“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A cracolândia que você não vê

Charge
Maringoni
"Quem se aproxima tem uma surpresa. A mão áspera é quente, os olhos ainda lacrimejam, há pulsação e sorrisos sinceros”.
Talita Ribeiro, do Coletivo Cracolândia

     Todo paulistano médio conhece a região da Luz/José Paulino/Santa Ifigênia como sendo boa para compras, de eletrônicos ou roupas. Todo paulistano culturalmente ativo sabe que ali há o Museu da Língua Portuguesa, a Pinacoteca e a Sala São Paulo. Todo e qualquer paulistano não ousaria pisar lá (literalmente, a pé) depois das 22h. Porque à noite, o comércio e a cultura são outros. E quem circula pela área não é considerado cidadão da metrópole mais rica do país.
     Quem ocupa as esquinas, quadras e avenidas, se mistura com o lixo e divide espaço com os ratos, que cruzam as ruas a procura de comida. À noite não há quem desvie dos moribundos ou crianças alucinadas. E, vez em quando, se tem a impressão que não há uma alma viva sequer, mesmo que oitenta usuários de crack estejam ocupando uma mesma sarjeta. Até quem tenta se inserir nesse meio — por política, trabalho ou missão — dificilmente consegue penetrar nessa outra realidade, onde o olhar não para, nem brilha, mas ainda busca, desesperadamente, por 8 segundos.
     “De 5 a 8 segundos é o tempo que dura o ‘barato’ do crack. Nesse curto espaço de tempo, dizem, a sensação é equivalente a 8 orgasmos”, conta um dos missionários do Cena, que conversa com os dependentes durante a noite, para convidá-los a conhecer o projeto e, quem sabe, embarcar numa outra viagem — a de reabilitação. Ele circula normalmente entre a aglomeração de usuários.
     Diferente do que os telejornais ensinam a cracolândia não é um lugar sem leis. Religiosos são respeitados e, muitas vezes, ignorados pela massa. Quando a polícia derrapa com as viaturas nas ruas e saca seus (desnecessários) sprays de gás de pimenta, todos vão para outra esquina. Quando um segurança de uma loja qualquer manda eles saírem, o mesmo acontece. Não há sexo e violência explícita na rua. Não o tempo todo. Não o suficiente para concorrer com qualquer balada de classe média alta em uma sexta à noite. Os usuários vez em quando discutem entre si, mas os gritos são, em sua maioria, parte da negociação de droga.
     “Quem dá dois por uma pedra? Quem tem uma nota de cinco? E um cachimbo novo?” Com frases desse tipo a “bolsa do crack” funciona a noite inteira, com usuários pra lá e pra cá comprando e vendendo tudo o que podem, de cigarros a 25 centavos até salsichas vencidas achadas no lixo. Nesse mercado quase todos são compradores em potencial, menos os que chegam em bicicletas, trazendo mais pedras em sacolas plásticas, para fazer girar a roda da dependência. Quem não está negociando, só pode estar consumindo, procurando restos na calçada ou tentando tirá-los do cachimbo. Nesse ciclo nada que não tenha ligação com o crack importa. Ninguém liga para os carrões que cruzam a região noite adentro para comprar a droga. E não é raro ver pessoas bem vestidas e com tênis da moda fumando ao lado de moradores de rua. Não existe mais rico ou mais pobre quando se está rente ao chão.
     Nesse contexto, crianças de dez anos agem como se tivessem o dobro. São chamadas de “dimenor”, mas só isso as diferencia dos demais. Com uma casca dura de sujeira preta ou incrivelmente limpas, elas sabem o próprio nome, há quanto tempo estão nessa vida, onde doem as feridas e, principalmente, que precisam de uma pedrinha. Os traços infantis quase se perdem em meio a tanta opressão, mas quando pedem ajuda para conseguir a próxima brisa, são como tantas outras crianças pedindo um doce. E são frágeis, muito mais frágeis do que aparentam quando as olhamos de canto de olho, andando a passos rápidos. Mas essa não é uma característica só delas.
     Os usuários de crack vistos de perto e em seu habitat, em nada lembram os retratados em telejornais. No lugar do medo e do ódio, despertam uma tristeza imensa, acompanhada por um sentimento de impotência. Nada que não seja a pedra parece tocá-los — inclua aí a sua presença. Mas quem, mesmo assim, tenta se aproximar tem uma surpresa. A mão áspera é quente, os olhos ainda lacrimejam, a voz embarga ao contar sobre o passado, ainda há pulsação e sorrisos sinceros. Apesar de toda a ânsia pela droga, há outros tipos de carências não supridas, tão importantes quanto. E para tratá-las é preciso bem mais que 8 segundos. Mas isso o paulistano ainda não sabe.

(Mais informações sobre o Coletivo Cracolândia e o contexto em que surge em nosso blog)

SAIBA MAIS:
DOCUMENTÁRIO
Quebrando O Tabu

Quebrando o Tabu tem como principal objetivo a abertura de um debate sério e bem informado sobre o complexo problema das drogas no Brasil e no mundo. O filme pretende aproximar diversos públicos, entre eles os jovens, os pais, os professores, os médicos e a sociedade como um todo, para que se inicie uma conversa franca que leve a diminuição do preconceito, ajude na prevenção ao uso de drogas e que dissemine informações com base científica sobre o tema. O âncora do filme é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que aceita o convite do diretor Fernando Grostein Andrade para uma jornada em busca de experiências que tiveram êxitos em vários lugares do mundo, sempre em diálogo com jovens locais e profissionais que se dedicam a tratar a questão das drogas de forma mais humana e eficaz do que as propostas na “guerra às drogas”, declarada pelos EUA há 40 anos.
Os danos causados, pela “guerra às drogas”, nas pessoas e na sociedade só cresceram. Abusos, informações equivocadas, epidemias, violência e fortalecimento de redes criminosas são os resultados da guerra perdida numa escala global. Num mosaico costurado por Fernando Henrique Cardoso, "Quebrando o Tabu" escuta vozes das realidades mais diversas do mundo em busca de soluções, princípios e conclusões. Bill Clinton, Jimmy Carter e ex-chefes de Estado, como da Colômbia, do México e da Suíça, revelam porque mudaram de opinião sobre um assunto que precisa ser discutido e esclarecido. Do aprendizado de pessoas comuns, que tiveram suas vidas marcadas pela Guerra às Drogas, até experiências de Dráuzio Varella, Paulo Coelho e Gael Garcia Bernal, "Quebrando o Tabu" é um convite a discutir o problema com todas as famílias.
Direção: Fernando G. Andrade
Duração: 71 minutos
Ano: 2011
Áudio: Português
Tamanho: 736 MB


FILME
O Informante

Baseado em fatos reais, que levaram a indústria do tabaco a pagar mais de US$ 246 trilhões em indenizações nos Estados Unidos, a história gira em torno de um cientista que, após sua demissão da empresa por se recusar a continuar compactuando com ela após a constatação, por meio de experimentação científica, de como o método de produção do cigarro perpetuava o vício da nicotina, passa a ser perseguido por seus antigos empregadores. Estes são receosos de que ele viesse a revelar o segredo para a população, o que abalaria significativamente os negócios.
Apoiados em um termo de confidencialidade assumido por Jeffrey Wigand (Russel Crowe), os advogados da empresa tentam pressionar o cientista por meio de ameaças de corte de benefícios prometidos na rescisão de contrato. Mesmo incomodado com a postura de desconfiança da empresa, o cientista se mostra totalmente decidido a manter o trato assumido, a despeito de seu senso de responsabilidade com a verdade, da consciência da injustiça que estava sofrendo e das dificuldades pelas quais atravessaria a partir daquele momento.
Mas o encontro do personagem com o produtor Lowell Bergman (Al Pacino) de um programa jornalístico "60 Minutos", da rede americana CBS, e a intensa pressão da empresa para que assine outros documentos que garantam o seu silêncio, levam o cientista a refletir sobre a sua responsabilidade com relação ao segredo que guardava. Mas também sobre todas as consequências que iriam recair sobre sua situação trabalhista, financeira e familiar caso quebrasse sua palavra.
Revelando os bastidores de grandes corporações e também de uma grande rede de TV, sua ética e corrupção, o filme de Michael Mann garante momentos de suspense e empolgação, além de ótimos diálogos entre Russel Crowe (o cientista), Al Pacino (o produtor) e Christopher Plummer (o repórter), acerca de ética, responsabilidade social e poder.
Direção: Michael Mann
Duração: 158 minutos
Ano: 1999
Áudio: Português
Tamanho: 799 MB

Um comentário:

  1. adorei a matéria tonhão! dá pra entender, pelo menos um pouco, do que se passa na vida daquela gente esquecida!
    saudade das suas aulas!! beeeijão, bruna(de cunha hahaha)

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