“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Ninguém enfrenta o coronel

Incentivados pela Coroa e bem relacionados com a justiça, potentados impunham seu poder nas Minas Gerais com escravos armados.

ANA PAULA PEREIRA COSTA

               Mais de cem escravos arrombaram portas e janelas e invadiram a casa do padre José de Soveral de Miranda, vigário da igreja da freguesia de São Sebastião (atual cidade de Mariana). Segundo seu relato à justiça, depois de matarem “um preto por nome Jereasio a facadas, roubaram 300 oitavas de ouro e várias roupas de seu uso”. Deram-lhe ainda “uma estocada e um tiro que não resultou em morte”. O grupo de escravos pertencia ao coronel Maximiliano de Oliveira Leite e a seu cunhado Caetano Álvares Rodrigues, dois dos homens mais poderosos da localidade. O episódio aconteceu em março de 1726, e ilustra uma prática que se tornou comum na capitania de Minas Gerais durante as primeiras décadas de sua ocupação: o armamento de escravos por parte dos potentados locais, o que lhes proporcionava respeito e vantagens, enquanto fazia aumentar casos de violência e de abusos. 

               A corrida para o território mineiro em busca do metal dourado, sob poderes ainda fragilmente constituídos, criou na região uma atmosfera de tensão, marcada por disputas violentas e crimes de todo tipo praticados por homens e mulheres, livres e escravos, pobres e ricos. Em meio a esse turbulento cenário e preocupados em manter seu poder e autoridade, os poderosos se vigiavam e se atacavam mutuamente, ajudados por tropas de escravos munidos de armas até os dentes.

               As autoridades coloniais acompanhavam a situação com desconfiança. Sabiam que ambos, potentados e escravos, eram úteis para os propósitos de colonização da Coroa portuguesa, ajudando em tarefas de manutenção da ordem, exploração e expansão do território. Por outro lado, percebiam que esses braços armados levavam os poderosos a praticar insolências e audácias. Conter tais atrevimentos era uma questão extremamente delicada. Era preciso encontrar a medida do “bater e soprar” ao lidar com essas figuras: entre perseguir e punir, ou deixar passar.

               Os potentados eram grandes proprietários de terra e de escravos que muitas vezes agiam de forma bastante autônoma em relação à metrópole. Dirigiram-se para Minas Gerais no início do século XVIII para descobrir ouro, e foram conseguindo obter ou ampliar ganhos econômicos e poder de mando. A Coroa portuguesa incentivava a conquista dos sertões com promessas de títulos de nobreza e mercês régias, como cargos públicos. A estas honrarias os potentados adicionavam temor e respeito por meio do comando de escravos armados, em demonstração de força e afirmação pessoal. Assim oscilavam entre colaborar com as políticas coloniais e praticar atos independentes e ilegais – facilitando os descaminhos do ouro, incitando motins, encabeçando violências.

               Um dos mais conhecidos potentados foi Manuel Nunes Viana, líder dos portugueses na Guerra dos Emboabas, ocorrida em Minas Gerais entre 1708 e 1709.  Nascido em Portugal, foi para a capitania mineira tentar a sorte como tantos homens de sua terra. Enriqueceu como comerciante de mantimentos, negociante de gado, fazendeiro e contrabandista de ouro. Fama, riqueza e poder eram sustentados também por uma milícia de escravos armados, que o ajudava a manter a ordem, proteger territórios e expandir seu domínio entre a Bahia e Minas Gerais.

               Mesmo tendo liderado um conflito que desafiou os representantes da Coroa na região, Nunes Viana ganhou mercês de Sua Majestade por prestar serviços ao rei. Recebeu o título de capitão-mor do São Francisco e o de cavaleiro da Ordem de Cristo. Sua sorte só começaria a mudar em 1717, quando Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcelos, o conde de Assumar, chegou para governar a capitania. Ele lançou uma severa perseguição aos potentados que ameaçavam sua autoridade na região, principalmente contra Nunes Viana.

               Na Freguesia de São Sebastião, os coronéis Maximiliano de Oliveira Leite e Caetano Álvares Rodrigues também faziam valer sua autoridade, ora contribuindo com a metrópole na manutenção da ordem pública, ora exercendo pela força uma dominação privada. A invasão de seus escravos à casa do padre José de Soveral de Miranda foi exemplo disso.

               Maximiliano era membro de uma das principais famílias de São Paulo – neto do famoso bandeirante e governador das esmeraldas, Fernão Dias Paes Leme, e sobrinho de Garcia Rodrigues Paes Leme, guarda-mor das Minas e responsável pela abertura do Caminho Novo que encurtou a distância entre o porto do Rio de Janeiro e a região do ouro. Assim como seu avô e seu tio, seguiu para a capitania mineira desbravando matas fechadas, trilhas indígenas pouco conhecidas e conquistando terras para a Coroa portuguesa. Tudo em nome do enriquecimento imediato. Esteve entre os primeiros povoadores de Minas Gerais, fixando-se na freguesia de São Sebastião.

               Já o coronel Caetano Álvares Rodrigues nasceu em Lisboa e iniciou-se na carreira militar muito jovem, embarcando para a Índia no posto de soldado. Depois de ter aí servido por seis anos, destacando-se em várias batalhas de mar e terra, foi para a América portuguesa com aproximadamente 23 anos, em 1710. Na capitania mineira realizou uma série de ações na defesa dos interesses de Sua Majestade, o que lhe traria muitas recompensas, como a patente de coronel das ordenanças (1721) e os títulos de cavaleiro da Ordem de Cristo (1731) e de cavaleiro fidalgo da Casa Real (1746).

               As vidas dos dois coronéis se entrelaçaram em 1716, quando Caetano se casou com a irmã de Maximiliano, Dona Francisca Pais de Oliveira. Tornados vizinhos na freguesia de São Sebastião, passaram a estabelecer seus negócios juntos, atuando com mineração e agricultura. Com todos os seus cargos, títulos, atribuições e considerável riqueza, eram considerados os detentores do maior poder de mando na região da Vila do Carmo, que se tornaria cidade de Mariana em 1745.

               Além de respeitados, eram muito temidos. Valiam-se de escravos armados para formar grupos de capangas que utilizavam a fim de resolver pendências pessoais. Naquele contexto, valentia, crueldade e virilidade eram suportes para a credibilidade. Em diversas circunstâncias procuravam se caracterizar pela agressividade de caráter e por constantes demonstrações de brio em público. Eram claros recados para quem ousasse contrariar suas pretensões.

               Não foi à toa que o padre Soveral passou por momentos angustiantes a mando dos dois coronéis. O desafeto entre eles começou porque o sacerdote não quis atender a uma mulher “que Maximiliano lhe foi pedir confessasse, o que o padre repugnou por saber que andava o sobredito amancebado com ela”. Ao negar à concubina de Maximiliano o direito à confissão, o padre ofendia também o potentado, pois descumprir seu pedido era colocar em questão sua autoridade diante da comunidade.

               Isso o coronel não podia deixar passar. Precisava impor limites sobre a população e evitar possíveis transtornos que pudessem atrapalhar sua autoafirmação e a manutenção de sua integridade pessoal. A violência era a melhor resposta. Ela atestava a valentia e resguardava o “território” de domínio dos potentados, garantindo prestígio, poder local e a posse de mando. Junto com seu cunhado Caetano Álvares

Rodrigues, o coronel Maximiliano ordenou a violenta invasão de escravos armados à casa do vigário.

               O caso foi parar em um tribunal, gerando a abertura de um processo. Mas Maximiliano era muito bem relacionado, inclusive com o juiz ordinário responsável pelo pleito, Belchior da Costa Soares. A sentença foi a condenação de apenas 12 escravos à prisão, “daquele grande número que cometeu as referidas insolências, e isso por amizade de ambos e para tapar a boca ao mundo”, como se queixou o padre Soveral.                 

               Assim se pautavam as relações de dominação e os valores culturais nos tempos iniciais de formação de Minas Gerais. Era um cenário marcado pela violência e por conflitos entre interesses do poder público e do poder privado. Mandavam os que tinham terras e escravos armados. Obedeciam os que tinham juízo.

 ANA PAULA PEREIRA COSTA É PROFESSORA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DOS VALES DO JEQUITINHONHA E MUCURI E AUTORA DE CORPOS DE ORDENANÇAS E CHEFIAS MILITARES EM MINAS COLONIAL: VILA RICA, 1735-1777 (EDITORA FGV, 2014).

 Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 11 - nº 124 - junho 2016

 Saiba Mais: Bibliografia

ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. “Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira Leite e seus aparentados”. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de & SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (orgs.). Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

PAIVA, Eduardo França. “De corpo fechado: o gênero masculino, milícias e trânsito de culturas entre a África dos mandingas e as Minas Gerais da América, no início do século XVIII”. In: LIBBY, Douglas Cole & FURTADO, Júnia F. (orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo. Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006.

SILVA, Célia Nonata da. Territórios de mando. Banditismo em Minas Gerais – século XVIII. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.

 Saiba Mais: Link

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