“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 13 de março de 2016

Com quantos escravos se constrói um país?

Portugueses e holandeses sabiam: o Brasil não era viável sem Angola. A riqueza daqui se fez à custa da destruição de lá
     No Atlântico português formou-se uma matriz espacial colonial específica. De um lado, no litoral da América do Sul, desenvolveram-se uma economia e uma sociedade fundadas no trabalho escravo africano. Do outro, principalmente em Angola, mas também no Golfo de Guiné, situavam-se as redes de reprodução dessa mão-de-obra escrava. As duas margens do Atlântico Sul se completavam em um só sistema de exploração colonial, cuja singularidade ainda marca profundamente o Brasil contemporâneo.
     No início do século XVII, a circulação de homens e mercadorias entre Brasil e Angola já era considerável. Uma das mais claras demonstrações da ligação entre as duas colônias aparece no encadeamento das invasões holandesas. Na estratégia holandesa, os portos comerciais dos dois lados do Atlântico Sul eram alvos conjugados.
     Quando tomaram a Bahia, em 1624-5, os holandeses promoveram também o bloqueio naval de Benguela e Luanda. A segunda campanha atingiu o alvo em 1630, com a captura de Olinda e Recife. Cinco anos depois, a Zona da Mata pernambucana tinha caído sob o controle de Maurício de Nassau. No primeiro relatório que envia a Amsterdã, ele enuncia as regras do jogo colonial no Atlântico Sul. Adverte que não era qualquer um que servia para ser colono na Nova Holanda: os candidatos deveriam dispor de capital “para mandar fazer a fábrica de que precisam, pois não podem ser trazidas da Holanda como são aqui necessárias, e para comprar alguns negros, sem os quais nada de proveitoso se pode fazer no Brasil”. E insiste: “Necessariamente deve haver escravos no Brasil (...) é muito preciso que todos os meios apropriados se empreguem no respectivo tráfico na Costa da África”.
     Admitida a necessidade do tráfico negreiro, faltava ainda montar o circuito transatlântico de compra, transporte e venda dos africanos. Em 1637, Nassau envia uma frota do Recife para capturar São Jorge da Mina, entreposto português de comércio de ouro e de escravos no litoral africano (atual Gana). Sem saberem ainda negociar escravos na África, os holandeses levam dois intermediários para tratar com os traficantes africanos. Mas, ao constatar que a região não era suficiente para dar conta do fornecimento de escravos a Pernambuco, Nassau lança seus navios sobre o maior mercado atlântico de cativos: Angola.
     Luanda, Benguela e São Tomé caem nas mãos dos holandeses entre agosto e novembro de 1641. A captura dos dois polos da economia de plantações – as zonas produtoras escravistas americanas e as zonas africanas reprodutoras de escravos – mostrava-se indispensável para o implemento da atividade açucareira. Nassau é enfático: sem o trato negreiro e os portos angolanos, o Brasil holandês seria “inútil e sem frutos para a Compagnie”.
     Pelos mesmos motivos, Portugal se preocupava com a situação na América. Chegou a tentar um acordo com os holandeses para que as duas partes tivessem acesso ao comércio de escravos. Não teve sucesso, e em meados de 1643, Telles da Silva, governador-geral do Brasil, prevenia el-rei: “Angola, senhor, está de todo perdida, e sem ela não tem Vossa Majestade o Brasil, porque desanimados os moradores de não terem escravos para os engenhos, os desfabricarão e virão a perder as alfândegas de Vossa Majestade os direitos que tinham em seus açúcares”. Ou seja: sem o trato de Luanda, a colônia americana estava condenada. Diferentemente do que tem sido dito e escrito em boa parte da historiografia brasileira, o tráfico de escravos no Atlântico Sul era predominantemente bilateral, e não triangular.
     Tropas, navios e munição em quantidades suficientes para o socorro da África Central não poderiam sair de Portugal, que continuava em guerra de fronteira com a Espanha e guerra marítima com a Holanda. Coube então ao Rio de Janeiro e às capitanias adjacentes – principais interessadas no restabelecimento do tráfico negreiro – a tarefa de fornecer gente e petrechos, “pois todo o Brasil necessita de escravos para seu remédio”. Por força das circunstâncias que coibiam a ação da metrópole, abriu-se espaço para uma cogestão lusitana e “brasílica” (nome genérico para os colonos do Brasil) no Atlântico Sul.
     É Salvador Correia de Sá e Benevides (1602-1688) quem conduz, em maio de 1648, a frota luso-brasílica que reconquistará Angola. Composta de onze naus e quatro patachos, com quase dois mil homens, a expedição é financiada em 70% por fundos coletados junto aos negreiros e fazendeiros fluminenses. Dispondo de um estado-maior experimentado no Atlântico Sul e de “boa gente e infantaria exercitada nas fronteiras nas guerras de Portugal e na campanha de Pernambuco”, o corpo expedicionário desembarca e, após combates em Luanda, vence os holandeses em agosto de 1648.
     Num memorial enviado à Corte, a Câmara de Luanda reconhece explicitamente que os sucessos da reconquista de Angola “mal se lograriam se os moradores daquela ilustre cidade [o Rio de Janeiro] se não fintaram [tributassem] com uma muito grande soma de dinheiro com que a armada se forneceu e obrou o fim desejado”. Cinco anos mais tarde, a Câmara do Rio de Janeiro reivindicou orgulhosamente o mérito da expedição: “Quem pode negar a esta cidade a glória da restauração de Angola?” A história da expulsão dos holandeses deixou evidente que o Brasil tinha continuidade fora das fronteiras americanas.
     A partir daí, a presença brasílica afirma-se na África Central. Depois da independência, Angola continua sob influência brasileira, e desde 1823 fala-se da presença em Luanda, e sobretudo em Benguela, de um “partido brasileiro”, que joga as cartas dos interesses negreiros dos escravistas do Império do Brasil contra a política colonial portuguesa. Do lado brasileiro também havia um “partido angolano”, que almejava anexar Angola ao Brasil. Esta estratégia anexionista foi claramente enunciada por Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (1778-1859), pai da pátria, senador, regente do Trono e ministro, na Constituinte de 1823.
     Nenhuma região escravista das Américas teve na África um peso similar ao do Brasil. A intervenção brasileira em Angola, como também no Golfo de Guiné, sobretudo no antigo reino do Daomé, só declina após 1850, com o fim do tráfico negreiro no Atlântico Sul. Concretamente, o ciclo mais longo da economia brasileira é o ciclo negreiro que vai de 1550 a 1850. Todos os outros – do açúcar, do tabaco, do ouro e do café – são, na realidade, subciclos dependentes do ciclo negreiro. Neste sentido, pode-se dizer que a construção do Brasil se fez à custa da destruição de Angola.
     A dependência do tráfico negreiro e da escravidão também deixou efeitos perversos entre nós. O fato de pilhar durante três séculos a mão de obra das aldeias africanas facilitou o extermínio das aldeias indígenas, tornadas desnecessárias, e gerou entre os senhores de engenho, os fazendeiros e o próprio governo, uma brutalidade e um descompromisso social e político que até hoje caracterizam as classes dominantes brasileiras. 
  
Luiz Felipe de Alencastro é professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris IV Sorbonne e autor de O trato dos viventes – formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII (São Paulo: Companhia das Letras, 2000).

Saiba Mais - Bibliografia 
BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti (orgs). História da expansão portuguesa. vol 1. Lisboa: Círculo dos leitores, 1998.
BOXER, Charles Ralph. O império colonial português (1415-1825). São Paulo: Companhia das Letras, 2002
THORNTON, John, A África e os Africanos na formação do mundo Atlântico,1400-1800 . Rio de Janeiro, editora Campus, 2004.

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