“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 20 de março de 2015

Breve história da feijoada

A mistura de carnes e grãos que resultou no prato mais famoso do Brasil só ocorreu no século XIX e - ao contrário do que diz a lenda - bem longe das senzalas
Rodrigo Elias
     “O paladar não é tão universal como a fo­me", disse Luís da Câmara Cascudo em 1968. O ilustre etnógrafo e folclo­rista referia-se a um prato brasileiro, talvez o mais tipicamente brasileiro: a feijoada. Para ele, era preciso uma predisposição especial para que se pudesse apreciar os sabores do prato, assim como para usufruir todas as nuances de certos vinhos. Em outras palavras, a culinária - e mesmo a "simples" apreciação desta - pressupõe a educação de um im­portante sentido, o paladar. Por isso, é bom conhe­cer um pouco da trajetória desta instituição nacio­nal, que tem a vantagem de ser comestível.
     Convencionou-se que a feijoada foi inventada nas senzalas. Os escravos, nos escassos intervalos do trabalho na lavoura, cozinhavam o feijão, que seria um alimento destinado unicamente a eles, e juntavam os restos de carne da casa-grande, partes do porco que não serviam ao paladar dos senhores. Após o final da escravidão, o prato inventado pelos negros conquis­tou todas as classes sociais, para chegar às mesas de caríssimos restaurantes no século XX. Mas não foi bem assim.
     A história da feijoada - se quisermos também apreciar seu sentido histórico - nos leva primeiro à história do feijão. O feijão-preto, aquele da feijoada tradicional, é de origem sul-americana. Os cronistas dos primeiros anos de colonização já mencionam a iguaria na dieta indígena, chamado por grupos Guarani ora comanda, ora comaná, ora cumaná, já identificando algumas variações e subespécies. O viajante Jean de Léry e o cronista Pero de Magalhães Gandavo, ainda no século XVI, descreveram o feijão, assim como o seu uso pelos nativos do Brasil. A se­gunda edição da famosa Historia Naturalis Brasiliae, do holandês Willen Piso, revista e aumentada pelo autor e publicada em 1658, tem um capítulo inteiro dedicado à nobre semente do feijoeiro.
     O nome pelo qual o chamamos, porém, é portu­guês. Na época da chegada dos europeus à América, no
início da Idade Moderna, outras variedades des­te vegetal já eram conhecidas no Velho Mundo, aparecendo a palavra feijão escrita pela primeira vez, em Portugal, no século XIII.
     Apenas a partir de meados do século XVI começou-se a introduzir outras variedades de feijão na colônia, algumas africanas, mas também o feijão consu­mido em Portugal, conhecido como feijão-fradinho. Os cronistas do período compararam as variedades nativas com as trazidas da Europa e África, e foram categóricos, acompanhando a opinião de Gabriel Soares de Souza, expressa em 1587: o feijão do Brasil, o preto, era o mais saboroso. Caiu no gosto dos portugueses.
     As populações indígenas obviamente o aprecia­vam, mas tinham preferência pela mandioca, raiz que comiam e até transformavam em bebida, o cauim, e que caiu também nas graças dos europeus e africanos. A mandioca era o alimento principal dos paulistas, que misturavam sua farinha à carne cozi­da, fazendo uma paçoca que os sustentava nas suas intermináveis viagens de caça a índios. Mas também comiam feijão. Feijão-preto.
     O feijoeiro, em todas as suas variedades, também facilitou a fixação das populações no território luso-americano. Era uma cultura essencialmente domésti­ca, a cargo da mulher e das filhas, enquanto o homem se ocupava com as outras plantações e com o gado. A facilidade do manejo e seus custos relativamente bai­xos fizeram com que a cultura do feijão se alastrasse no século XVIII entre os colonos. Segundo Cascudo, tornou-se lugar-comum nas residências humildes do interior do país a existência do "roçadinho", no qual era atributo quase que exclusivo das mulheres o "apanhar" ou "arrancar" feijões. A dispersão populacional dos séculos XVIII e XIX, seja por conta dos currais do Nordeste, dos tesouros do Centro-Oeste ou das questões de fronteira no Sul, foi extremamente fa­cilitada pelo prestigiado vegetal. Atrás dos colonos, foi o feijão. Ao lado da mandioca, ele fixava o homem no ter­ritório e fazia, com a farinha, parte do binômio que "governava o cardápio do Brasil antigo".
     No início do século XIX, absolutamente todos os viajantes que por aqui passaram e descreveram os hábitos dos brasileiros de então mencionaram a im­portância central do feijão como alimento nacional. O francês Saint-Hilaire sentenciava, nas Minas Gerais de 1817: "O feijão-preto forma prato indis­pensável na mesa do rico, e esse legume constitui quase que a única iguaria do pobre." Carl Seidler, mi­litar alemão, narrando o Rio de Janeiro de 1826, des­crevia a forma como era servido: "acompanhado de um pedaço de carne de rês (boi) seca ao sol e de tou­cinho à vontade", reproduzindo em seguida uma má­xima que atravessaria aquele século e o seguinte: “não há refeição sem feijão, só o feijão mata a fome". Mas opinava: "o gosto é áspero, desagradável". Segun­do ele, só depois de muito tempo o paladar europeu poderia acostumar-se ao prato. O americano Thomas Ewbank, em 1845, escreveu que "feijão com toucinho é o prato nacional do Brasil".
     Porém, o retrato mais vivo do preparo comum do feijão - não é ainda a feijoada - foi feito pelo francês Jean-Baptiste Debret. Des­crevendo o jantar da família de um humilde comerciante carioca nos tempos de d. João VI, afirmou que "se compõe apenas de um miserável pedaço de carne-seca, de três a quatro polegadas quadradas e somente meio dedo de espessura; cozinham-no a grande água com um punhado de feijões-pretos, cuja farinha cinzenta, muito substancial, tem a vantagem de não fermentar no estômago".
     Porém, nem só de feijão viviam os homens. Os in­dígenas tinham uma dieta variada, e o feijão nem mesmo era o seu alimento preferido. Os escravos também comiam mandioca e frutas, apesar da base do feijão. Mas há o problema da combinação de ali­mentos, também levantado por Câmara Cascudo na sua belíssima História da alimentação no Brasil. Havia, na Época Moderna, entre os habitantes da colônia, tabus alimentares que não permitiam uma mistura completa do feijão e das carnes com os outros legu­mes. Como poderiam fazer nossa conhecida feijoada?
     Na Europa, sobretudo na Europa de herança lati­na, mediterrânica, havia - e há - um prato tradicio­nal que remonta pelo menos aos tempos do Império Romano. Consiste basicamente em uma mistura de vários tipos de carnes, legumes e verdu­ras. Há variações de um lugar para o outro, porém é um prato bastante popular, tradicional. Em Portugal, o cozido; na Itália, a casoeula; na França, o cassoulet; na Espanha, a paella, esta feita à base de arroz. Esta tradição vem para o Brasil, sobretudo com os portugueses, surgindo com o tempo - na medida em que se acostumavam ao paladar, sobre­tudo os nascidos por aqui - a ideia de prepará-lo com o feijão-preto, inaceitável para os padrões eu­ropeus. Nasce, assim, a feijoada.
     Segundo Câmara Cascudo, "o feijão com carne, água e sal, é apenas feijão. Feijão ralo, de pobre. Feijão todo-dia. Há distância entre feijoada e feijão. Aquela subentende o cortejo das carnes, legumes, hortaliças". Esta combinação só ocorre no século XIX, e bem longe das senzalas. O padre Miguel do Sacramento Lopes Gama, conhecido como "Padre Carapuceiro", publicou no jornal O Carapuceiro, de Pernambuco, em 3 de março de 1840, um artigo no qual condenava a "feijoada assassina", escandalizado pelo fato de que era muito apreciada por homens sedentários e senhoras delicadas da cidade.
     Vale lembrar que as partes salgadas do porco, co­mo orelha, pés, e rabo, nunca foram restos. Eram apreciados na Europa enquanto o alimento básico nas senzalas era uma mistura de feijão com farinha.
     Uma das referências mais antigas que se conhece à feijoada em restaurantes está no Diário de Pernambuco de 7 de agosto de 1833, no qual o Hotel Théâtre, do Recife, informa que às quintas-feiras seriam servidas "feijoada à brasileira". No Rio de Janeiro a menção a feijoada servida em restaurante aparece pela primeira vez no Jornal do Commercio de 5 de janeiro de 1849. Nas memórias escritas por Isabel Burton, esposa do viajante, escritor e diploma­ta inglês Richard Burton, em 1893, remetendo-se ao período em que esteve no Brasil, entre 1865 e 1868, aparece um interessante relato sobre a iguaria.  Falando sobre a vida no Brasil, ela diz que o alimen­to principal do povo do país - segundo ela equivalen­te à batata para os irlandeses - é um saboroso prato de "feijão" (ela usa a palavra em português) acompa­nhado de uma "farinha" muito grossa (também usa a expressão farinha), usualmente polvilhada sobre o prato. O julgamento da inglesa, após ter provado por três anos aquilo a que já se refere como "feijoada", e lamentando estar há mais de 20 sem sentir seu aro­ma, é bastante positivo: "É deliciosa, e eu me contentaria, e quase sempre me contentei, de jantá-la."
     A Casa Imperial - e não escravos ou homens po­bres - comprou em um açougue de Petrópolis, no dia 30 de abril de 1889, carne verde (fresca), carne de porco, linguiça, linguiça de sangue, rins, língua, cora­ção, pulmões, tripas, entre outras carnes. D. Pedro II talvez não comesse algumas dessas carnes - sabe-se de sua preferência por uma boa canja de galinha -, mas talvez outros membros de sua família sim. O livro O cozinheiro imperial, de 1840, assinado por R.C.M., traz receitas para cabeça e pé de porco, além de outras carnes - com a indicação de que sejam ser­vidas a "altas personalidades".
     Hoje em dia não há apenas uma receita de feijoa­da. Pelo contrário, parece ser ainda um prato em construção, como afirmou nosso folclorista maior no final dos anos 1960. Há variações aqui e acolá, adaptações aos climas e produções locais. Para Câmara Cascudo, a feijoada não é um simples prato, mas sim um cardápio inteiro. No Rio Grande do Sul, como nos lembra o historiador Carlos Augusto Ditadi, ela é servida como prato de inverno. No Rio de Janeiro, vai à mesa de verão a verão, dos botecos mais baratos aos restaurantes mais sofisticados. O que vale mesmo é a ocasião. Uma comemoração, uma confraternização, ou até mesmo uma simples reunião de amigos. Um cronista brasileiro da segunda metade do século XIX, França Júnior, chegou a dizer mesmo que a feijoada não era o prato em si, mas o festim, a "patuscada", na qual comiam todo aquele feijão. Como na Feijoada completa de Chico Buarque: "Mulher / Você vai gostar / Tô levando uns amigos pra conversar." O sabor e a ocasião, portanto, é que garantem o sucesso da feijoa­da. Além, é claro, de uma certa dose de predisposição histórica para entendê-la e apreciá-la, como vêm fa­zendo os brasileiros ao longo dos séculos.

Rodrigo Elias é historiador e professor das Faculdades Integradas Simonsen.
Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 4 - Fev. 2004

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