
      Hoje em dia ninguém dissocia a Umbanda do seu passado africano, mas nos seus primórdios a ideia dos dirigentes umbandistas era construir uma religião "nacional", distante da cultura negra e o mais próxima possível aos valores da elite brasileira. A realização do Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda, em 1941, no Rio de Janeiro, foi um momento marcante nesse processo. Não esqueçamos que se vivia então num Brasil ainda muito próximo do passado escravista, onde se cultivavam, de maneira explícita, os preconceitos de cor e o desprezo pelas tradições herdadas da África. Uma das teses aprovadas no congresso defendia a ideia, algo bizarra, de que a Umbanda tinha suas raízes na índia, de onde então teria sido levada para o continente africano. Percebemos aí claramente o esforço de aproximar a Umbanda a uma tradição cultural considerada "superior", no caso a hindu.
      As teses aprovadas no encontro tentavam, por outro lado, ligar a Umbanda ao Espiritismo, que Allan Kardec, na França, em meados do século XIX, tentara aproximar da ciência. A elite brasileira tendia a valorizar essa vertente livresca do Espiritismo. Alguns dos primeiros intelectuais da Umbanda preferiam apresentá-la como uma modalidade do Espiritismo, reinterpretado em solo brasileiro e acrescido de um ritual, inexistente na matriz francesa kardecista. Para eles, os rituais próprios da Umbanda deviam ser mantidos porque a tornavam mais próxima ao povo. Essa relação aparece claramente na literatura doutrinária umbandista que proliferou na primeira metade do século XX. Alguns livros desta fase chegam a cogitar que o próprio ritual tenderia a diminuir de importância na religião, ou mesmo desaparecer, na medida em que o povo brasileiro se tornasse mais "educado". Quando isso acontecesse, a população estaria menos presa a certas práticas, como o uso de velas, o culto a imagens e mais próxima da doutrina que os teóricos umbandistas divulgavam através dos seus livros.
      Na maioria das obras da época a Umbanda aparece articulada à vida urbana, prescindindo das práticas julgadas primitivas, típicas do Candomblé, como o sacrifício de animais, as reclusões, os toques de atabaques etc. Um periódico editado no Rio de Janeiro nos anos 50, O Jornal de Umbanda, chegou mesmo a publicar que o samba e o Carnaval eram indícios do mesmo "barbarismo" do Candomblé. Em contrapartida, os primeiros dirigentes da Umbanda fizeram questão de comprometer os adeptos da nova religião com uma imagem laboriosa, saudável. Preocupavam-se bastante com os horários das giras (sessões), que não deveriam conflitar com o período de descanso dos trabalhadores.
      Também havia um cuidado muito grande com a ingestão de bebidas alcoólicas durante os cultos. O marafo (aguardente) deveria ser usado com muita parcimônia. A preocupação com o alcoolismo corroborava a tendência de aproximar a nova religião do modo de vida dos cidadãos honestos, produtivos e respeitáveis. Uma das teses aprovadas no congresso de 1941 abordava o esforço dos umbandistas na erradicação do alcoolismo, considerado nocivo e ameaçador para a classe operária. De forma clara, a Umbanda procurou, no começo, distanciar-se das manifestações mediúnicas disseminadas nas camadas populares, como a Macumba. Muitos registros dessa época mostraram as atividades mediúnicas entre os pobres bastante ligadas ao modo de vida dos negros. Em inúmeros registros da época encontramos a expressão "baixo Espiritismo" denominando essas práticas, próprias de segmentos marginalizados. Estas deveriam ser disciplinadas, ritual e doutrinariamente, dentro da proposta de a Umbanda se afastar da negritude e da pobreza.
      Os primeiros dirigentes só admitiam o trabalho com espíritos (Caboclos, Pretos Velhos, Crianças etc), não tolerando a manifestação dos Orixás (as antigas divindades africanas). Esse trabalho "desafricanizante" contaria com o esforço das nascentes federações umbandistas. Como religião que se representava como nacional, assumindo o discurso do sincretismo, a Umbanda acentuava, em seu panteão de entidades, uma representação conciliadora do negro e do índio, totalmente dóceis aos valores dominantes na sociedade. O índio, para os umbandistas, era um ser valente, forte, protetor, numa relação estreita com certos personagens do romantismo brasileiro, como o índio Peri, de José de Alencar. No mundo do branco e do índio representado pela Umbanda, não parecia existir oposição. Primeiros habitantes da terra, tendo seu habitat invadido, suas populações dizimadas e sua cultura violentada, os índios, na versão umbandista, são entidades submissas ao mundo dos colonizadores. Os "caboclos", como são chamados os espíritos dos indígenas, estão sempre prontos a colocar sua força e discernimento a serviço dos que deles precisam, sem contestar a ordem vigente.
      Quanto ao negro, este aparece sempre como um sábio conselheiro. A sapiência do Preto Velho advém da idade avançada. Por se tratar de um ancião, não representava nenhum risco físico à sociedade: é um negro alquebrado pelos anos e muito familiar à "casa-grande", ao mundo dos brancos, com quase nenhum traço do seu passado africano. A oposição à ordem vai ser feita, na Umbanda, por outros integrantes do seu panteão: os Exus. Essas entidades eram, contudo, consideradas como carentes de "evolução", aquém, portanto, dos guias "luzeiros", como Caboclos e Pretos Velhos. Na ancestralidade africana, os Exus desempenhavam um papel importantíssimo, como mensageiros dos Orixás, estando ligados ao movimento, ao dinamismo da vida, à energia sexual. Nas antigas Macumbas e na própria Umbanda, os Exus passaram a ser representados com explícitas aproximações com o demónio cristão.
      Essas entidades, os Exus, eram consideradas ambíguas e perigosas. Ou a Umbanda não trabalhava com as mesmas ou o fazia apenas em ocasiões muito especiais, e assim mesmo cercando esses trabalhos de muita privacidade e mistério. Sendo, na sua ótica, entidades "primitivas", a Umbanda encarava os Exus numa perspectiva evolucionista e - para "evoluírem" - tinham de se regenerar pelo trabalho. Renato Ortiz faz menção ao chamado "Exu Batizado", ou seja, àquele que, aceitando finalmente a ética cristã, reinterpretada pelo Espiritismo, "evolui" e passa a frequentar os trabalhos de caridade, junto com Caboclos e Pretos Velhos. O "Exu Batizado", para Ortiz, representaria a submissão do transgressor às normas sociais dominantes.
      Existe uma narrativa mítica para o surgimento da Umbanda, divulgada apenas na segunda metade do século XX, de acordo com o antropólogo Emerson Giumbelli. Esta narrativa corrobora a determinação de afastar a nova religião do universo cultural africano. Segundo ela, a Umbanda teria surgido no início do século XX, mais precisamente no dia 15 de novembro de 1908, quando o espírito de um indígena - o Caboclo das Sete Encruzilhadas - "manifestou-se" num médium de cor branca, bem posto socialmente, morador do interior do Rio de Janeiro, transmitindo-lhe os fundamentos da nova religião. O médium se chamava Zélio Fernandino de Moraes, e é bastante sintomática a "coincidência" com a data da Proclamação da República. Em alguns livros doutrinários, a religião aparecia, junto com a Abolição e a República, como um marco na "evolução" do povo brasileiro. Este "mito de origem" da Umbanda aparece carregado da ética cristã, reinterpretada pelo Espiritismo francês do século XIX. Reafirma-se nele a doutrina espírita baseada nas leis do progresso contínuo dos espíritos, todas assentadas na ideia de reencarnação.
      Segundo a narrativa, o Caboclo das Sete Encruzilhadas trazia de encarnações passadas um conhecimento que extrapolava sua condição de indígena. Tinha ainda enorme erudição livresca, que punha a serviço da edificação da nova religião. Esse conhecimento vinha do fato de ter sido um padre católico em encarnações passadas: o jesuíta Gabriel de Malagrida, natural de Menaggio, norte do atual território italiano. Malagrida foi um missionário que atuou no norte e nordeste do Brasil no século XVIII, tendo sido condenado à morte em Portugal, em 1761, na época do governo do marquês de Pombal. Depreende-se, da narrativa, uma clara tentativa de compatibilizar a herança afro-ameríndia com uma cultura livresca que refletia os valores dominantes na sociedade da época. Sete Encruzilhadas não era, portanto, um indígena qualquer. Trazia em sua "estirpe espiritual" um passado totalmente familiar à civilização cristã ocidental.
      A Umbanda enfatizava uma relação estreita com o catolicismo, talvez como estratégia de aproximação aos valores familiares mais estimados pela sociedade brasileira. Isso aparece muito bem nas denominações dos centros ou "terreiros", que fazem menção aos nomes da Virgem Maria e dos santos, e nas imagens dos mesmos, sincretizadas com os Orixás. Só na segunda metade do século XX ocorreria o processo de "africanização" da Umbanda, onde os valores da negritude e a identidade negra passaram a conquistar mais espaço. A representação dos Orixás começa então a se aproximar da simbologia africana, tendo muitos centros abandonado, inclusive, a correspondência com os santos católicos. Por outro lado, a Umbanda desenvolveu, ao longo do tempo, uma notável capacidade de adaptação às transformações sociais e às diferenças regionais do Brasil, incluindo no seu panteão tipos como o malandro carioca e o boiadeiro nordestino. Dessa maneira a Umbanda mudou inteiramente de feição. Reinterpretando aqui a tradição africana, tornou-se sem dúvida mais capaz de celebrar a diversidade social e cultural brasileira.

Artur Cesar Isaia é doutor em História Social pela USP, professor de História da Universidade Federal de Santa Catarina e organizador da obra Orixás e Espíritos: o debate interdisciplinar na pesquisa contemporânea (Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 2006).

Fonte – Revista Nossa História - Ano III nº 36 - Outubro 2006

Saiba Mais – Bibliografia
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira EDUSP, 1971.
GIUMBELLI, Emerson. "Zélio de Moraes e as origens da Umbanda no Rio de Janeiro". In: SILVA, Vagner (org). Caminhos da Alma. São Paulo: Summus, 2002.
ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda: Integração de uma religião numa sociedade de classes. Petrópolis: Vozes, 1978.
PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados. Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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Saiba Mais – Documentário
Episódio 02 - Bezerra de Menezes
“O médico dos pobres”, assim era conhecido o Doutor Bezerra de Menezes. Saiu de sua cidade, no interior do Ceará, e veio para o Rio de Janeiro estudar medicina, sua grande paixão. O que o diferenciava dos outros médicos? Uma enorme compaixão e espírito de caridade. Fez carreira na política e, ao ser apresentado ao espiritismo, assumiu publicamente a sua posição, causando muita polêmica.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Um príncipe negro contra o racismo

Condecorado por bravura na guerra do Paraguai, d. Obá II d'África pode ser considerado um pioneiro dos modernos movimentos de afirmação da negritude
Eduardo Silva
      A raça negra não era apenas linda - como quis o movimento Black's beautiful da década de 1960 - mas superior aos "mais finos brilhantes", afirmava, em pleno regime escravista, d. Obá II d'África. Um brasileiro de primeira geração, nascido na Vila dos Lençóis, no sertão da Bahia, por volta de 1845, batizado como Cândido da Fonseca Galvão, mas que também era, por direito de sangue, príncipe africano, neto do poderoso rei Alafin Abiodun, unificador do império ioruba.
      A morte de Abiodun, no final do século XVIII, marcou o início da decadência do império ioruba na África Ocidental - no seu auge chegou a controlar a área entre o rio Níger, ao leste, e o rio Volta, a oeste, e a conquistar o reino de Dahomey -, que deixou de ser grande 'vendedor' de escravos para ter seu povo vendido em grande quantidade, 'iorubanizando' a Bahia até 1850. Alafin Abiodun, segundo a tradição oral africana, deixou a fama de sábio e de ter realizado um "longo e próspero" reinado para seus súditos. Poderoso, possuía centenas de esposas e foi pai de nada menos que 660 crianças - segundo o reverendo Samuel Johnson (1846-1901), pastor em Oyó, capital do império, e decano da historiografia ioruba.  
      Presume-se que pelo menos um desses filhos foi aprisionado, acabou vendido em Salvador como escravo e recebeu o nome cristão de Benvindo. Usando seu prestígio como príncipe, Benvindo deve ter conseguido envolver a comunidade ioruba em algum sistema de cotização e comprar sua alforria. Certo é que seu filho, d. Obá II, já nasceu como homem livre.
      Príncipe guerreiro, d. Obá apresentou-se para lutar na Guerra do Paraguai (1864-1870), saindo oficial honorário do Exército, por bravura. Em 1877, fixou residência no Rio de Janeiro, onde passou a fazer campanha por melhores condições de vida, igualdade racial, abolição da chibata e da escravatura.
      Com dois metros de altura, voz firme e modos de soberano, sua figura imponente chamava a atenção. Apresentava-se sempre bem vestido, de fraque, cartola, luvas, guarda-chuva, bengala, pincenê de ouro e suas "finas roupas pretas", como foi descrito pelo viajante alemão Carl Von Koseritz. Ou, em ocasiões especiais, em seu elegante e preservado uniforme de alferes, com galões e dragonas douradas, espada à cinta e chapéu armado com penachos coloridos.
      A elite da época, ignorando a história da África e os direitos reais africanos, entendia d. Obá II como um subproduto da Guerra do Paraguai (ver box), uma espécie de veterano resmungão, "meio amalucado", figura meramente folclórica. Por outro lado, o povo negro reconhecia e seguia sua liderança como príncipe real. Escravos, negros libertos do cativeiro e homens negros livres, ou seja, que nunca foram escravos, não só compartilhavam suas ideias como contribuíam financeiramente para a publicação nos jornais. E depois se reuniam em suas modestas casas para ler em voz alta e discutir os artigos.
      Mas o que interessava tanto aos leitores? D. Obá pensava de um modo bem diverso da elite que via as raças humanas essencialmente diferentes; para ele, pareciam perfeitamente semelhantes, e o valor dos homens não estava na cor da pele, mas no mérito, no valor guerreiro e humano de cada um. Por isso, a defesa da igualdade entre os homens se torna um dos pontos centrais de sua prática política, e a abolição total da escravatura vira sua bandeira de luta pública a partir de 1882.
      Soldado valoroso, defensor da pátria nos campos de batalha, d. Obá II d'África se sentia com autoridade moral para criticar abertamente a classe dominante e os escravistas: "o único desejo que certos ingratos brasileiros têm é serem acompanhados da preguiça, e não desejarem o bem-estar do país, nem coadjuvar o cego desejo da nação inteira em ser de uma só vez lavada a grande mancha da escravidão", publicava o jornal Carbonário, em 8 de junho de 1883.
      Mesmo comprometido com a abolição total, não poupava elogios, através do jornal Carbonário, aos responsáveis por leis como a do Ventre Livre (1871): "Ei-lo o gabinete 7 de março de 1871, onde teve à sua frente os eminentes estadistas [...], o imortal Rio Branco e todos os seus membros bem conhecidos". E também a Lei Saraiva-Cotegipe (1885), conhecida como a dos Sexagenários,"[...] o digno barão de Cotegipe no honrado gabinete de 20 de agosto de 85, que em ambos tenho fielmente militado".
      E quando sentia que o rumo dos acontecimentos necessitava de uma boa ajuda, apelava para as forças do sincretismo afro-brasileiro: "invoco sempre ao bem-estar dos conselheiros enfermos [...] em todas as minhas preces [...] a santa Bárbara e aos mais santos da África", confessou ele em outubro de 1887, no primeiro aniversário da abolição do açoite. Três anos mais tarde, em julho de 1890, após a áurea lei que pôs fim à escravatura, o príncipe negro d. Obá II d’África morria no Rio de Janeiro, mas seu sonho de igualdade sobrevive.

Eduardo Silva é pesquisador na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e autor de Dom Obá II d'África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Fonte – Revista Nossa História - Ano II nº 19 - Maio 2005

Saiba Mais – Bibliografia
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
JOHNSON, Samuel. The history ofthe Yorubas: from the earliest times to the beginning ofthe ritish Protectorate. Lagos: C.S.S., 1976.
KOSERITZ, Carl Von. Imagens do Brasil. São Paulo: Martins, 1943.
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: EDUSP, 1992.

Assista à reportagem: “Ecos da Escravidão”, que traça o longo e difícil caminho do cativeiro à abolição, a luta pela liberdade, as formas de alforria, os principais abolicionistas. Ainda analisa a polêmica: é possível ou não reparar os males deixados à população negra por anos e anos de trabalho escravo?
Os repórteres Carlos Molinari e Débora Brito foram aos principais polos de trabalho escravo no Brasil (Vale do Paraíba, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais).

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