“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 28 de junho de 2015

E a selva venceu o capital

Fordlândia, a cidade da borracha inventada por um dos maiores empresários do mundo, fracassou na imensidão amazônica.
     Henry Ford tinha 40 anos quando, contando com 11 sócios e investimento inicial de US$ 28 mil, fundou a Ford Motor Company. O ano era 1903, e começava ali a trajetória de um dos empresários que ajudariam a elevar os Estados Unidos à posição de potência mundial. Seu nome ficou para sempre associado a uma revolução do capitalismo, mas o sucesso não o acompanhou quando tentou aventurar-se em uma audaciosa empreitada tropical. Na Amazônia, Henry Ford fracassou. 
     Uma das táticas bem-sucedidas do empresário consistia em tomar para si a produção dos insumos usados em suas fábricas, para depender o mínimo possível de fornecedores externos. Obter borracha natural era um problema: o monopólio dos britânicos sobre a oferta mundial do produto incomodava-o profundamente. Sob a influência de um de seus poucos amigos, Harvey Firestone (que se tornaria o líder dos pneus nos Estados Unidos por mais de oito décadas), Henry Ford passou a considerar ter a sua própria plantação de seringueiras. Mas onde plantar seringueiras? Que tal na região de onde as sementes das plantações britânicas no Sudeste asiático haviam sido furtadas? Foi assim que o homem mais rico do mundo decidiu possuir a maior plantação de seringueiras do mundo, na região do rio Tapajós, no Pará. 
     Os governos federal e estadual receberam com incontida satisfação a notícia dos investimentos, facilitando a instalação dos norte-americanos na Amazônia. A Companhia Ford Industrial do Brasil teve a sua escritura pública aprovada em 10 de outubro de 1927. Dois navios foram enviados para Santarém levando em seus porões tudo o que se imaginava necessário para a construção de uma cidade: tratores, geradores, enxadas, machados, britadeiras, equipamentos hospitalares, concreto, uma fábrica de gelo.  Curiosamente, não havia nenhum arquiteto, urbanista ou engenheiro sanitário na expedição inicial.
     Todo o planejamento foi feito pelos norte-americanos em Michigan, e o resultado foi uma sequência de erros. Os primeiros gestores sentiram na pele os efeitos de não terem estudado a realidade local: em um acampamento sem higiene, proliferavam as moscas nos refeitórios e os mosquitos nos dormitórios. O recrutamento de mão de obra era um entrave. Não havia na região homens em quantidade e com formação profissional suficiente para operar e realizar a manutenção de máquinas, como tratores, serras elétricas e caldeiras. Entre os contratados, o clima dócil logo evaporou. Diante da qualidade ruim da comida servida (diferente da que recebiam os norte-americanos) e do tratamento cada vez mais insultuoso (à base de gritos e humilhações), acendeu-se o estopim para a primeira revolta: os trabalhadores ameaçaram os norte-americanos com facões e machados. Não houve feridos, mas o trauma nunca seria superado pelos estrangeiros. Fez-se ali a primeira mudança no corpo diretivo da Companhia. Entre 1928 e 1930, viriam outras três.
     Não bastassem os problemas locais, houve os impactos da crise global de 1929. Nos Estados Unidos, a Ford Motor Company amargou uma queda de quase 50% na produção de automóveis. Mesmo diante dessa nova realidade, Henry Ford garantiu recursos para que o projeto seguisse adiante. Ao final de 1930 surgia Fordlândia, um projeto de plantação de seringueiras em uma pequena cidade de aparência norte-americana, com seus hidrantes vermelhos nas calçadas, em plena selva amazônica. Mas as riquezas imaginadas por Henry Ford estavam longe de se concretizar: as seringueiras não produziam borracha (inicialmente por serem jovens demais, depois, por conta de ataques de fungos e de insetos), os minérios e as pedras preciosas não foram encontrados, e a madeira, único produto rentável, era agora taxada pelo governo paraense.
     Tantas insatisfações se refletiram na relação dos patrões com os funcionários. Os estrangeiros achavam os brasileiros preguiçosos e passaram a chamá-los com apelidos relacionados à cor da pele e à baixa estatura – foi comum o uso do termo “demente”. Enquanto isso, o Departamento Sociológico tentava “civilizar” os trabalhadores, impondo-lhes restrições ao modo de vida. Visitavam as residências para verificar condições de higiene, preparação da comida, lavagem e secagem das roupas, se as vacinas estavam em dia. Chegavam a ponto de indagar sobre a vida sexual do casal. Outra questão que irritava os brasileiros era a obrigatoriedade de comer apenas comida genuinamente norte-americana. O peixe e a farinha não se encontravam disponíveis nos refeitórios, mas derivados de soja (leite, doces, margarinas) vindos dos Estados Unidos eram frequentes nos cardápios.
     Em dezembro de 1930 irrompeu a segunda revolta dos brasileiros. Os norte-americanos foram ameaçados por trabalhadores portando porretes, facões e machados. De novo, sem feridos. Mas nas instalações de Fordlândia a destruição foi enorme: tratores e caminhões jogados no rio Tapajós, vidros das instalações industriais quebrados, louças do refeitório pisoteadas. A Polícia Militar do Pará foi chamada para debelar a revolta, mas chegou três dias depois, com a situação já calma.
     O que fazer então? Insistir em Fordlândia ou abandoná-la? A decisão de Henry Ford foi pela reconstrução completa da cidade. Outro dirigente foi enviado de Michigan para a missão. Archibald Johnston fez um belo trabalho, instalando um hospital que se tornaria referência nacional, sistema de captação, filtragem e cloração da água, saneamento e iluminação da cidade, chegando à construção de um clube social com quadras de tênis e um campo de golfe com 18 buracos. O clube era exclusivo para os estrangeiros, mas várias atividades de lazer passaram a ser oferecidas aos brasileiros: bailes com músicas norte-americanas, cursos de jardinagem, filmes sobre a aerodinâmica dos novos modelos produzidos pela Ford Motor Company. Como bem observou um padre em visita a Fordlândia naquele período, os dirigentes não sabiam em qual país estavam.
     Em 1932, havia 4 mil hectares de seringueiras em Fordlândia quando o fungo Microcyclus ulei atacou e causou o chamado “mal das folhas”, destruindo praticamente toda a plantação. As folhas secaram e as árvores definharam. Ao final, percevejos e lagartas liquidaram o pouco que havia sobrado. Archibald Johnston solicitou a presença de um botânico – incrivelmente, o primeiro enviado pela Ford Motor Company desde o início da plantação das seringueiras! Era tarde demais para Fordlândia: a recomendação foi pelo abandono da plantação. O local seguiria apenas abrigando pesquisas com sementes e mudas. Uma nova cidade deveria ser construída e uma nova plantação de seringueiras iniciada. Henry Ford não desistiu: garantiu que recursos financeiros não faltariam.
     A nova plantação foi iniciada aproximadamente a 100 quilômetros descendo o rio Tapajós, onde hoje se localiza a cidade de Belterra. O golpe final veio em 1942, quando uma severa infestação reduziu os seringais à metade. O desânimo ficou patente nos norte-americanos. O país havia entrado na Segunda Guerra Mundial, Henry Ford estava cada vez mais senil e no ano seguinte faleceria seu único filho, Edsel Ford. Em 1945, quando Henry Ford II, filho de Edsel, assumiu o comando da Ford Motor Company, um de seus primeiros atos foi vender Fordlândia e Belterra. O governo brasileiro pagou US$ 250 mil pelas instalações que, segundo os norte-americanos, valiam trinta vezes mais.
     Hoje, Fordlândia é um distrito do município de Aveiro. Para chegar até lá, o viajante pode tomar um dos barcos que ligam diariamente Santarém, Aveiro e Itaituba. A viagem de barco-motor entre Santarém e Fordlândia leva cerca de 12 horas. Fora do período de chuvas, é possível hoje utilizar um carro 4x4 e, segundo locais, percorrer o trecho em até oito horas. Fordlândia conta com menos de mil habitantes e vive das pensões pagas pelos governos e das lembranças do passado. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ainda não conseguiu proteger as construções na região, quase todas em franca deterioração pelas chuvas e a umidade e sofrendo com furtos. Em 2012, desabou o antigo hospital construído pelos norte-americanos.
     Estima-se que a Ford Motor Company tenha investido, em valores atuais, cerca de US$ 1 bilhão em Fordlândia e Belterra. Como retorno, conseguiu produzir e enviar para os Estados Unidos menos de mil toneladas de borracha natural. Henry Ford recusou todos os convites posteriores de governantes e empresários brasileiros para que visitasse o Brasil – em particular, seus fracassados investimentos no Pará.

Antonio Marcos Duarte Jr. é professor do Ibmec/RJ e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Saiba Mais - Bibliografia
CRULS, Gastão. “Impressões de uma Visita à Companhia Ford Industrial do Brasil”. Revista Brasileira de Geografia, nº 1, p. 3-22, 1939.
GALEY, John. “Industrialist in the Wilderness: Henry Ford's Amazon Venture”. Journal of Interamerican Studies and World Affairs, nº 21 (2), p. 261-289, 1979.
RUSSELL, Joseph A. “Fordlândia and Belterra: Rubber Plantations on the Tapajós River”. Economic Geography, nº 18 (2), p. 125-145, 1942.
WEINSTEIN, Barbara. The Amazon Rubber Boom – 1850-1920. Redwood City, California: Stanford University Press, 1983.

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