“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O poder de punir

Com raízes nas ditaduras brasileiras, a Polícia Militar mantém uma estrutura autoritária e violenta. Em vez de proteger os cidadãos, serve aos aparatos do Estado
     Nascida na Ucrânia durante a fuga de sua família para a América, Clarice Lispector chegou ao Brasil nos anos 20 e aqui viu sua mãe definhar lentamente em razão de uma sífilis adquirida após sofrer um estupro coletivo por soldados russos. Em 1962, ela escreve uma crônica “baseada em fatos reais” sobre um homem, de apelido Mineirinho, “um facínora”, que morreu ao levar 13 tiros, quando bastava apenas um. No primeiro, um “alívio de segurança”; o “terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”. Em entrevista posterior, e muito próxima de sua morte, ela conta que este foi, talvez, o texto mais importante, porque no décimo terceiro tiro ela mesma havia sido assassinada de tanta revolta, era capaz de sentir a agonia do morto.
     Em 1964, o golpe de Estado desferido pelos militares com amplo apoio e cooperação de elites civis – atualizando a aliança civil-militar que nos anos 30 havia levado Getúlio Vargas ao poder - instaurou uma perversa ditadura tanto mais potente, quanto mais institucionalizada tornava-se a fusão entre justiça civil e militar, em termos de ideais e de procedimentos práticos. A repressão, como nos regimes nazista e fascista na Alemanha e na Itália, foi, aos poucos, vestindo máscaras de legalidade e alterando gradualmente os seus aspectos relativos à liberdade individual e política; até que sete anos depois passasse, como se sabe hoje, à matança sistemática dos militantes de esquerda de menor visibilidade pública.
     Em outra frente, redefinia-se a cidadania através da criminalização/repressão de determinados comportamentos destacando-se os chamados crimes contra a autoridade e de “não conformismo sociopolítico”. Como num quartel, a disciplina, a hierarquia, e a correção exemplar foram pouco a pouco sendo aplicadas indiscriminadamente pelo Estado sobre a população. O historiador Carlos Fico lembra ainda que em 13 de março de 1967, Carlos Medeiros, ministro da Justiça do presidente general Castelo Branco, com a ajuda do chefe do gabinete militar Ernesto Geisel redigiram a Lei de Segurança Nacional legalizando a “Guerra interna” e permitindo que brasileiros civis fossem aleatoriamente acusados e torturados pelo crime de tentativa de subversão da ordem ditatorial estabelecida.
Polícia que espanca
     Em agosto de 2013, a divulgação ostensiva de vídeos na internet nos permitiu ver um grupo de policias espancando uma jovem, mesmo depois de conscientes de sua inteira incapacidade de defesa. É possível acreditar que os primeiros momentos da agressão possam ter ocorrido para imobilizá-la, mas todos os outros, todas as outras longas cenas de espancamento aconteceram por pura vontade de violentar uma mulher já indefesa.
     Talvez valha o parêntesis de um amigo sobre a única diferença que passa pela cabeça do homem que bate, quando quem apanha é uma mulher e não outro homem: é que a vitória sobre ela é mais certa ainda e, portanto, a satisfação do agressor mais plena. Na última semana foi a vez dos professores em defesa de reformas no falido sistema de ensino do qual fazem parte, e antes deles os integrantes do Black Bloc, linha de frente civil no violento enfrentamento provocado pelas manifestações contra as instituições políticas.  Antes deles, há pelo menos 25 anos, favelados, prostitutas, travestis, pobres, negros, indígenas, moradores de rua, entre muitos outros, tem conhecido de bem perto a mão forte do Estado. Como Clarice, todos nós, filhos da Constituição de 1988 e de seu Estado Democrático de Direito, todos nós morremos um pouco.  
     Este período de 25 anos corresponde um pouco mais ou pouco menos, ao tempo em que sociedade e Estado vem submetendo-se ao pacto selado em 88, cujo legado autoritário pode ser encontrado na estrutura jurídica, nas práticas políticas e na violência institucionalizada, com consequências em quase todas as esferas da vida social brasileira.
     “Era uma espécie de triunfo, mas não isento de ambiguidades”. Clarice, novamente, falando de seu mundo interior, se refere à liberdade na qual se vê lançada sem mesmo saber utilizar. De certa forma, o fim do regime militar marca também uma vitória social em termos de liberdade, mas igualmente cheia de contradições, cujo resultado individual e coletivamente incidiu em décadas de silêncio. Negociada, a transição vendeu direitos individuais, políticos e sociais negados durante vinte anos - como o direito à greve, e à liberdade de imprensa, por exemplo - trouxe de volta os exilados políticos, e devolveu o governo aos civis. Em troca, alçou José Sarney à presidência, manteve a fiel Rede Globo de televisão como instituição privilegiada em suas relações com o Estado, não julgou nem puniu nenhum agente do Estado por perseguição, tortura, ou assassinato, e fechou os olhos para as condenações civis e militares proferidas no período anterior.
     Após décadas de exercício de uma mentalidade autoritária no interior das Forças Armadas e no Judiciário, à base da ideologia de Segurança Nacional, nenhuma reforma foi feita nestes setores e muitos dos mesmos servidores se mantiveram em seus cargos, constituindo dia a dia o fracasso brasileiro em construir instituições genuinamente democráticas. Ou, diante da dificuldade de definir graus de democracia, a derrota de grande parte da população que continuou recebendo tratamento autoritário e discriminador por parte daqueles que servem à Justiça (judiciário, polícia, sistema prisional) e que, como na ditadura, continuaram agindo mais para a imposição de normas do que para a efetiva resolução de conflitos. Pode-se mesmo dizer que uma cultura institucional arbitrária e violenta tornou-se marca de grande parte da Polícia Militar que se comporta ainda hoje como um simples órgão de defesa da ordem constituída, e não da cidadania que nem mesmo puderam conhecer.
Revolta na era do tecnoconsumo
     À parte da sociedade que viveu a ditadura restou uma liberdade tutelada e autocensurada, muitas vezes ressentida e sem voz; aos pobres, como de costume, uma liberdade cínica, espremida entre o controle repressivo e as formas de inserção social pela via do consumo. Às gerações nascidas a partir de 1985 foi negada oficialmente uma consciência histórica sobre o passado guerrilheiro e ditatorial, ao mesmo tempo em que, sem historicidade a que se apegar e mergulhadas em formas de comunicação impensáveis até bem pouco tempo, tiveram que encontrar sozinhas sentidos para a liberdade, assim como para a revolta. Fazer isso na era do “tecnoconsumo”, em que o amor pelo outro, pela causa, pela vida, foi sendo transformado no desejo compulsivo por mercadorias tanto “curtíveis”, quanto descartáveis, não parece nada fácil.
     Sobre essa geração e seu modo de viver e de sentir, o escritor norte-americano Jonathan Franzien nota que “se uma pessoa dedica sua existência a ser curtível e passa a encarnar um personagem bacana qualquer para atingir tal fim, isso sugere que perdeu a esperança de ser amado por aquilo que realmente é. E, se tiver êxito na tentativa de manipular os outros para que seja curtido, será difícil que, em algum nível, não sinta verdadeiro desprezo por aqueles que caíram em seu embuste”. Enfim, uma sociedade incapaz de sentir amor é também uma sociedade incapaz de sentir ódio, e se isso chega bem próximo do avesso da natureza humana, só lhes/nos resta cinismo, apatia e, claro, silêncio e mais silêncio. Como num caso de amor, quando não há brigas por tanto tempo, e vinte e cinco anos são apenas o mínimo que podemos contar, é de se esperar que uma das partes, ao menos, esteja vivendo uma fantasia, ou que algumas realidades não estejam sendo verdadeiramente levadas em conta – parafraseando um dos romances do escritor chamado “Liberdade”.  
     Entre “elas” e coexistindo uma “visão condescendente da vida convencional, humana – casar, ter filhos e, finalmente, ser feliz”, fermentada desde o século XIX e que tanto asfixiava a alma de Clarice Lispector, e certo “não saber o que fazer de si mesmo”, de sua liberdade recém-adquirida e de quase insuportável tédio – que a escritora pôde antecipar como melancolia e angústia de gerações posteriores, mulheres atualmente chamam a si mesmas de vadias e vomitam toda a repressão engasgada em um radicalismo confuso, como só elas poderiam fazer. O dever de ser feliz não as convém, legitimidade e ética não bastam para uma existência cujo destino parece estar fora de controle, e à violência social paga-se com a autoviolentação do próprio corpo, da intimidade aberta e devassada nas ruas.
     O austríaco Hans Gumbrecht em recente passagem pelo Brasil lembrou ainda dos “piercings, tatuagens, mutilação autoinfligida e, finalmente, ondas de suicídio; aqueles que são “suas próprias vítimas” quase sempre associam (desde que ainda possam falar) essas atividades com o forte desejo por testar a presença de seus corpos por meio da dor”. Elas, as novas vadias, ao que parece, buscam transformar a moral social ainda vigente da mulher-objeto-sexual, mulher-mera-reprodutora, mulher-esposa-submissa, mulher-independente-carente-vagabunda, conciliando o modo de viver que pode surgir dessa subversão com os acontecimentos mais contingentes do dia a dia. Desde o ônibus lotado até o assédio grosseiro nas ruas, a sádica violência policial, os esforços sobre humanos para alcançar bons salários, pen drives perdidos e vídeos íntimos divulgados na internet, o peso do papel familiar obrigatório e dos ideais de beleza.
     Em cada pedaço dessa luta, encontra-se a construção lenta de individualidades capazes de lidar, em todos os ambientes – linguagem, trabalho, família, desejo -, com situações de anomia social, de perda de historicidade, e, sobretudo, de questionamento de todos os tipos de autoridade. Ainda assim, é de se perguntar pelos sentidos de uma atitude pública tão agressiva em relação ao próprio corpo. De que valerá tal rebeldia quando a moça de seios descobertos na praça pública estiver no metrô superlotado na Central do Brasil? Cansada, sufocada e esfregada, ela será uma mulher como as outras, desrespeitadas pela igualdade de direitos que a colocou ali, no mesmo vagão que qualquer homem que possa pagar os R$3,20 de passagem, e que não tenha o hábito de tratar com elegância uma donzela que vai às ruas seminua, com uma placa no peito: “Sou vadia com muito orgulho”
     Ao mesmo tempo, estudantes “sem ideologia”, sem partido, sem líderes, sem “política”, tal como havia nos anos 60, desencadearam protestos sem pauta definida, sem objetivo “prático” identificável, sem uma única questão a qual possam ser reduzidos ou a partir da qual possam ser explicados. Eles gostam do capitalismo, se servem igualmente da tecnologia, tanto para a organização de suas manifestações, quanto para o simples prazer de “curtir” ou de ser “curtido”. Possuem, em média, situação econômica acima da média, no Brasil que, segundo a mídia e o executivo, vai muito bem das pernas. Ou seja, não são político-partidários anticapitalistas, socialistas ou comunistas, não são pobres se insurgindo contra o Estado, não são minorias em busca de leis afirmativas; reconhecimento e diferença. Talvez, tenham o direito de haver nascido em tempos alheios ao mundo da política, do “novo homem”, e da revolução.
     “Para alguém com a sua formação, tendo em vista aonde a revolução e a ideologia levaram, provavelmente não poderia ser diferente. A liberdade só pode mesmo vir de dentro. A ânsia por esse estado de graça é que é a sua fonte de energia”, diria um biógrafo de Clarice Lispector, sobre sua indignação “apolítica” com o conservadorismo social. Ela mesma acrescentaria que “nem todos são bastante fortes para suportar não ter ambiente próprio, nem amigos” reais – eu diria hoje-, “para carregar duas almas em um só peito”. À vida plácida e burguesa, pode, talvez, faltar uma metade “carismática e selvagem”, que ao encontrar identificação ampla e inesperada pelas ruas e pela internet torna-se cada vez mais disposta a violentar e a violentar-se, faminta de saber mais de si: “mais do que dos outros, estamos precisando de nós mesmos”.
     É pela via da dor que a juventude do êxtase volta a ser protagonista da cena pública, não há alegria e risos genuínos entre vadias, black blocs ou professores, a felicidade se tornou mais profunda, como a de alguém que acaba de sair da prisão. Não por acaso, a ditadura, a tortura, a guerrilha e a Comissão da Verdade começam a fazer eco social, ao menos vinte anos após se constituírem como tema acadêmico relevante em toda a América Latina. Não parece fácil entender ou explicar que o Estado brasileiro tenha optado pela ditadura, a sociedade, pelo golpe militar, ou por que a repressão legal não bastou às autoridades entre 1964 e 1985, e como, evidentemente não basta agora.
     Já em 4 de abril de 1935, precedeu a instauração da ditadura varguista, a aprovação pelo Estado de uma Lei de Segurança Nacional que definia os crimes contra a ordem política e social. “Sua principal finalidade era transferir para uma legislação especial os crimes contra a segurança do Estado, submetendo-os a um regime mais rigoroso, com o abandono das garantias processuais”, nos conta a Fundação que ora leva o nome de Getúlio Vargas. Em 1937, a criação do “Tribunal de Segurança Nacional” inaugurou um tipo de colaboração civil-militar na aplicação da legislação “de exceção”, ou seja, da legislação arbitrária que deveria servir à “Guerra interna”, em nome da “segurança do Estado”; todas nomenclaturas oficiais para repressão civil. À época, como mostra o já citado Carlos Fico, uma pessoa acusada passou a ter que provar inocência, em um contexto no qual as denúncias anônimas e os relatórios policiais sem provas poderiam levar à condenação. Em 1945, após o fim do Estado Novo, a Lei foi mantida nas Constituições brasileiras tornando-se a base de legitimação da ditadura em 1967.
     Ainda assim, a maioria dos acusados nos processos por crimes políticos durante a ditadura não ocorreram por participação em ação armada contra o governo. Muito mais recorrente era a acusação por crimes de associação ou opinião, combinados às campanhas de desqualificação pessoal e de marginalização de gente considerada fora do padrão moral imposto, sobretudo, gays, lésbicas e filhos e filhas de comunistas, “herdeiros do mal”. Já dizia a filósofa Hannah Arendt que a radicalização está relacionada não apenas à violência física e explícita, mas à potencialização ou extinção daquilo que torna o homem Homem, daquilo que lhe permite autonomia: o pensar, a espontaneidade, a liberdade humana. A radicalização “está sempre relacionada à dignidade humana, à pessoa jurídica, mas também à pessoa moral”, como, por exemplo, aconteceu com “os prisioneiros judeus obrigados pelos nazistas a fazer escolhas entre alternativas criminosas” como incinerar ou ordenar vagões cheios de judeus para as câmaras de gás.
     Esse pacto civil-militar iniciado na década de 30 e aperfeiçoado durante a ditadura, com tudo o que ele implica para a formação técnica e psicológica dos agentes da repressão, não se rompe magicamente com a formalização da democracia em 1985, nem com a nova Constituição em 1988. A violência no trato com a sociedade se mantém institucionalizada naquilo que naturalmente chamamos hoje de “entulho autoritário”, exemplificado pela permanência de dispositivos como o Ato de Disposição Constitucional Transitório (ADCT) 23, que dispõe sobre a realocação dos censores, personagens simbólicos da ditadura, em outros cargos da Polícia Federal do novo Estado Democrático.
     Além disso, o cientista social Ruy Mauro Marini, ainda no ano de promulgação da Carta Magna, denunciava como o próprio processo eleitoral de que resultou a Constituinte havia cerceado a possibilidade de uma autêntica representação popular, ao não contemplar a eleição de candidatos avulsos, propostos pelas organizações sociais e de classe e pela cidadania em geral, em benefício do sistema partidário artificialmente imposto pela ditadura. E continua: “A conjuntura muito particular na qual se realizaram as eleições de 1986 – signadas pelo Plano Cruzado – teria contribuído por sua vez, para deformar a configuração da representação política na Constituinte, ao conferir esmagadora maioria ao PMDB - no governo, desde o ano anterior, mediante eleições indiretas”. Assim, apesar de um ou outro lampejo de independência, a Constituinte se fez dentro do quadro institucional surgido em 1964, isto é, sob a pressão de um executivo centralizador e a das Forças Armadas. Hoje, soma-se a isso, o fato de que entre os mais de cem dispositivos não regulamentados desta Constituição estão o piso salarial nacional para professores e agentes de saúde da rede pública determinados apenas em emendas constitucionais.
Linguagem de violência
     Institucionalizada, mas também internalizada pelos seus agentes e naturalizada pela sociedade, a violência continuou imperando absoluta no trato com as classes mais pobres da população, onde as leis ou se calam, ou calam a sociedade, ou simplesmente não existem. Como já está claro, a prática de tortura não se devia a “excessos” de subalternos, mas era determinada pelo alto comando militar e pelo escalão presidencial ditatorial, tal como continua acontecendo, com a importante diferença, ao que parece, de que a mentalidade policial brasileira nos anos 60 e 70 -  muito semelhante àquela levada a cabo pelos executores nazistas três décadas antes, de que a humilhação, o sofrimento e a morte das suas vítimas era estimulada pelo cumprimento nacionalista de seus deveres, quase como um esforço ético - talvez, mas só talvez, faça menos sentido hoje. À impunidade, corporativismo e gosto pelo exercício da autoridade, característicos das instituições militares, fundiu-se o desprezo ou o nojo demonstrados por muitos setores sociais diante de quem vive ou convive com o “submundo”, além dos baixos salários dos policiais militares, e a precária formação em termos de educação formal dispensada e exigida destes.
     No conto de Clarice Lispector, sobre a morte de Mineirinho, a escritora dá vida a uma ideia mais antiga, presente em outros textos seus, de que não há o direito de punir, mas apenas poder de punir: o Estado pune porque é mais forte que os homens, assim como a natureza da representação do crime na mente humana é o que há de mais instável e relativo, já que a punição existe para defender as instituições, como uma necessidade destas pra se manter no poder. O trecho é grande, mas vale à pena até com o fôlego suspenso:
     “Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. [...] Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade. Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso - nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato. O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno”. 

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sábado, 5 de outubro de 2013

Mesma história americana

Líder de grupo neonazista é preso por assassinato. A suástica marcada em seu peito tem pouco a ver com o falecido governo fascista: é usada como instrumento de identificação com a imposição da ordem pela violência.
Joelhos contra o chão, botas de soldado e mãos erguidas atrás da cabeça. Cada pedaço do corpo parecia esculpido, perfeito, trabalhado como uma máquina cuja marca estava inscrita no peito. A suástica nazista de Derek Vinyard (interpretado por Edward Norton) não é uma espécie de ode a Hitler ou ao já falido regime alemão, mas um didático instrumento de identificação com a violência como forma de defesa da propriedade, do lar confortável, do emprego estável, da mulher submissa, da pele branca e dos seus hipnotizantes olhos azuis. Não há como deixar de mencionar o olhar assassino do protagonista lançado à vítima, antes do golpe final, quando o negro que tentara roubar seu carro aguarda a morte mordendo o meio-fio.
     Esta não é A Outra história Americana, é a mesma, aquela do dogma da democracia dos mais fortes e do progresso utilitário da natureza humana. Embora nenhum dos dois lemas tenha nascido ali, foi nos Estados Unidos dos anos 70 do último século que a sua combinação deu lugar a um espírito americano copiado em quase todas as partes do mundo ocidental, e muito bem representado na cena de abertura do filme. Derek é o homem com senso de autoconfiança inabalável, consciência política moldada às restrições da mente profundamente capitalista, e uma voracidade carnal latente e expressa em quase todas as suas relações. 
     Em publicação recente, o historiador Ciro Flamarion Cardoso discute Por que os humanos agem como agem e afirma de antemão que esta é sempre uma questão de tempo. Aqui, dois grandes processos se combinam: as determinações estruturais, algo que nos torna filhos de uma época e que foge ao controle e muitas vezes à consciência individual e coletiva; e os mecanismos que nos levam a escolher entre uma e não outra possibilidade de viver e de sentir, com todos os seus valores e implicações. Em grande medida esta é não só a questão que move a narrativa dirigida pelo inglês Tony Kaye em 1998, mas um impasse existencial, objeto da História e a motivação individual para a obsessão pela memória e pela capacidade de explicar onde foi que as coisas deram errado.
     Em busca dessa resposta, o diretor dá menos importância aos movimentos públicos, caricatos e reduzidos à estética do poder e da violência, eles aparecem como manifestações arruaceiras, passatempo de jovens vagabundos talvez, certamente tendências passageiras da superfície social. Stacey (Fairuza Balk), a namorada de Derek, por exemplo, tem enormes olhos e lábios, usa calças justas de couro e coturnos violentamente sedutores, repete frases pela metade, hinos coletivos e regozija-se com o poder aparente das massas em êxtase ao invadir mercearias de chineses ou latinos. Danny (Edward Furlong) é o irmão de aparência andrógina, apaixonado pela autoridade e, consequentemente, fascinado pela obediência quase como se este fosse o seu vínculo erótico, muito mais do que uma percepção do raciocínio. São personagens apresentados como menos complexos; menos resistentes diante da força das tradições americanas que emergiram após o ano de 1968.
Apropriação da suástica
     Ao mesmo tempo em que a data tornou-se o ápice de um movimento de transformação no pensamento de esquerda no mundo, a reação no campo oposto da política e da cultura não deixou por menos. Nos Estados Unidos, Martin Luther King não viveu para se sentar à “mesa da fraternidade” com a qual sonhara; e a luta dos negros e dos homossexuais, assim como toda a consolidação do multiculturalismo como “política da diferença”, da singularidade, e não mais das classes, foi acompanhada pelo crescimento dos movimentos de extrema direita, municiados agora pela experiência histórica da indústria da morte nazista.
     A apropriação de símbolos como a suástica ou a saudação a Hitler somou-se a um espírito que não poderia ter surgido senão no país mais poderoso do mundo após a Segunda Guerra Mundial; em uma nação cuja história e identidade nacionais estavam alicerçadas pela crença em uma vocação divina para a conquista. Sobre a chegada do homem à lua, o presidente Richard Nixon teria afirmado em 1969 que se tratava do evento mais importante desde a Criação, “prontamente colocando Jesus Cristo no seu lugar”, lembra o historiador húngaro John Lucáks. E para completar essa espécie arriscada de fórmula estrutural para a simpatia pelo ódio racial norte-americano, a onda de desemprego e inflação nos anos 70 parece imprescindível, de modo que o discurso do amor pela “Nação”, pela “Pátria”, vai incluindo pouco a pouco uma ira que se volta contra as pessoas reais, numa luta diária pelo sonho americano.
     Contingência, acaso, fatalidade, ou como quer que se defina aquilo que Bob Dylan chamou em 1975 de Simple Twist Of Fate, a prisão inesperada foi o acontecimento que levou o líder neonazista Vinyard à experiência vertiginosa do fim da história linear. Um retrato difuso de si, de suas convicções e de todo o seu próprio passado emergem diante da incapacidade de controlar as circunstâncias, de prever as relações e reações à sua volta, de organizar em arquivos mentais separados o certo e o errado, o branco e o preto, a liberdade e a submissão. A suástica no peito antes utilizada como demonstração de força, produz agora outro de tipo de atração entre os seus pares, que o fazem vítima de um estupro coletivo durante o banho.  A cor da pele, até então entendida como senha para os direitos cívicos do homem americano e de uma consciência heroica que legitima a violência da dominação, torna-se simplesmente indiferente; deixa de ser algo contra o qual se deva defender num ambiente em que, ao contrário, a sobrevivência não depende da singularidade, mas das tentativas realizadas por cada um e por cada grupo para construir uma identificação.
Reorganização do passado
     O processo trilhado por Derek para recolher os pedacinhos de sua identidade e dar novo sentido à sua história passa por uma reorganização do passado cuja fonte é a própria memória afetiva. As cenas de um cotidiano já distante, à mesa do café e com a presença do pai (um bombeiro morto heroicamente) ganham sons e cheiros. Os diálogos entrecortados pela mastigação discutem o quanto os imigrantes estão roubando empregos, minorias conquistando direitos, espaços e bens, enfim, sobre o quanto as coisas estavam mudando.
     Nessa história americana, como em qualquer outra, compreender as possíveis raízes de sentimentos individuais, a forma pela qual os conceitos viram verdades e as ideologias tornam-se formas de viver, não pode resolver as contradições que impregnam a vida no tempo presente, mas será sempre um bom caminho para enfrentar aquilo que nos faz ser quem somos.
Direção: Tony Kaye
Ano: 1998
Áudio: Português
Duração: 118 minutos

Saiba mais - Filme
Tolerância Zero
Um dos filmes mais perturbadores da história do cinema. "Tolerância Zero" é a história verídica de Danny Balint, um jovem aluno de uma escola judia de Nova York, que com os anos se transforma em um furioso skinhead e passa a perseguir estudantes judeus. Aos poucos Danny começa a descobrir sua personalidade neofascista, ao mesmo tempo que tenta entender o significado do judaísmo em sua vida. Considerado pela crítica como um dos melhores filmes americanos do começo do século, Tolerância Zero é um filme intrigante com memoráveis interpretações.
Direção: Henry Bean
Ano: 2001
Áudio: Português
Duração: 98 minutos
Tamanho: 339 MB

domingo, 29 de setembro de 2013

Enredo de Novela

Sonegação, paraíso fiscal, roubo de documentos... Mensalão da Globo ainda terá muitos capítulos pela frente.
    Poderia ser roteiro de novela. Ou de um filme B. Mu­lher em férias vai ao local de trabalho com uma sa­cola e sai com milhares de páginas de um processo que envolve a cobrança de R$ 615 milhões. Seis anos de­pois, um homem tenta ven­der os papéis comprome­tedores, no submundo da informação, por 200 mil re­ais. Como todo roteiro de thriller sobrevive graças à tensão da dúvida, nes­te caso a incerteza é: a mu­lher agiu para ajudar ou prejudicar a empresa da qual era cobrada a fortuna? O caso envolvendo a Globopar, controladora da TV Globo, ilustra o impacto da internet na Era da Informação. Num passado não muito remoto, os documentos rela­tivos à autuação pelo Fisco do maior grupo de comunicação do Brasil provavelmente ficariam dormentes nas gavetas de repórteres investigati­vos de empresas concorrentes por causa do pac­to de silêncio que vigora entre quase todos os homens brancos, ricos e reacionários que con­trolam a grande mídia.
     Agora, o cerco foi rompido por um blog – logo apelidado carinhosamente de “Organiza­ções Cafezinho”. Miguel do Rosário, que toca O Cafezinho, é blogueiro sujo. Foi dele o furo so­bre a existência do processo de sonegação da Globopar. Sob o título Bomba! O Mensalão da Globo, Miguel escreveu: “A emissora disfarçou a compra dos direitos de transmissão dos jogos da Copa do Mundo de 2002 como investimentos em participação societária no exterior”. A notí­cia foi compartilhada por mais de 2 mil pessoas nas redes sociais e deu início a um típico turbi­lhão “internético”. Em algumas horas, havia sido replicado ou comentado em dezenas de blogs. A versão original e as que se inspiraram nela foram disseminadas rapidamente nas redes sociais – a reprodução publicada no Viomundo foi compar­tilhada por 10 mil leitores no Facebook. Uma re­percussão à altura do Jornal Nacional.
     Tanto que a Globopar foi forçada a emitir notas oficiais apresentando sua própria versão, algo inédito. Nêmesis dos Marinho, neste caso, Miguel do Rosário escreveu durante 15 anos sobre café numa newsletter criada pelo pai, José Barbosa do Rosário, que por ironia foi repórter de O Globo. Isso explica o nome do blog mantido por ele, que viu a audiência saltar de 5 para 50 mil leitores diários nas últimas semanas.
     Miguel tem cerca de 300 assinantes (calcula em 36 mil reais seu faturamento em 2012, contra 12,6 bilhões de reais das Organizações Globo). O Cafezinho exibe um único anúncio, da Rede Bra­sil Atual, enquanto as Organizações Globo aboca­nham mais de 45% de todas as verbas publicitá­rias do governo federal, acumulado de 5,9 bilhões de reais entre 2000 e 2012. A força dele e de outros blogs “sujos” reside na horizontalidade. Em tese, não existe hierarquia entre blogueiro e comenta­ristas: eles frequentam diferentes espaços na blo­gosfera, fazendo sugestões de conteúdo, críticas e debatendo com outros leitores. Atuam como abe­lhas polinizadoras. Tudo muito distante da hie­rarquia verticalizada das Organizações Globo, em que a família Marinho manda e quem tem juízo obedece. Talvez os globais tenham sido pegos de surpresa pela repercussão da denúncia. Quem lida com a blogosfera, não. Foram os próprios leitores, de forma voluntária, que fizeram o trabalho de formiguinhas. As 12 páginas de documentos em papel timbrado da Receita Federal – parte do pro­cesso contra a Globo – compartilhadas por Miguel no site de hospedagem Slide Share, logo bateram 160 mil visualizações.
     O que dizem os docu­mentos? Na versão da Re­ceita, a Globo simulou uma operação de investimento nas ilhas Virgens Britâni­cas, refúgio fiscal do Ca­ribe, através de uma em­presa de fachada de nome Empire. Objetivo: deixar de recolher os impostos devidos no Brasil na com­pra dos direitos de trans­missão da Copa do Mundo de 2002. Por conta disso, a Receita cobrou, em outu­bro de 2006: 183 milhões de reais em imposto sonegado, 157 milhões de reais em juros de mora e 274 milhões de reais em mul­ta, totalizando 615 milhões de reais.
     O auditor fiscal Alberto Sodré Zile, que assinou a representação fiscal para fins penais, na qual foi nomeado um dos irmãos Marinho, José Roberto, escreveu que em tese houve crime contra a ordem tributária, cometido pela Globopar ao “omitir in­formação ou prestar declaração falsa às autorida­des fazendárias”. A julgadora Maria de Lourdes Marques Dias, encarregada de avaliar o recur­so final da empresa, escreveu que a fiscalização “constatou a existência de simulação”. Nas pala­vras dela, a Globo adquiriu “em aparência, uma pessoa jurídica com sede nas Ilhas Virgens Britâ­nicas; no entanto, menos de um ano depois, a so­ciedade é dissolvida e seu patrimônio vertido para que a TV Globo obtivesse a licença que a permitiria transmitir os jogos da Copa do Mundo de 2002”.
     Numa de suas notas oficiais a respeito do caso, a Globopar negou irregularidades e afirmou que apenas escolheu “uma forma menos onerosa e mais adequada no momento para realizar o negó­cio, como é facultado pela legislação brasileira a qualquer contribuinte”. A empresa também asse­gurou que não tinha dívidas com a Receita por ter aderido ao Refis – programa que permite parce­lamento e abate valores da dívida. Segundo a le­gislação brasileira, quitação de dívida com o Fis­co extingue a possibilidade de processo criminal.
     Apesar das declarações públicas da Globopar, militantes digitais passaram a exigir algum tipo de comprovante do pagamento. Estranhavam o fato de o processo 18471.000858/2006-97, nas consultas feitas através do site do Ministério da Fazenda, aparecer com o movimento congelado em 29 de dezembro de 2006. O que teria acontecido para permanecer parado por mais de seis anos? A resposta foi dada pela própria blogosfera. No caso do Viomundo, por um repórter investigativo que não quer se identificar. Ele foi um dos internautas que descobriram que uma agente administrativa da Receita Federal, Cristina Maris Meinick Ribeiro, tinha sido condenada a 4 anos e 11 meses de prisão no início de 2013 pelo sumiço dos processos da Globo, que tramitavam conjuntamente – a representação para fins penais e a cobrança dos 615 milhões.
     Dias depois, o mesmo repórter levantou na Justiça Federal do Rio de Janeiro que Cristina responde ou respondeu a outros 14 processos, a maioria por fraudes eletrônicas no sistema da Receita que beneficiaram empresas endividadas com o Fisco. Em todos os casos, proprietários, sócios ou funcionários das empresas supostamente beneficiadas por Cristina se tornaram réus ou pelo menos foram chamados a testemunhar. A notável exceção foi a Globopar. Se Cristina agiu sistematicamente para beneficiar devedores, por que teria feito diferente no caso da Globo?
     “A Globo Comunicação e Participações não é parte no processo [contra Cristina], não conhece a funcionária e não sabe qual foi sua motivação”, afirmou a empresa dos Marinho em nota. Além disso, a Globopar disse ter ajudado a Receita a recompor os processos, que teriam voltado a tramitar – sugerindo, assim, que não tirou nenhum proveito do que chamou de “extravio”. Mas o blogueiro Fernando Brito, de O Tijolaço, fez uma cronologia do caso e cravou que o sumiço do processo beneficiou a Globopar. Ele escreveu: “1– A Globo é autuada em 16 de outubro de 2006 por sonegação de impostos devidos pela compra dos direitos de transmissão da Copa de 2002. Total da autuação: 615 milhões de reais. 2 — No dia 7 de novembro, José Américo Buentes, advogado da Globo, passa recibo de que recebeu cópia da autuação. 3 – No dia 29 deste mesmo mês, a Globo apresentou uma alentada defesa, de 53 páginas, pedindo a nulidade da autuação. 4 — No dia 21/12/06, a defesa da Globo foi rejeitada pelos auditores. 5 — No dia 29/12/2006, o processo é remetido da Delegacia de Julgamento I, onde havia sido examinado, para o setor de Sistematização da Informação, de onde são expedidas as notificações. Uma sexta-feira, anote. 6 — Sábado, 30; Domingo, 31; Segunda, 1° de janeiro, feriado. Dia 2, primeiro dia útil depois da remessa do processo ao setor, a servidora Cristina Maris Meirick Ribeiro, que estava de férias, vai à repartição, pega o processo, enfia numa sacola e o leva embora. 7 — Até o simpático Inspetor Clouseau concluiria, portanto, que ela foi mandada lá com este fim. Estava só esperando chegar lá o processo. Chegou, sumiu. 8 — Não é preciso ser um gênio para saber a quem interessava que o processo sumisse antes da notificação, para que não se abrisse o prazo de decadência do direito de recorrer e conservar a regularidade fiscal”. Ou seja, Brito responde com “Globopar” quando se faz a pergunta clássica: a quem interessava o crime? Mas, como se trata de uma novela, a trama pode ser mais complicada do que parece.
     Depois de uma temporada no Rio de Janeiro, o repórter investigativo Amaury Ribeiro Jr. apurou que a íntegra do processo da Globo na Receita está sendo oferecida no mercado clandestino da informação por 200 mil reais, o que sugere que o sumiço da papelada pode ter sido ação de uma quadrilha de achacadores interessada em extorquir a Globo. Negociações para entrega dos documentos teriam resultado até em tiroteio e morte, uma versão para a qual não existem provas materiais ou testemunhas dispostas a falar.   
     Por sua vez, o blogueiro Rodrigo Vianna, de O Escrevinhador, que trabalhava na Globo como repórter em 2006 – assim como o autor deste texto – testou outra hipótese. Lembrou-se de que a cobertura das eleições presidenciais daquele ano foram marcadas por mudança de postura da Globo. Na temporada que antecedeu o primeiro turno, a emissora adotou pauta dominada por fortes ataques ao candidato Lula, beneficiando o candidato tucano Geraldo Alckmin. Rodrigo escreveu que “a cobertura global da eleição mudou completamente no segundo turno, tornando-se mais ‘suave’. Em novembro de 2006, um colega que também era repórter da Globo e que mantinha bons contatos com Marcio Thomaz Bastos (então ministro da Justiça de Lula) disse-me: ‘Rodrigo, agora eles sentaram pra conversar, o governo e os Marinho’”.
      A especulação de Vianna ganha alguma credibilidade por conta das datas: o primeiro turno foi em primeiro de outubro de 2006, a Globo foi autuada em 16 de outubro, Lula se reelegeu em 29 de outubro de 2006 e, esgotado o trâmite interno na Receita, o processo em que a Globopar era cobrada em R$ 615 milhões sumiu no dia 2 de janeiro de 2007. Tanto a tese da ação de achacadores quanto a de um acordo pelo qual gente ligada ao governo Lula teria interesse em ajudar a Globopar são, por enquanto, meros exercícios de especulação. O caminho natural para desvendar a trama seria ouvir a funcionária condenada da Receita, Cristina Ribeiro.
      O Ministério Público do Rio de Janeiro, pelo menos no papel, disse que tentou fazê-lo. “O MPF ofereceu várias oportunidades para que a servidora cooperasse com as investigações e indicasse os eventuais co-autores do delito, porém a ré optou por fazer uso de seu direito constitucional ao silêncio”, afirmou em nota. Em sua nota de 10 de julho, a Globo Comunicação e Participações reiterou não ter “qualquer dívida em aberto com a Receita”. Ou seja, deixou implícito que as acusações contra ela eram assunto do passado.  
     No entanto, o repórter Amaury Ribeiro Jr. apurou que a empresa teve contas bancárias bloqueadas recentemente. Em maio de 2013, tramitava na Justiça Federal do Rio a ação de execução fiscal número 2009.51.01.503546-4, proposta pela Fazenda Nacional contra a Globopar, referente a uma dívida que em 9 de setembro de 2010 era mais de 173 milhões de reais. Por causa do sigilo fiscal, a Receita Federal diz que não pode dar informações. Instigado por entidades da sociedade civil, o Ministério Público do Distrito Federal abriu apuração criminal preliminar sobre o caso – em 90 dias, decide se transforma ou não em inquérito. O deputado Protógenes Queiroz propõe uma CPI da Globo, mas terá dificuldades para recolher assinaturas num Congresso em que tantos deputados e senadores são parceiros ideológicos ou comerciais da emissora.
     As redes sociais e as ruas, no entanto, continuam a fustigar os irmãos Marinho. Nas manifestações de junho e julho, pela primeira vez milhares de pessoas protestaram diante das sedes da Globo no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Maceió, Fortaleza, Salvador e Porto Alegre. Ironicamente, os irmãos Marinho, que advogam a necessidade de transparência nos negócios de Estado e são concessionários de um serviço público, pediram às autoridades a investigação de quem vazou a existência dos processos que comprometem a Globo.
     Peça-chave para esclarecer a trama, Cristina Ribeiro apagou seu perfil no Facebook e trancou-se no apartamento que divide com a mãe na avenida Atlântica, em Copacabana. Um imóvel similar ao que ela ocupa, no mesmo prédio, foi avaliado em 4 milhões de reais. Por telefone, Cristina disse a este repórter que nem sabia que tinha sido condenada em janeiro de 2013 pelo sumiço dos processos. A lei do silêncio imposta pelos barões da mídia sobre seus próprios negócios – eventualmente suspensa por conta de disputas comerciais entre eles –, para todos os efeitos, foi sepultada. O gigante vertical tremeu diante da rede horizontal tecida a partir de um certo Cafezinho. “Fora Rede Globo, o povo não é bobo”, bordão que surgiu nas longínquas greves do ABC paulista, nos anos 80, ganhou versão digital: “Globo Sonega”, que militantes projetaram sobre o prédio paulista da emissora, como se fosse uma logomarca iluminada do século 21.

Assista a reportagem: A mulher condenada por sumir com processo da Globo

Muito Além do Cidadão Kane - Sorria você está sendo Manipulado
     Produzido pela BBC de Londres e dirigido por Simon Hartog, “Muito Além do Cidadão Kane”, documentário cujo o título faz menção ao célebre personagem de Orson Welles no filme Homônimo. Após cinco anos de pesquisas este documentário tem o propósito de desvendar como um só homem pode dominar a forma de como todo um país recebe a sua informação, como essa situação foi construída e mantem-se no poder até os dias de hoje.
     Em visita ao Brasil, nos anos 80, o inglês Simon Hartog conheceu o império do Sr. Roberto Marinho e se impressionou com a estrutura edificada e o homem por trás dela, concentrado em Marinho e na TV Globo, por que ele é o exemplo mais radical da prostituição entre a política e imprensa no Brasil.
      O documentário traz depoimentos de políticos, artistas, jornalistas, como Brizola, Chico Buarque, Walter Clark, Armando Nogueira, Antonio C. Magalhães, Lula entre outras personalidades brasileiras. O Apoio da globo a Ditadura o desprezo pelas Diretas Já, e as eleições Collor X Lula, analisando a cobertura da Globo em episódios que marcaram a história do país.
     Muito Além do Cidadão Kane mais do que falar da TV Globo, relata sobre os processos e emaranhados que determinaram a política de telecomunicações do Brasil.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Guerrilheiros na primeira viagem

Treinados em Cuba e com apoio de Brizola, ex-militares prepararam-se para inaugurar a luta armada em Caparaó. Ficaram no sonho.
     Mesmo sob censura, deu no jornal: sete homens presos no alto da serra do Caparaó portando armamentos e manifestos contra o governo. Era abril de 1967, e foi a primeira vez, desde o golpe civil-militar, que um movimento armado ganhou ampla repercussão na imprensa.
     O grupo preso era formado por militares de baixa patente que haviam participado de movimentos reivindicatórios antes de 1964. Inicialmente, o governo procurou minimizar a importância dos acontecimentos, afirmando que a prisão “não afeta a segurança nacional nem revela um caráter perigoso” e que o “Exército considera ridículo que apenas oito façam guerrilha”, como registra o Jornal do Brasil nos dias 4 e 5 de abril daquele ano. Dias depois, começaram a surgir informações contrárias na mesma publicação. Declarações como a de que o Exército “está aos poucos fechando o cerco sobre os possíveis guerrilheiros” e que eles “foram vistos armados de metralhadoras, entre São João da Pedra Menina, na divisa dos estados de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro” aparecem na edição do dia 8 no JB.
     O fato de aparecerem notícias de que havia um grupo armado em luta contra o regime, ainda que não se soubesse o número de pessoas envolvidas, representou um sopro de esperança para as diversas correntes que aspiravam por ações efetivas contra a ditatura. Quem eram, afinal, os guerrilheiros dos quais tanto se falava naquele abril de 1967? O que eles queriam? Representavam eles, como estampava a revista O Cruzeiro em 15 de abril de 1967, “uma vasta organização de guerrilhas [que] está minando aquele Estado [Minas Gerais] e, possivelmente, outras regiões do país”?
     As respostas a essas indagações remetem a períodos anteriores ao golpe, no tempo de radicalização das lutas políticas no governo João Goulart (1961-1964). Além de ex-militares, a maior parte dos presos pela participação na guerrilha do Caparaó tinha em comum a passagem pelo movimento liderado por Leonel Brizola, a Cadeia da Legalidade, que garantiu a Goulart assumir a presidência em 1961 – ainda que com os poderes restritos pela implantação do regime parlamentarista. Eram sargentos e marinheiros que haviam ajudado no planejamento de uma possível guerra civil envolvendo os defensores de Goulart e os militares golpistas. Ao mesmo tempo, eles já participavam ativamente da clandestina Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFN) e do Clube dos Subtenentes e Sargentos do Exército. Reivindicavam melhorias salariais, relações respeitosas por parte dos oficiais, direito ao casamento e ao exercício de cargos legislativos. Aproximaram-se ainda dos setores sindicais em suas reivindicações pela criação de uma Central Geral dos Trabalhadores, bem como de ações antiimperialistas, contrárias às empresas multinacionais e aos Estados Unidos.
     A politização dos subalternos das Forças Armadas ganhou projeção até colocar em risco, na visão dos oficiais, a quebra da hierarquia militar. Quando se consumou o golpe de 1º de abril de 1964, centenas de militares foram presos ou expulsos de suas corporações. Muitos deles, após cumprir pena nos presídios militares, foram buscar apoio de Leonel Brizola, que estava exilado no Uruguai. Brizola procurava organizar um movimento de oposição ao regime ditatorial e acreditava poder repetir a experiência que havia garantido a posse de Goulart em 1961. Em Montevidéu, uniu-se a militantes exilados de diversas tendências de esquerda, como Avelino Capitani, Amadeu Felipe de Luz Ferreira e Jelcy Rodrigues. Nascia, sob a sua liderança, o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), sigla que comandou a organização da guerrilha do Caparaó.
     Os militantes sofreram forte influência da Revolução Cubana (1959), iniciada por um pequeno núcleo de combatentes liderados por Fidel Castro e Che Guevara. Instalado a princípio na Sierra Maestra, aos poucos o grupo expandiu suas forças até derrubar a ditadura do general Fulgêncio Batista (1901-1973). Esse processo, então batizado de foquismo, passou a ser apregoado pelos revolucionários cubanos como válido para toda a América Latina. Quatro militantes do MNR haviam feito treinamento militar em Cuba. O próprio Brizola aderiu ao carisma dos dirigentes cubanos e à estratégia de luta armada. Dessa aproximação vieram recursos financeiros para a guerrilha que estava sendo organizada no Brasil.
     A primeira tentativa de luta armada se deu no início de 1966, no Rio Grande do Sul, organizada pelo mesmo grupo comandado por Brizola. Foi alugada uma casa em Porto Alegre para guardar armas e materiais, enquanto se arregimentava o contingente de homens necessários. Três militantes fixaram residência no local para manter a fachada de normalidade. Dois outros foram enviados para fazer contatos no Rio de Janeiro com antigos participantes do movimento dos sargentos e marinheiros. Ao mesmo tempo, membros do MNR arregimentavam militares de quartéis da própria região porto-alegrense, entre os que haviam participado do movimento legalista de 1961. Os planos foram descobertos pela polícia depois da prisão de um militante.
     O plano de guerrilha transferiu-se, então, para a serra do Caparaó, por sua localização estratégica entre Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Com apoio de Brizola, militantes do MNR começaram a chegar à região em novembro de 1966, instalando-se como criadores de cabra em um sítio da família de um deles. Quando o contingente de recrutados aumentou, subiram para o pico da serra para não serem vistos pela população. Os primeiros meses foram utilizados para transportar e estocar armas e alimentos. O grupo possuía fuzis, metralhadoras, dinamite e munição, ainda que não fossem equipamentos modernos. 
     Não tinham a pretensão de derrubar a ditadura militar sozinhos.  Baseando-se na teoria do foco guerrilheiro, acreditavam que conseguiriam resistir ao cerco do Exército até a eclosão de outros movimentos de guerrilha e a intensificação da oposição nas cidades. Antes mesmo do início da luta, porém, diversos problemas já haviam derrotado esse projeto de luta armada. A começar pelo clima, com muita chuva, frio e umidade durante quase todo o ano. Havia também o problema do estoque de comida, que foi infectado por ratos e levou alguns militantes a contraírem peste bubônica. Depois de vários meses, alguns membros do grupo questionaram se tinham realmente capacidade política e militar de continuar com a ação. As deserções iniciaram-se em março de 1967.
     A população já vinha relatando à polícia a presença dos guerrilheiros. Os policiais observavam a movimentação à distância e, em 24 de março, prenderam dois militantes que haviam abandonado o grupo. No dia 29, um terceiro foi preso ao tentar descer até a cidade para comprar medicamentos. Ao descobrirem a origem e o objetivo da ação, os policiais mineiros subiram a serra e chegaram ao pico na manhã do dia 1º de abril de 1967. Encontraram os guerrilheiros dormindo. Não houve troca de tiros. Nos dias seguintes, outros membros do grupo foram presos nas cidades vizinhas tentando subir a serra para se juntar aos companheiros. Chegava ao fim, sem se concretizar, a primeira tentativa de luta armada contra a ditadura militar.
     Os eventos do Caparaó coincidiram com o surgimento da guerrilha na Bolívia – liderada por Che Guevara, conforme se descobriria depois – que recebia ampla cobertura da imprensa brasileira. Talvez essa coincidência tenha levado o Exército ao duplo discurso registrado pela imprensa: inicialmente, minimizar a importância da guerrilha no Brasil, evitando a expansão de sua influência para outras áreas do país e, depois, sobrevalorizar os seus efetivos, para justificar a repressão oficial.
     Os participantes da guerrilha do Caparaó não consideraram a experiência uma derrota para o projeto da luta armada, afinal cumpriram um papel importante: denunciaram ao país que havia uma ditadura liderada por militares e que setores da sociedade estavam dispostos a pegar em armas para derrubá-la.

Jean Rodrigues Sales é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor de A luta armada contra a ditadura militar: a esquerda brasileira e a influência da revolução cubana (Perseu Abramo, 2007).

Saiba mais - Bibliografia
COSTA, José Caldas da. Caparaó: a primeira guerrilha contra a ditadura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
ROLLEMBERG, Denise. O apoio de cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.

Saiba mais - Internet
GUIMARÃES, Plínio Ferreira. Caparaó, a lembrança do medo. Dissertação de mestrado em História. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006. www.ufjf.br/ppghistoria/files/2009/12/Plinio-Ferreira-Guimar%C3%A3es.pdf

Saiba mais - Filme
Caparaó
 “Afinal apareceu uma coisa diferente no Brasil coisa que de certo modo quebra a monotonia cotidiana: guerrilheiros em Caparaó” Carlos Drumond de Andrade. O Estado de Minas. Abril/1967.

O filme retrata a primeira tentativa de luta armada organizada contra o regime militar no Brasil pós 1964. No alto da Serra do Caparaó, na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais, em agosto de 1966, um grupo  formado na sua maioria por ex-militares expurgados pelo regime, se  instalou em condições precárias, iniciando um rigoroso treinamento militar, na tentativa de preparar o que seria o início de uma grande reação nacional contra o novo regime.
A guerrilha foi patrocinada pelo presidente cubano Fidel Castro e organizada por Leonel Brizola, durante o seu exílio no Uruguai. Para reprimir o movimento o governo militar utilizou cerca de 3.000 homens do Exército, Aeronáutica e Policias Militares de Minas e Espirito Santo, numa das maiores operações militares realizadas no país. Através dos depoimentos de ex-guerrilheiros, escritores, jornalistas, policiais militares, e todos os envolvidos diretamente com a guerrilha; o filme pretende dar novos significados para  a   tentativa de se fazer uma “Sierra Maestra” em terras brasileiras.
Recebeu os seguintes prêmios: Melhor Filme Brasileiro no Festival É Tudo Verdade/2006; Melhor Filme, Melhor Roteiro e Melhor Pesquisa no Recine/2006.
Direção: Flavio Frederico
Ano: 2007
Áudio: Português
Duração: 77 minutos
Hércules 56
Em setembro de 1969, quando o Brasil era governado por uma Junta Militar, duas organizações revolucionárias, a Dissidência Universitária da Guanabara (DI-GB) que adotou o nome de MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), e a ALN (Ação Libertadora Nacional), aliaram-se para raptar o embaixador dos EUA, Charles Burke Elbrick. Em troca do diplomata foi exigida a divulgação de uma manifesto revolucionário e a libertação de quinze presos políticos, representantes à época de todas as tendências políticas que combatiam a ditadura. Banidos do território nacional e com a nacionalidade cassada, eles foram conduzidos ao México no avião da FAB Hércules 56. Para rememorar o episódio e discutir as causas e consequências da luta armada naquela época, o filme traz à cena os nove remanescentes do grupo de presos e promove o reencontro de cinco membros das organizações responsáveis pelo sequestro.
Os personagens principais do filme são os: Agonalto Pacheco, Flávio Tavares, José Dirceu, José Ibrahin, Maria Augusta Carneiro Ribeiro, Mario Zanconato, Ricardo Vilas, Ricardo Zarattini e Vladimir Palmeira. Os que já faleceram estão presentes através de materiais de arquivo: Luís Travassos, Onofre Pinto, Rolando Frati, João Leonardo Rocha, Ivens Marchetti e Gregório Bezerra.
Direção: Sílvio Da-Rin
Ano: 2007
Áudio: Português
Duração: 77 minutos

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Assim se constrói um planeta desigual

No preço decomposto do seu cafezinho emerge intermediação global, que espolia agricultores e provoca inflação cada vez mais segregadora.
     A visão que herdamos é a de que lucro se gera na empresa, que paga aos trabalhadores menos do que o valor obtido. Isto sem dúvida é verdadeiro, quer chamemos o valor obtido de lucro, de mais valia, ou, de maneira mais neutra, de excedente. Não há muito a acrescentar neste debate. O que queremos aqui focar é como este lucro se desloca na cadeia produtiva. É cada vez menos o produtor que se apropria do resultado do valor agregado de um determinado produto, e cada vez mais o intermediário. Um exemplo prático, extraído do excelente estudo sobre a aplicação de ciência e tecnologia à economia agrícola, nos dá a dimensão do problema¹.
     O gráfico (abaixo) mostra como se forma a cadeia de preços de um produto, o café, à medida que avançamos na cadeia produtiva, desde a produção do grão pelo agricultor, até o momento em que é transformado na bebida que tomamos. Ou seja, a evolução do preço da porta da fazenda em Uganda, à porta do bar no Reino Unido, desde os 14 centavos de dólar pagos a quem produziu o café até o equivalente de 42 dólares que pagamos no bar.
     É bom seguir a evolução das colunas, que representam o valor obtido em cada etapa: porta da fazenda, comercialização primária (trader price), colocado no porto em Mombasa, colocado em Felixstowe no Reino Unido, custo do produto após processamento na fábrica, preço na prateleira do supermercado e, finalmente, o preço sob forma de café para consumo (when made into coffee). Veja-se antes de tudo a participação ridícula do produtor de café, que arca com o grosso do trabalho. Depois, ao pegarmos as cinco primeiras etapas, vemos que para o conjunto dos agentes econômicos que podem ser considerados produtivos (produtor, serviço comercial primário, transporte, processamento) a participação no valor que o consumidor final paga ainda é muito pequena.
     O imenso salto se dá no preço na gôndola do supermercado, os Walmart ou equivalentes em qualquer país. E outro salto se dá no ”when made into coffee”, ou seja, quando é servido sob forma de café. O gráfico fala por si. E os valores nas pontas, 14 centavos e 42 dólares, dão uma ideia da deformação da lógica de remuneração dos fatores e dos agentes econômicos.
     Não há nada de muito novo nisto, todos sabemos do peso dos atravessadores, conceito inventado justamente para dar uma conotação negativa aos intermediários dos processos produtivos que ganham não ajudando, mas colocando gargalos, ou pedágios, sobre o ciclo produtivo. Mas o que queremos levantar aqui é que há um desequilíbrio muito forte entre os esforços que dedicamos ao estudo e divulgação da variação de preços no tempo, essencialmente a inflação, e o pouco que estudamos sobre a variação de preços dentro das cadeias produtivas. Aparecem de vez em quando, como no Globo Rural que apresentou produtores de tomate no Paraná que se recusavam a vender o produto ao preço de 13 centavos por quilo (quatro reais por caixa de 30 quilos), sabendo quanto o consumidor pagaria na feira.
     O impacto econômico deste processo é simples: do lado do produtor, o lucro é insuficiente para desenvolver, ampliar ou aperfeiçoar a produção, e em consequência a oferta não se expande. Do lado do consumidor, o preço é muito elevado, o que faz com que o consumo também seja limitado. Quem ganha é o intermediário, com margens muito elevadas sobre um fluxo relativamente pequeno de produto.
     A lógica da desintermediação, naturalmente, é reduzir os lucros gerados no pedágio, redistribuindo esta apropriação de mais-valia entre o produtor (que poderá produzir mais e melhor) e o consumidor (sob forma de preço mais baixo, o que permitirá consumo maior, absorvendo assim o fluxo maior de produtos). E o intermediário descobrirá que ao ganhar menos sobre um volume maior, voltará a ter a sua parte do bolo sem prejudicar a cadeia produtiva.
     De onde vem este poder do intermediário de travar o processo para maximizar o seu lucro? Um outro gráfico do mesmo estudo ilustra bem a situação do pequeno produtor e do consumidor final frente ao “gargalo” dos grandes intermediários.
     O título do gráfico é “a concentração do mercado oferece menos oportunidades para os agricultores de pequena escala”. Trata-se aqui essencialmente de entender a dificuldade da agricultura familiar. O sentido geral do gráfico, é que a ampla base na parte de baixo, representando os agricultores (small-scale farmers) é constituída por muitos produtores (mais de quatro milhões no Brasil), dispersos e portanto com pouca força. Forma-se depois um gargalo logo acima, ao nível dos traders (comercialização primária), e o gargalo se afina mais ainda no nível dos processadores do produto, e se mantém muito concentrado no nível dos varejistas. No nível dos consumidores, a ampulheta se abre novamente de maneira radical, pois são milhões os consumidores, sem nenhuma força individual para influenciar os preços. Quando perguntamos, nos consumidores do produto final, porque o preço subiu, nos dizem que o produto “está vindo mais caro”. Vindo mais caro de onde?
     A importância deste tipo de estudos, que aparecem apenas ocasionalmente e em casos extremos, é que mostram onde surge efetivamente a inflação (é o momento de “salto” radical do preço), e portanto onde se trava também o desenvolvimento dos processos produtivos. Temos hoje inúmeras instituições que fazem um seguimento muito detalhado da inflação, inclusive porque é importante para o reajuste de aluguéis, de salários e assim por diante. Mas a análise sobre de onde vem a mudança do nível geral de preços busca os setores que se destacam (por exemplo os alimentos) e não as variações de preços dentro de cada cadeia produtiva.
     Praticamente ninguém estuda onde o preço está sendo aumentado, em que elo da cadeia produtiva. Os dois gráficos que apresentamos acima são muito raros, e em todo caso nem sistemáticos nem regulares, no sentido de formar uma imagem da evolução no tempo. E no entanto todos os dados da composição de custos de cada produto existem, pois uma empresa precisa deles para definir o preço final de venda. O que é necessário é fazermos um tipo de engenharia reversa, tomando um produto final – por exemplo um medicamento – e verificar a evolução dos custos em cada nível de transformação e intermediação.
     Isto permitiria, por exemplo, deixar mais claro o custo da intermediação financeira nos processos produtivos, outro tipo de gargalo que encarece muito o produto final e reduz a produtividade da cadeia. Permitiria também estimular investimentos complementares nas áreas do gargalo, de forma a diversificar a oferta e reduzir o efeito de cartelização (monopsônios ou oligopsônios, no jargão econômico). Seria um instrumento poderoso para o CADE identificar pontos de incidência para políticas anti-truste e de defesa de mecanismos de mercado. E melhoraria a relação de força dos produtores frente aos intermediários, cada vez mais desequilibrada.
     O que não podemos é continuar a manter esta situação em que todos sabemos do entrave que representam os atravessadores de diversos tipos para a dinamização da produção e do consumo, mas não se produz nenhuma informação adequada sobre como se constrói o preço final de cada produto. Não basta medir a inflação, temos de ver como se gera, e quem a gera. Não é particularmente complexo comparar quanto vale no mercado atacadista o ácido ascórbico, a popular vitamina C, com o que pagamos na farmácia.
     Em termos de dinamização do processo produtivo em geral, trata-se de identificar os gargalos que geram lucros extraordinários sem agregação de valor correspondente. São os elos da cadeia produtiva que inflam os preços e travam a expansão do ciclo produtivo. Com cada vez menos grandes intermediários atravessando as principais cadeias produtivas, trazer um pouco de luz para a compreensão da formação da cadeia de preços seria fundamental. As diversas instituições que hoje seguem a inflação com tanto detalhe poderiam, sem muita dificuldade, abrir uma janela de atividade promissora, e prestar um bom serviço para a racionalização dos processos produtivos.
¹ IAASTD – Agriculture at a Crossroad – International Assessment of Agricultural Science and Technology for Development – Unep, New YORK, 2009

Ladislau Dowbor é economista e professor titular no Departamento de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

domingo, 1 de setembro de 2013

Breve inventário da desigualdade planetária

Novo vídeo revela dados chocantes sobre injustiças globais. Exemplo: trezentas pessoas mais ricas da Terra têm mais que populações do Brasil, Índia, China e EUA, juntas. 
     A crise do capitalismo e as revoltas populares que varrem o mundo vêm trazendo à consciência coletiva a desigualdade entre países e seres humanos. Os governos dos países ricos gostam de dizer que ajudam os países pobres, mas todo ano tiram, destes, dez vezes mais do que põem em forma de ajuda ao desenvolvimento. Eles se comprometeram a ajudar os pobres com cerca de 130 bilhões de dólares por ano, mas esse compromisso não vem sendo honrado: em 2012 a ajuda ao desenvolvimento registrou queda pelo segundo ano consecutivo, em razão das medidas de “austeridade” adotadas na zona do euro – segundo informação da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
     A despeito dessa ajuda, a desigualdade continua crescendo. Uma das razões é que as grandes corporações estão levando mais de 900 bilhões de dólares anuais dos países pobres por meio de uma forma de evasão fiscal conhecida por “trade mispricing” (manipulação de preços comerciais). Além disso, os países pobres estão pagando aos ricos cerca de 600 bilhões de dólares em serviço da dívida – empréstimos que já foram quitados muitas vezes.
     E depois há o dinheiro que os países pobres perdem em negociações realizadas sob regras comerciais impostas pelos países ricos. As políticas neoliberais que instituições internacionais como Banco Mundial, FMI e Organização Mundial do Comércio impuseram aos países em desenvolvimento nas últimas décadas tiveram por objetivo forçar a liberalização dos mercados, de modo a dar às corporações multinacionais acesso sem precedentes a recursos naturais, terra e mão de obra barata. Os países pobres foram subtraídos em cerca de 500 bilhões de dólares por ano em consequência dessas políticas, de acordo com o economista Robert Pollin, da Universidade de Massachusetts.
     Tudo somado, são aproximadamente 2 trilhões de dólares que saem das áreas mais pobres do mundo, todos os anos – o que leva a pensar que alguma coisa está errada com os fundamentos da economia global.
Números da desigualdade
     Os números mostram a que extremo chegamos: as 200 pessoas mais ricas do mundo detêm cerca de 2,7 trilhões de dólares – mais riqueza do que as 3,5 bilhões mais pobres, que, juntas, somam 2,2 trilhões de dólares. Em números redondos, as 300 pessoas mais ricas da Terra têm riqueza maior do que as 3 bilhões mais pobres – quase metade da população mundial. Dito de outra forma, um pequeno grupo de pessoas, não mais que o necessário para encher um avião comercial, possui mais riqueza que as populações do Brasil, da Índia, da China, dos Estados Unidos – juntas.

     Esse é o tema do vídeo de animação Change the Rules (Mude as Regras) – aqui legendado em português – realizado pelo coletivo britânico The Rules sobre a questão da desigualdade global. Ligado ao movimento Occupy, o grupo “busca mudar políticas, práticas e crenças que criam desigualdade e pobreza”.