“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 12 de maio de 2014

A imagem do herói

Morto e esquartejado na Colônia, Tiradentes renasce, como mártir nacional, nas salas de aula da República.
Thais Nívia de Lima e Fonseca
     Ainda hoje o martírio de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, toca os corações dos brasileiros, o que mostra a força simbólica desse personagem. Pouco lembrado na maior parte do período monárquico - afinal ele cometera o crime de inconfidência, isto é, de infidelidade a sua majestade, a rainha d. Maria I -, a figura de Tiradentes começou a ser resgatada com mais força já na campanha republicana, até que, em 1890, um decreto do novo regime institucionalizou este herói nacional.
     A escola também foi um dos principais meios de difusão do mito, sobretudo nas décadas de 1930 a 1950, na chamada Era Vargas, quando as comemorações cívicas se difundiram no Brasil. No dia 21 de abril, data do enforcamento de Tiradentes, sessões cívico-literárias, iniciadas com a execução de hinos e o hasteamento da bandeira nacional, incluíam discursos, declamações de poesias, leituras de composições redigidas pelos alunos, encenações, exposição de desenhos e outras atividades que marcaram profundamente a formação de várias gerações de brasileiros.
     As reformas educacionais de 1931 e de 1942 atribuíram ao ensino de história o papel de valorizar o passado nacional, enfatizando os grandes feitos e os heróis da nacionalidade. Os livros didáticos, além de reforçar o tom épico da conspiração mineira, destacavam o civismo de personagens como Tiradentes, que passavam a encarnar a ideia de sacrifício pela pátria. No Estado Novo (1937-1945), em especial, período em que Getúlio Vargas governou com poderes ditatoriais, programas de rádio, cartazes, filmes e palestras nas escolas, promovidos pelo Departamento de Educação Extraescolar, procuravam ligar não só o passado e o presente, mas também Tiradentes e Getúlio Vargas, como se eles fizessem parte de uma mesma tradição política.
     Se na Monarquia, Tiradentes, quando lembrado, era apresentado como um homem sem habilidades e realização profissional, no início da República ele passou a ser descrito como personagem de múltiplos talentos, entre os quais o talento político e revolucionário. Já no Estado Novo, tornava-se exemplo do brasileiro laborioso e dotado de inúmeras qualidades: "Entre os mais afeiçoados à ideia libertadora, figurava um alferes de cavalaria, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Era um homem pobre, de coração generoso, inteligência v iva, amante do progresso, um autodidata, cheio de ardor e capaz de grandes empreitadas. (...) Era o tipo representativo do brasileiro do século XVIII, cujas virtudes e qualidades os pósteros herdaram (...)", escreveu Artur G. Vianna no livro para a 3ª série ginasial História do Brasil de 1944.
     O "tipo representativo do brasileiro do século XVIII" deixara de herança o espírito empreendedor, inventivo, honrado, dedicado à coletividade, útil, portanto, à nova cidadania. O autor também estabelecia uma ponte entre o "brasileiro do século XVIII" e o do século XX, que poderia ser muito bem identificado com o próprio Getúlio Vargas. Na mesma época, os textos escritos pelos alunos das escolas primária e secundária para concursos promovidos pelos jornais, também revelam a influência que a imagem que então se construía de Tiradentes exercia sobre as crianças, não havendo dúvidas, por exemplo, sobre o heroísmo e a "liderança" do alferes.
     Os próprios jornais já influenciavam os trabalhos das crianças. "Tio Mário", responsável pelo caderno infantil do Estado de Minas, no concurso de 1949, recomendava, por exemplo, o uso do termo rebelião, em vez de inconfidência, para dar maior valor patriótico. No concurso de 1954, o caderno infantil do Diário de Minas orientava as crianças a "ressaltar os vultos principais desse movimento que foi o marco para outros movimentos que vieram depois, como a Abolição e a República".
   Também são significativos os desenhos das crianças que participavam dos concursos. Um deles, intitulado O amanhecer da liberdade, trazia a cabeça de um Tiradentes-Cristo colocada ao pé de uma forca, de onde pendia o baraço (laço da corda usada na execução). Ao fundo, por trás das montanhas, erguia-se um radiante sol - a liberdade -, nascendo para todos os brasileiros, mas também aparecendo acima da cabeça do Tiradentes-Cristo, como uma auréola. Dos nove desenhos vencedores do concurso do Estado
de Minas, em 1949, sete fizeram menção direta ou indireta ao enforcamento, dos quais três representaram a execução, inspirando-se na pintura o Martírio de Tiradentes, de Aurélio de Figueiredo.
     Já o esquartejamento, embora sempre narrado nos livros didáticos e lembrado nas composições, não figurava na maioria dos desenhos, o que se deve, talvez, à pouca difusão da tela que representou este momento, Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo.
     Todo esse aparato criado pelo Estado difundia uma noção da história como obra apenas de espíritos elevados e heroicos. Uma história sacralizada, destinada a ser mais celebrada do que compreendida. Apesar das mudanças no ensino da história nos últimos anos, muitas dessas ideias ainda continuam a ser repetidas. Em abril de 2001, as escolas públicas mineiras receberam do governo do estado um livrinho intitulado Joaquim José: a história de Tiradentes para crianças, em que Tiradentes é heroificado. Em 2002, a telenovela Coração de Estudante, da Rede Globo, mostrava, num de seus capítulos, professoras e alunos de uma escola preparando as comemorações do Dia de Tiradentes. A surpresa foi ver, na telinha, os mesmos preparativos adotados na primeira metade do século XX: é espantosa a vitalidade desse herói na memória nacional!

Thais Nívia de Lima e Fonseca é professora de História da Educação e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

A outra face do alferes
Documento raro revela um Tiradentes demasiado humano.
     Apesar de Tiradentes ter sido um dos personagens mais estudados de nossa História, muito pouco se conhece de sua vida anterior ao movimento mineiro de 1789. Sobretudo no que se refere à sua intimidade, as informações são escassas, e não faltam controvérsias sobre seu patrimônio, sua formação intelectual, seus descendentes etc... Há, no entanto, um documento pouco conhecido do público em geral – e mesmo entre os historiadores – que traz uma faceta no mínimo curiosa do inconfidente mineiro. Trata-se do processo de Antônia Maria do Espírito Santo, que se encontra no Arquivo Público Mineiro – documentação descoberta pelo historiador Tarquínio José Barboza de Oliveira, principal organizador dos Autos da Devassa (o processo iniciado contra os suspeitos em 1789). Com a preciosa colaboração das pesquisadoras e paleógrafas Maria José Ferro e Maria Teresa –, que transcreveram o processo de forma criteriosa segundo a fonte original, a Revista de História põe em discussão esse documento, para que, ao trazer à luz outras facetas do mitológico mártir da Inconfidência, talvez possamos nos aproximar um pouco mais da figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
     Entre novembro de 1789 e meados de 1790, houve em Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto um processo envolvendo Tiradentes. Nele, Antônia Maria do Espírito Santo, amásia do inconfidente, reivindica junto às autoridades locais a posse da escrava Maria, de “Nação Angola” – junto com seus dois filhos pequenos, Gerônimo e Francisca – que fora “sequestrada” com os demais bens de Tiradentes na ocasião de sua prisão. Para tanto, Antônia Maria alega que a escrava lhe havia sido doada pelo alferes, não pertencendo mais a Tiradentes, e que, portanto, lhe deveria ser restituída. As delicadas relações entre o inconfidente e sua concubina são expostas no processo da seguinte forma:
     “Diz Antônia Maria do Espírito Santo, menor órfã do falecido seu pai Antonio da Silva Pais, que estando na companhia da viúva sua mãe Maria Josefa, vivendo com toda a honestidade e recato, a principiou a aliciar o alferes Joaquim Jose da Silva Xavier, o qual debaixo de palavra de honra e promessas esponsalícias lhe ofendeu a pudicícia, de cuja ofensa resultou conceber e dar à luz um feto do mesmo alferes, que passou ao extremoso excesso de arrancar a suplicante dos braços da dita sua mãe”. Depois de apresentar um prelúdio da união entre Tiradentes e Antônia, o documento prossegue, indicando a causa do processo: “Vivendo em sociedade por causa daquela promessa, doou à mesma suplicante uma escrava por nome de Maria, de nação Angola, que sucedendo ser preso o dito alferes Joaquim José da Silva Xavier na cidade do Rio de Janeiro, foi confiscado, ou sequestrado com outros mais bens”.
     Após a descrição do caso, surge o apelo: “porque nem a razão, nem o Direito permitem que qualquer que haja de purgar o delito alheio com os seus próprios bens, e a suplicante é uma miserável órfã (...)”.
Ou seja: para reaver sua escrava, “a menor” (como é qualificada no processo) Antônia Maria joga com informações que levam a crer que ela foi vítima dos arroubos e das falsas promessas de Tiradentes – que a tirou dos braços de sua mãe, deflorando-a, concebendo nela um rebento, sem que cumprisse, contudo, a promessa de casamento. Chama a atenção, por ser algo grave dentro do contexto da época, o fato de Tiradentes ter faltado com sua “palavra de honra” ao acenar com promessas de casamento que não foram cumpridas. O pesquisador do período da Inconfidência Mineira e doutorando da USP André Figueiredo frisa o peso da palavra na Ouro Preto do final do século XVIII e confirma a fama de boquirroto do alferes: “Numa sociedade como a mineira, a palavra representava muito. Tudo era lavrado na base da palavra: as compras do dia-a-dia, os relacionamentos amorosos, os acertos de trabalho etc. Tiradentes, segundo percebo de seus depoimentos nos Autos da Devassa, era um grande falador. Falava sem se preocupar se estava ou não atacando as relações metropolitanas”.  

Saiba Mais – Link

Saiba Mais – Filme
Os Inconfidentes
Com base nos Autos da devassa, na poesia dos inconfidentes e de Cecília Meireles, Joaquim Pedro de Andrade contesta versões oficiais da história da Inconfidência Mineira, e trata da posição de intelectuais diante da prática de políticas revolucionárias. O filme retrata a Inconfidência Mineira, movimento político do século 18 do Estado de Minas Gerais. Faziam parte do grupo de conspiradores contra o domínio colonial português poetas e nobres, incluindo o padre (Carlos Gregório) e o coronel da guarnição. Realizado para a TV Italiana, RAI, como parte da série intitulada "A América Latina vista por seus idealizadores", Os Inconfidentes foi sucesso internacional de crítica e público, tendo sido premiado no Festival de Veneza.
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
http://www.youtube.com/watch?v=wRkwQhzDUG8https://mega.co.nz/#!OYsQWQgD!fRV25oBsXt46CdmlMjqHflAytgNQnKX5KWHG5RLrrA4Ano: 1972
Duração: 76 minutos
Áudio: Português

Saiba Mais – Biografia 
Líder da Conjuração Mineira de 1789, o alferes Joaquim José da Silva Xavier passou à história como um precursor idealista e ousado da Independência do Brasil. A Coroa portuguesa mandou executá-lo e esquartejá-lo, além de amaldiçoar seus descendentes.
Nasceu em São José Del-Rei (hoje cidade de Tiradentes), em Minas Gerais, no ano de 1746, e morreu em 21 de abril de 1792, no Rio de Janeiro (RJ).

Líder civil da Revolução de 1930 comandou a modernização do Estado brasileiro com políticas nacional-desenvolvimentistas. No seu legado sobressaem as bases da industrialização, a legislação trabalhista e a participação do Brasil na II Guerra.
Nasceu em São Borja (RS), em 19 de abril de 1882, e morreu em 24 de agosto de 1954, no Rio de Janeiro (RJ).

Nenhum comentário:

Postar um comentário