“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quarta-feira, 24 de março de 2021

Canibalismo em nome do amor

Mães devoravam filhos mortos, viúvas comiam os maridos, filhos banqueteavam-se com os pais. Nem sempre a antropofagia originava-se da luta entre rivais, poderia ser cerimônia fúnebre.

Ronald Raminelli

               Com frequência, os relatos de canibalismo vinculam a ingestão de carne humana à violência. Essa regra, porém, nem sempre é válida para todas as etnias americanas. Radicados entre o litoral dos atuais estados do Maranhão e São Paulo, os índios tupis do século XVI devoravam os inimigos depois de capturados em combates. Seus guerreiros travavam infindáveis batalhas para vingar antepassados mortos em guerras ou em rituais antropofágicos. Os homens enfeitavam suas cabeças e armas com penas de aves tropicais e muniam-se de tacapes, arcos e flechas, partindo em busca da desforra. A captura do oponente era, portanto, a conciliação com o passado, com os entes mortos nos campos de batalha. Depois do confronto, os vencedores retornavam à aldeia, trazendo os corpos, vivos ou mortos, de seus inimigos. Os nativos, assim, iniciavam um rito destinado a consumir a carne do oponente e renovar o ciclo da vida para essas comunidades. Na cerimônia, a memória da vingança perpetuava-se criando elos entre passado e futuro, sendo a única tradição transmitida para a posteridade. A obsessão da desforra permanecia como vínculo entre as gerações.

               Mas esse não era o único motivo da antropofagia. Entre os tapuias era o amor o responsável pela ingestão de carne humana. Tapuia era a denominação tupi para as demais etnias, que não se restringiam ao litoral como os tupis. Estavam em grande parte no interior, com ampla dispersão geográfica. Entre os séculos XVI e XVII, vagavam nos sertões do Nordeste ou, como os goitacás, botocudos e aimorés, na atual área entre o norte fluminense e o estado do Espírito Santo. Ao comparar registros escritos e visuais das práticas canibalescas tapuias e tupis, percebe-se que as últimas são mais conhecidas, fartamente difundidas e imortalizadas nas gravuras do holandês Theodore de Bry (1528- 1598) e no filme Como era gostoso o meu francês (1970), de Nelson Pereira dos Santos. Apesar de pouco explorado, o canibalismo dos tarairius (tapuias do sertão nordestino) presta-se a muitas controvérsias e à admiração por não ser o ódio o responsável pela morte e ingestão de carne humana. Entre esses tapuias, antropofagia era um ato de amor. Para nós seria impossível pensar que o sentimento maternal levaria uma mãe a consumir um filho morto. A relação entre amor e canibalismo também intrigou os colonos holandeses e luso-brasileiros, que ouviram e registraram histórias e imagens sobre os tarairius.

               Integrante da missão artística do príncipe João Maurício de Nassau, o pintor Albert Eckhout (1612- 1665) representou os índios tarairius em várias obras: Dança dos tarairius, índio tarairiu e índia tarairiu (c.1641 e 1643). Nesses quadros, o artista pintou o grupo sem os vestígios da colonização, sem roupas e instrumentos de trabalho. Seus corpos nus simbolizam a condição de bárbaros, de seres desprovidos de regras e vergonha. A nudez e a fidelidade da expressão facial marcavam a fronteira entre o selvagem e o cristão, ou entre o selvagem e o índio submetido à colonização. Para além da nudez, o índio tarairiu apresenta-se com as marcas de sua cultura, enfeitando-se de penas coloridas sobre a cabeça, de corda presa à cintura e de frágeis sandálias. No rosto estão duas hastes perfurando a pele nas extremidades da boca e, talvez, uma pedra verde incrustada no lábio inferior. Nas mãos segura um tacape, flechas e uma lançadeira, demonstrando as suas potencialidades de guerreiro. Sem dúvida, as feições do ameríndio são o detalhe mais original do mestre. No entanto, a fidelidade da representação afasta-o dos padrões de humanidade aceitos pelos europeus do tempo de Eckhout. Um índio que apresentasse os traços da beleza clássica pareceria menos estranho aos olhos da Europa.

               Esse afastamento dos padrões europeus torna-se ainda evidente nas paisagens que servem de fundo dos quadros. Enquanto os tupis de Eckhout foram pintados próximo à casa-grande ou às plantações, os tarairius encontram-se junto à natureza selvagem. A vegetação em torno do índio reforça, mais uma vez, o distanciamento, pois a representação não enfatiza os vínculos de subserviência aos europeus. Os arbustos, as folhas e as pequenas frutas constituem uma natureza selvagem, sem interesse comercial. E assim estavam livres do comércio colonial e dos colonizadores. O espaço dos tapuias localizava-se além das fronteiras da expansão econômica. Em compensação, eles lutaram junto aos holandeses nos combates aos luso-brasileiros, contra os quais adotavam práticas animalescas, pois corriam como as feras, capturavam-nos e, em seguida, devoravam os seus corpos.

               Também representada pelo pintor Albert Eckhout, a mulher tapuia estaria inteiramente nua, caso não houvesse um tufo de folhas preso à cintura para lhe cobrir a genitália. A mão direita segura a mão decepada do inimigo vitimado talvez em combate. Nas costas há um cesto de palha contendo um pé, que certamente tem a mesma origem da mão. O rosto é europeu, com um nariz fino e muito diferente das narinas dos ameríndios. No plano posterior da tela, há índios munidos de lanças e preparados para uma guerra. Os nativos movimentam os braços para frente, dando dinamismo à cena. A tela, por conseguinte, seria dividida em duas partes: a primeira seria uma alegoria da guerra; a segunda, uma representação do canibalismo.

               O combate entre as hordas poderia ser a sequência anterior à cena dominada pela índia antropófaga. Assim, o campo de batalha seria a origem dos membros esquartejados em poder da tapuia. A vegetação em torno da índia também não possui vínculos com o dia a dia dos colonizadores. A árvore rondosa, os arbustos, os campos e as flores conformam uma natureza sem frutos e estranha às necessidades da colonização. A vegetação, a nudez, a guerra e as marcas do canibalismo retratam, enfim, o afastamento da índia do universo europeu, reduzindo-a à barbárie, concebendo-a como ser decaído.

               A célebre tapuia pintada por Eckhout possui traços comuns ao grupo linguístico Jê, como o apego aos cães, as sandálias confeccionadas com cordas e o corte do cabelo em forma de prato, comuns aos timbiras atuais. O retrato seria de uma mulher da etnia tarairiu. Entre esse grupo, segundo os cronistas do século XVII, ao nascer uma criança, cortava-se o cordão umbilical com um caco afiado e depois cozinhava-o para que a mãe o comesse juntamente com o pelico (placenta). Caso uma mulher abortasse, imediatamente o feto era devorado, pois alegavam que não poderiam dar-lhe melhor túmulo. Por certo, as entranhas de onde veio - o corpo da mãe - eram preferíveis à cova na terra. Depois da morte de uma criança, os índios choravam a perda, em seguida, cortavam a cabeça e retalhavam o corpo, inserindo tudo em uma panela. Muitos parentes eram convidados para o evento e juntos comiam a falecida. Ao término da refeição, punham-se a gritar e a chorar.

               Aos sacerdotes cabia talhar, membro a membro, os mortos, fossem eles abatidos nas guerras ou acometidos por morte natural. Enquanto isso, as velhas acendiam a fogueira para assar os membros e todos juntos celebravam o "enterro" com lágrimas e lamentações. As mulheres comiam as carnes do esposo, as raspavam até os ossos, não em sinal de inimizade, mas de afeto e fidelidade. Os cadáveres dos grandes chefes eram consumidos pelos demais chefes. Não ingeriam todo o corpo e guardavam cuidadosamente os ossos até a celebração do festim solene seguinte, pois somente em rituais era possível a antropofagia. Na ocasião, os ossos tornavam-se carvão, raspados em seguida para serem reduzidos a pó e dissolvidos em água. O mesmo se fazia com os cabelos do defunto. Os parentes bebiam essa mistura e não voltavam a suas danças e cantos depois de consumirem todos os restos do cadáver.

               Os cronistas procuram enfatizar as fronteiras entre a antropofagia amorosa tapuia e a vingativa tupi. O dado permite entender a tela de Albert Eckhout de modo diverso. A índia tarairiu carrega consigo partes do corpo humano e próxima à nativa encontra-se uma cena de guerra. Em princípio, a mão e o pé decepados, em poder da mulher, pertenceriam ao inimigo morto no combate. Os relatos sobre a antropofagia tapuia permitem, porém, traçar outras relações. Assim, as partes do corpo pertenciam a um parente: irmão, marido ou filho da índia. O campo de guerra é o local de morte de um guerreiro da tribo e a índia carrega seus restos mortais para serem consumidos na aldeia em sinal de afeto e fidelidade.

               Deste modo, a tela de Albert Eckhout possui duas interpretações possíveis. Em princípio, a índia tarairiu poderia carregar tanto o corpo de um parente morto quanto os restos do inimigo para serem devorados em cerimônia grupal. Mas uma terceira leitura é também plausível. Os registros escritos e visuais europeus, e o pintor em particular, pareciam mais preocupados em constatar a existência da antropofagia do que compreender a sua modalidade ou os motivos capazes de levar nativos a praticá-la. Talvez o artista estivesse mais interessado em compor uma bela imagem, contendo elementos variados da realidade americana, sem se ater à coerência dos estudos étnicos. Devemos admitir que o rigor científico da imagem não era o maior atributo dos artistas seiscentistas, nem mesmo dos holandeses. O historiador Peter Mason comentou que a preocupação com a descrição da realidade, comum entre os holandeses, não pode ser confundida com realismo ou rigor científico. Mesmo sem se ater ao rigor étnico, Albert Eckhout pintou a mulher tarairiu, composição rica em informações que, ao ser comparada às descrições contemporâneas sobre os costumes tapuias, alimentam ainda hoje essa interessante controvérsia.

RONALD RAMINELLI é professor de História Moderna, História da América e do Brasil Colonial na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de Imagens da colonização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005

Saiba mais - Bibliografia

VALLADARES, Clarival do Prado e MELLO FILHO, Luiz Emygdio de. Albert Eckhout; presença da Holanda no Brasil. Rio de Janeiro: Alumbramento, 1998.

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