“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 12 de maio de 2014

A imagem do herói

Morto e esquartejado na Colônia, Tiradentes renasce, como mártir nacional, nas salas de aula da República.
Thais Nívia de Lima e Fonseca
     Ainda hoje o martírio de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, toca os corações dos brasileiros, o que mostra a força simbólica desse personagem. Pouco lembrado na maior parte do período monárquico - afinal ele cometera o crime de inconfidência, isto é, de infidelidade a sua majestade, a rainha d. Maria I -, a figura de Tiradentes começou a ser resgatada com mais força já na campanha republicana, até que, em 1890, um decreto do novo regime institucionalizou este herói nacional.
     A escola também foi um dos principais meios de difusão do mito, sobretudo nas décadas de 1930 a 1950, na chamada Era Vargas, quando as comemorações cívicas se difundiram no Brasil. No dia 21 de abril, data do enforcamento de Tiradentes, sessões cívico-literárias, iniciadas com a execução de hinos e o hasteamento da bandeira nacional, incluíam discursos, declamações de poesias, leituras de composições redigidas pelos alunos, encenações, exposição de desenhos e outras atividades que marcaram profundamente a formação de várias gerações de brasileiros.
     As reformas educacionais de 1931 e de 1942 atribuíram ao ensino de história o papel de valorizar o passado nacional, enfatizando os grandes feitos e os heróis da nacionalidade. Os livros didáticos, além de reforçar o tom épico da conspiração mineira, destacavam o civismo de personagens como Tiradentes, que passavam a encarnar a ideia de sacrifício pela pátria. No Estado Novo (1937-1945), em especial, período em que Getúlio Vargas governou com poderes ditatoriais, programas de rádio, cartazes, filmes e palestras nas escolas, promovidos pelo Departamento de Educação Extraescolar, procuravam ligar não só o passado e o presente, mas também Tiradentes e Getúlio Vargas, como se eles fizessem parte de uma mesma tradição política.
     Se na Monarquia, Tiradentes, quando lembrado, era apresentado como um homem sem habilidades e realização profissional, no início da República ele passou a ser descrito como personagem de múltiplos talentos, entre os quais o talento político e revolucionário. Já no Estado Novo, tornava-se exemplo do brasileiro laborioso e dotado de inúmeras qualidades: "Entre os mais afeiçoados à ideia libertadora, figurava um alferes de cavalaria, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Era um homem pobre, de coração generoso, inteligência v iva, amante do progresso, um autodidata, cheio de ardor e capaz de grandes empreitadas. (...) Era o tipo representativo do brasileiro do século XVIII, cujas virtudes e qualidades os pósteros herdaram (...)", escreveu Artur G. Vianna no livro para a 3ª série ginasial História do Brasil de 1944.
     O "tipo representativo do brasileiro do século XVIII" deixara de herança o espírito empreendedor, inventivo, honrado, dedicado à coletividade, útil, portanto, à nova cidadania. O autor também estabelecia uma ponte entre o "brasileiro do século XVIII" e o do século XX, que poderia ser muito bem identificado com o próprio Getúlio Vargas. Na mesma época, os textos escritos pelos alunos das escolas primária e secundária para concursos promovidos pelos jornais, também revelam a influência que a imagem que então se construía de Tiradentes exercia sobre as crianças, não havendo dúvidas, por exemplo, sobre o heroísmo e a "liderança" do alferes.
     Os próprios jornais já influenciavam os trabalhos das crianças. "Tio Mário", responsável pelo caderno infantil do Estado de Minas, no concurso de 1949, recomendava, por exemplo, o uso do termo rebelião, em vez de inconfidência, para dar maior valor patriótico. No concurso de 1954, o caderno infantil do Diário de Minas orientava as crianças a "ressaltar os vultos principais desse movimento que foi o marco para outros movimentos que vieram depois, como a Abolição e a República".
   Também são significativos os desenhos das crianças que participavam dos concursos. Um deles, intitulado O amanhecer da liberdade, trazia a cabeça de um Tiradentes-Cristo colocada ao pé de uma forca, de onde pendia o baraço (laço da corda usada na execução). Ao fundo, por trás das montanhas, erguia-se um radiante sol - a liberdade -, nascendo para todos os brasileiros, mas também aparecendo acima da cabeça do Tiradentes-Cristo, como uma auréola. Dos nove desenhos vencedores do concurso do Estado
de Minas, em 1949, sete fizeram menção direta ou indireta ao enforcamento, dos quais três representaram a execução, inspirando-se na pintura o Martírio de Tiradentes, de Aurélio de Figueiredo.
     Já o esquartejamento, embora sempre narrado nos livros didáticos e lembrado nas composições, não figurava na maioria dos desenhos, o que se deve, talvez, à pouca difusão da tela que representou este momento, Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo.
     Todo esse aparato criado pelo Estado difundia uma noção da história como obra apenas de espíritos elevados e heroicos. Uma história sacralizada, destinada a ser mais celebrada do que compreendida. Apesar das mudanças no ensino da história nos últimos anos, muitas dessas ideias ainda continuam a ser repetidas. Em abril de 2001, as escolas públicas mineiras receberam do governo do estado um livrinho intitulado Joaquim José: a história de Tiradentes para crianças, em que Tiradentes é heroificado. Em 2002, a telenovela Coração de Estudante, da Rede Globo, mostrava, num de seus capítulos, professoras e alunos de uma escola preparando as comemorações do Dia de Tiradentes. A surpresa foi ver, na telinha, os mesmos preparativos adotados na primeira metade do século XX: é espantosa a vitalidade desse herói na memória nacional!

Thais Nívia de Lima e Fonseca é professora de História da Educação e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

A outra face do alferes
Documento raro revela um Tiradentes demasiado humano.
     Apesar de Tiradentes ter sido um dos personagens mais estudados de nossa História, muito pouco se conhece de sua vida anterior ao movimento mineiro de 1789. Sobretudo no que se refere à sua intimidade, as informações são escassas, e não faltam controvérsias sobre seu patrimônio, sua formação intelectual, seus descendentes etc... Há, no entanto, um documento pouco conhecido do público em geral – e mesmo entre os historiadores – que traz uma faceta no mínimo curiosa do inconfidente mineiro. Trata-se do processo de Antônia Maria do Espírito Santo, que se encontra no Arquivo Público Mineiro – documentação descoberta pelo historiador Tarquínio José Barboza de Oliveira, principal organizador dos Autos da Devassa (o processo iniciado contra os suspeitos em 1789). Com a preciosa colaboração das pesquisadoras e paleógrafas Maria José Ferro e Maria Teresa –, que transcreveram o processo de forma criteriosa segundo a fonte original, a Revista de História põe em discussão esse documento, para que, ao trazer à luz outras facetas do mitológico mártir da Inconfidência, talvez possamos nos aproximar um pouco mais da figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
     Entre novembro de 1789 e meados de 1790, houve em Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto um processo envolvendo Tiradentes. Nele, Antônia Maria do Espírito Santo, amásia do inconfidente, reivindica junto às autoridades locais a posse da escrava Maria, de “Nação Angola” – junto com seus dois filhos pequenos, Gerônimo e Francisca – que fora “sequestrada” com os demais bens de Tiradentes na ocasião de sua prisão. Para tanto, Antônia Maria alega que a escrava lhe havia sido doada pelo alferes, não pertencendo mais a Tiradentes, e que, portanto, lhe deveria ser restituída. As delicadas relações entre o inconfidente e sua concubina são expostas no processo da seguinte forma:
     “Diz Antônia Maria do Espírito Santo, menor órfã do falecido seu pai Antonio da Silva Pais, que estando na companhia da viúva sua mãe Maria Josefa, vivendo com toda a honestidade e recato, a principiou a aliciar o alferes Joaquim Jose da Silva Xavier, o qual debaixo de palavra de honra e promessas esponsalícias lhe ofendeu a pudicícia, de cuja ofensa resultou conceber e dar à luz um feto do mesmo alferes, que passou ao extremoso excesso de arrancar a suplicante dos braços da dita sua mãe”. Depois de apresentar um prelúdio da união entre Tiradentes e Antônia, o documento prossegue, indicando a causa do processo: “Vivendo em sociedade por causa daquela promessa, doou à mesma suplicante uma escrava por nome de Maria, de nação Angola, que sucedendo ser preso o dito alferes Joaquim José da Silva Xavier na cidade do Rio de Janeiro, foi confiscado, ou sequestrado com outros mais bens”.
     Após a descrição do caso, surge o apelo: “porque nem a razão, nem o Direito permitem que qualquer que haja de purgar o delito alheio com os seus próprios bens, e a suplicante é uma miserável órfã (...)”.
Ou seja: para reaver sua escrava, “a menor” (como é qualificada no processo) Antônia Maria joga com informações que levam a crer que ela foi vítima dos arroubos e das falsas promessas de Tiradentes – que a tirou dos braços de sua mãe, deflorando-a, concebendo nela um rebento, sem que cumprisse, contudo, a promessa de casamento. Chama a atenção, por ser algo grave dentro do contexto da época, o fato de Tiradentes ter faltado com sua “palavra de honra” ao acenar com promessas de casamento que não foram cumpridas. O pesquisador do período da Inconfidência Mineira e doutorando da USP André Figueiredo frisa o peso da palavra na Ouro Preto do final do século XVIII e confirma a fama de boquirroto do alferes: “Numa sociedade como a mineira, a palavra representava muito. Tudo era lavrado na base da palavra: as compras do dia-a-dia, os relacionamentos amorosos, os acertos de trabalho etc. Tiradentes, segundo percebo de seus depoimentos nos Autos da Devassa, era um grande falador. Falava sem se preocupar se estava ou não atacando as relações metropolitanas”.  

Saiba Mais – Link

Saiba Mais – Filme
Os Inconfidentes
Com base nos Autos da devassa, na poesia dos inconfidentes e de Cecília Meireles, Joaquim Pedro de Andrade contesta versões oficiais da história da Inconfidência Mineira, e trata da posição de intelectuais diante da prática de políticas revolucionárias. O filme retrata a Inconfidência Mineira, movimento político do século 18 do Estado de Minas Gerais. Faziam parte do grupo de conspiradores contra o domínio colonial português poetas e nobres, incluindo o padre (Carlos Gregório) e o coronel da guarnição. Realizado para a TV Italiana, RAI, como parte da série intitulada "A América Latina vista por seus idealizadores", Os Inconfidentes foi sucesso internacional de crítica e público, tendo sido premiado no Festival de Veneza.
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
http://www.youtube.com/watch?v=wRkwQhzDUG8https://mega.co.nz/#!OYsQWQgD!fRV25oBsXt46CdmlMjqHflAytgNQnKX5KWHG5RLrrA4Ano: 1972
Duração: 76 minutos
Áudio: Português

Saiba Mais – Biografia 
Líder da Conjuração Mineira de 1789, o alferes Joaquim José da Silva Xavier passou à história como um precursor idealista e ousado da Independência do Brasil. A Coroa portuguesa mandou executá-lo e esquartejá-lo, além de amaldiçoar seus descendentes.
Nasceu em São José Del-Rei (hoje cidade de Tiradentes), em Minas Gerais, no ano de 1746, e morreu em 21 de abril de 1792, no Rio de Janeiro (RJ).

Líder civil da Revolução de 1930 comandou a modernização do Estado brasileiro com políticas nacional-desenvolvimentistas. No seu legado sobressaem as bases da industrialização, a legislação trabalhista e a participação do Brasil na II Guerra.
Nasceu em São Borja (RS), em 19 de abril de 1882, e morreu em 24 de agosto de 1954, no Rio de Janeiro (RJ).

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Especial - Revolução dos Cravos

Léguas a nos separar
Em contradição com sua própria linha política, o regime militar brasileiro apoiou, em 1974, a Revolução dos Cravos, em Portugal, que acabava com um período de ditadura.
     No dia 25 abril de 1974, um grupo de jovens militares, capitães na maioria, pôs fim a uma das mais longas ditaduras da Europa, a do Estado Novo português. Iniciado a partir de um golpe militar em 1926, transformado em ditadura civil e corporativa no início da década de 1930, sob a liderança de António Oliveira Salazar, o governo autoritário conviveu com importantes acontecimentos internacionais como, a crise do entreguerras, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria e o gradual declínio dos sistemas coloniais europeus.
     O golpe do 25 de Abril rapidamente se transformou na Revolução dos Cravos, um dos acontecimentos mais dramáticos do período da Guerra Fria. Foi inesperado também, ocorrendo praticamente da noite para o dia. Pegas de surpresa, nações poderosas, como os Estados Unidos, acabaram na constrangedora posição de meros observadores.   Como disse o chefe da delegação da CIA em Londres, Cord Meyer: “Quando a Revolução aconteceu em Portugal, os Estados Unidos tinham ‘saído para almoçar’. Foi uma surpresa total”. O processo revolucionário abriu a possibilidade de que, no chamado “verão quente” de 1975, sob a chefia do general Vasco Gonçalves, Portugal se aproximasse em demasia do bloco soviético. Para muitos observadores, havia o perigo real de se transformar em um país comunista.
     A queda da ditadura portuguesa gerou opiniões diversas, tão comuns naqueles anos de bipolaridade. Por um lado, por exemplo, o senador norte-americano James Buckley afirmou, preocupado: “Não há nada a acontecer hoje no mundo – nem no Sudeste Asiático, nem no Oriente Médio – que tenha metade da importância e seja mais ameaçador que o avanço comunista para o poder em Portugal”. Por outro lado, o escritor e jornalista Gabriel García Márquez, em visita a Lisboa para cobrir a revolução para o jornal colombiano Alternativa, não só comparou a capital portuguesa à Havana de 1959 como também afirmou suas esperanças em um futuro socialista na pequena república ibérica.
     No Brasil, claro, os acontecimentos portugueses logo ganharam a atenção de governo, intelectuais e opinião pública. A oposição à ditadura militar festejou como se a vitória fosse sua. Exilado na Europa, o cineasta Glauber Rocha dirigiu o belo documentário “As armas e o povo”, enfatizando o olhar popular a respeito daqueles acontecimentos.  O fotógrafo Sebastião Salgado fez uma série de fotografias tanto da Revolução quanto da guerra civil na África. Mas foi, talvez, a partir da música de Chico Buarque de Holanda que o Portugal pós-25 de Abril ficou mais conhecido. A terra lusitana repleta de conservadorismo, tradição e fé católica se transformou em lugar da esperança e em exemplo a ser seguido. Pelo menos três canções de Chico se remetem, direta ou indiretamente, ao tema. A primeira delas, “Fado Tropical” [ouça com Chico], composta em parceria com Ruy Guerra para a peça “Calabar: o elogio da traição”, foi escrita antes da queda do salazarismo. Por ocasião do processo revolucionário, na medida em que Portugal ou se redemocratizava ou se aproximava do socialismo, dizer que “esta terra ainda vai cumprir seu ideal/ ainda vai tornar-se um imenso Portugal” soava provocativo para a ditadura. A canção, assim como a peça, foi proibida. No início da década de 1980, Chico compôs e gravou “Morena de Angola” [ouça com Chico], “minha camarada do MPLA”, em referência ao Movimento Popular de Libertação de Angola, o partido marxista que havia tomado o poder após a descolonização.
     Foi com “Tanto Mar” [ouça com Chico], composta intencionalmente em homenagem à Revolução dos Cravos, que o entusiasmo e a adesão aos acontecimentos portugueses pós-1974 ficaram mais evidentes. A versão mais conhecida por nós, brasileiros, não é a mais conhecida entre os portugueses [ver box]. Composta em plena ditadura militar, sua letra foi logo censurada. No LP gravado ao vivo com Maria Bethânia em 1975, foi tocada apenas sua versão instrumental. A primeira versão falava de um país em festa em contraste com nossa tristeza. “Lá faz primavera, pá/ Cá estou doente”. Mas a versão que veio a público no Brasil era outra, datada de 1978, e que consta do disco “Chico”, do mesmo ano. A Revolução havia terminado: “Foi bonita a festa, pá”. Mas algo dela havia permanecido: “Esqueceram uma semente/ Nalgum canto de jardim”. Quando Chico pôde finalmente gravar a música, a vertigem revolucionária já tinha se esvaído, frustrando aqueles que sonhavam com uma radicalização maior. Para a intelectualidade brasileira de esquerda, o fim do ímpeto revolucionário teve mais peso do que a conquista da democracia pelos portugueses. Por isso o evidente sentimento de frustração na segunda versão da letra: “Já murcharam tua festa, pá”.
     O Brasil vivia sob uma forte ditadura e, para a intelectualidade de esquerda, qualquer derrota de regimes arbitrários à direita significava um alento. Se a oposição brasileira se regozijava com a queda do Estado Novo português, era de se esperar que a postura do governo dos militares fosse oposta. Se não resultasse em um rompimento definitivo, pelo menos que fossem adotadas medidas de cautela. Não só em relação a Portugal, mas, sobretudo, em relação às antigas colônias que gradualmente foram aderindo ao bloco socialista. Apesar do anticomunismo, apesar das relações amistosas com governos ditatoriais e de direita, como os de Pinochet no Chile e de Stroessner no Paraguai, para nos restringirmos à América Latina, o posicionamento brasileiro foi contrário a tudo o que dele se esperava. Já no dia 27 de abril, o Brasil reconhecia formalmente o novo regime português, tendo sido o primeiro país a fazê-lo. E ofereceu imediatamente asilo político ao presidente da República deposto, Américo Tomás, e ao presidente do Conselho de Ministros, sucessor de Salazar, Marcello Caetano, que veio a falecer no Brasil seis anos depois.

A questão de Angola
     As razões que levaram os militares a adotar uma política inesperada têm a ver, sobretudo, com a chamada questão colonial e com as guerras de independência de Angola, Moçambique e Guiné, travadas desde o início dos anos 1960. Essas batalhas contribuíram para a derrocada do regime autoritário em Portugal. Álvaro Lins, embaixador brasileiro em Lisboa no final da década de 1950, vislumbrava a possibilidade de o Brasil vir a se tornar o herdeiro natural da influência portuguesa nos territórios africanos. Segundo suas palavras: “O fato evidente e incontestável de que seremos, em tais colônias, os herdeiros legítimos e substitutos naturais de Portugal, em matéria de influência cultural e intercâmbio comercial, quando se tornarem países independentes”.
     O otimismo do embaixador, entretanto, contrastava com a insistência de Portugal em manter as colônias do ultramar. No início da guerra anticolonial, o Brasil, junto com o Vaticano e a Espanha, tentou convencer o governo português a optar por uma saída negociada para a crise. Portugal recusou. Data desta época uma das mais conhecidas frases de Salazar: “Estamos cada vez mais orgulhosamente sós”. Mas os olhos do Brasil e dos brasileiros se mantiveram abertos para a evolução da política portuguesa.
     A esperança de acompanhar de perto a evolução da redemocratização portuguesa veio ao lado do desejo de ser parte integrante do processo de transição das antigas colônias para a independência. O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, esforçou-se ao máximo para que o governo brasileiro tivesse um papel de destaque nas negociações com as colônias. Portugal, entretanto, apesar da gratidão pelo comportamento brasileiro no imediato pós-25 de Abril, mostrava resistência quanto a um papel de destaque do Brasil nas negociações pela independência das nações africanas. Para o ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Mário Soares, as negociações deveriam ocorrer sem a mediação de outros países. 

Brasil desagradando o governo de Lisboa
     Insatisfeito, o Brasil não hesitou em tomar atitudes que desagradaram ao governo de Lisboa. Duas delas merecem destaque: em 16 de julho de 1974, sem consulta prévia aos portugueses, o Brasil reconhecia a independência da Guiné-Bissau. Esta atitude, que passava por cima do Tratado de Amizade e Consulta, causou mal-estar em Lisboa. Para Portugal, tratava-se de uma incursão indevida visando à superação da hegemonia portuguesa na África. O ministro Mário Soares exigiu desculpas, mas o Itamaraty considerou injustificada tal medida. Este foi, provavelmente, o momento de maior tensão nas relações diplomáticas luso-brasileiras durante o processo revolucionário português. Mesmo após a opção das novas nações africanas de aderirem ao bloco socialista, o governo brasileiro continuou decidido a influenciar os destinos daqueles países. No início de 1975, antes de encerradas as negociações para a independência de Angola, o Brasil instalou uma representação oficial em Luanda. Proclamada a independência, em 11 de novembro daquele ano, o governo brasileiro logo reconheceu o feito de Angola, sendo o primeiro país a fazer isso. A representação logo se transformou em embaixada. A atitude brasileira de reconhecer um regime com valores marxistas, como era de se esperar, causou estranheza no corpo diplomático norte-americano. 
     Indicado pelo ministro das Relações Exteriores, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, o diplomata Ítalo Zappa chefiava o Departamento de África, Ásia e Oceania do Itamaraty. De cunho esquerdista, as opiniões de Zappa iam ao encontro da opção do general Geisel de se afastar do colonialismo português. Esta postura estava vinculada à possibilidade de o Brasil exercer influência sobre as jovens nações que se formariam com o fim do sistema colonial.
     O Departamento chefiado por Zappa encontrou situações diferentes nos territórios africanos de língua portuguesa. A Guiné já tinha seu território reconhecido por um conjunto expressivo de nações desde setembro de 1973. Moçambique foi reconhecida imediatamente, em função da existência de apenas um partido político, a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), sob a direção de Samora Machel. Sem maiores traumas, Moçambique teve sua independência reconhecida em 1975, a partir dos processos de negociação com o governo revolucionário português.
     O problema maior se encontrava em Angola. Na mais rica das colônias portuguesas, três forças políticas se digladiavam pelo controle do território. A FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) tinha seu quartel-general no Zaire, ocupava o nordeste do território e, militarmente, era apoiada pelos Estados Unidos e pela China. A Unita (União Nacional pela Independência Total de Angola) tinha sua base militar em Zâmbia e ocupava o planalto central da colônia. Até maio de 1975, esta organização não dispunha de grandes patrocínios externos, sendo apoiada secretamente apenas pelo governo português. As maiores bases do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) situavam-se em Luanda, tanto na periferia quanto entre suas elites intelectuais. Dirigida pelo médico e poeta Agostinho Neto, contava com a simpatia dos segmentos radicalizados das Forças Armadas portuguesas. Sua crescente força militar decorreu dos apoios soviético e cubano, evidenciando assim a tendência que seguiria caso viesse a obter a vitória nas armas. 
     Indicado por Ítalo Zappa, o diplomata Ovídio de Melo foi nomeado chefe da representação brasileira em Luanda. Sua tarefa consistia em negociar com as forças em conflito, procurando manter neutralidade. Embora formalmente o fizesse, Ovídio de Melo pendia para o MPLA. Percebia que a FNLA nada mais era que uma invenção americana, enquanto que a Unita começava a representar um conluio de interesses portugueses e sul-africanos. Ao mesmo tempo, afirmava para o corpo diplomático brasileiro o predomínio do MPLA. Seu comportamento gerou estranheza na diplomacia americana, que não tardou a pressionar por sua saída.
     No Brasil, a opção de Ovídio de Melo e de nossa diplomacia como um todo também foi motivo de estranhamento. O jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, ao mesmo tempo em que se opunha à política externa em relação a Angola, não deixava de alertar para a possibilidade de constituição de mais um satélite do Kremlin em território africano. Também dentro das Forças Armadas, o descontentamento se manifestava na voz do general Sílvio Frota, ministro do Exército e futuro opositor de Geisel.
     A despeito de importantes pressões externas e internas, o Brasil se manteve irredutível no apoio ao MPLA. É bom lembrar que, além das pressões citadas, a ditadura militar brasileira era alvo da desconfiança das antigas colônias, que não se esqueciam do recente apoio do Brasil ao colonialismo português. À medida que a guerra pelo controle do território se radicalizava, que os Estados Unidos patrocinavam a unidade da FNLA com a Unita e os embaixadores de diversos países se retiravam de Angola, o Brasil, com Ovídio de Melo, permanecia em Luanda. As negociações para a independência angolana se encerraram, conforme previamente acordado, no dia 10 de novembro de 1975. À primeira hora do dia 11, o representante brasileiro se apresentou ao novo governo, antes mesmo de qualquer país do bloco socialista.
     A opção do Brasil de permanecer em território angolano evidenciou uma conduta de autonomia e independência, principalmente em relação aos Estados Unidos.  Naquela difícil conjuntura, ela decorreu do posicionamento político à esquerda dos embaixadores Ovídio de Melo e Ítalo Zappa, e também do conhecido antiamericanismo do presidente Geisel. Vale notar, entretanto, que se foi “o maior feito da diplomacia brasileira nos últimos trinta anos”, ela não garantiu premiação ou reconhecimento para seus personagens mais importantes: os embaixadores Ítalo Zappa e Ovídio de Melo. Zappa foi o único de sua categoria que não recebeu a Ordem do Mérito Militar, além de ter deixado o Itamaraty sem jamais servir em um país de primeira linha. Ovídio de Melo foi depois encaminhado para a Tailândia por seis anos, e a seguir para a Jamaica. Foi promovido a ministro de primeira classe somente em 1985, depois do restabelecimento da democracia no Brasil.
     Esperança de transição para a esquerda, pragmatismo para os militares, maldição para os diplomatas. A Revolução dos Cravos e a luta pela independência das colônias foram, embora por motivos diversos, apoiadas por forças contraditórias no Brasil. Vale perceber, neste breve exemplo histórico, datado de abril de 1974 a novembro de 1975, que a política é rica em surpresas. Quando se esperava uma radicalização revolucionária, murchou a festa. Quando se imaginava um alinhamento brasileiro com os Estados Unidos, a aliança se deu à esquerda. E quando se podia imaginar o reconhecimento dos artífices da opção brasileira, veio seu incômodo confinamento em terras distantes. Passados muitos anos desde o fim da ditadura e do império português, pode-se perceber hoje a importância das escolhas do governo e da diplomacia do Brasil. Ainda que com a devida “distância entre intenção e gesto”.

Francisco Carlos Palomanes Martinho é professor do Departamento de História da Uerj e autor do livro A Bem da Nação: o Sindicalismo Português entre a Tradição e a Modernidade (1933-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.


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Saiba Mais – Filme
Trem Noturno para Lisboa
Raimund Gregorius (Jeremy Irons). Afetuosamente chamado de ‘Mundus’ por seus alunos, é um professor de latim do ensino médio e um especialista em línguas antigas. Sua vida é transformada depois de um encontro misterioso com uma jovem portuguesa na antiga ponte de Kirchenfeld, em Berna, Suíça – ele consegue impedir que salte para a morte nas águas geladas do rio. Raimund fica intrigado, mas a mulher desaparece, deixando seu casaco pra trás. Dentro de um bolso, ele descobre um livro de um médico português chamado Amadeu de Prado, com uma passagem de trem no miolo. Ele decide usá-la espontaneamente, partindo para uma jornada de aventura em Lisboa. Enquanto procura pelo autor, Raimund revisita um capítulo sombrio da história do país e desvela um trágico triângulo amoroso. Sua jornada transcende o tempo e o espaço, tocando questões da história (revolução dos cravos)  da filosofia e da medicina.
Direção: Bille August
Ano: 2013
Áudio: Alemão, Inglês, Português
Duração: 110 minutos

domingo, 4 de maio de 2014

Silvio Tendler lança novo filme sobre agrotóxicos

A cada 90 minutos, alguém é envenenado por um agrotóxico no Brasil. Comer também é um ato político.
Matéria publicada originalmente no site Contra os Agrotóxicos, em parceria com o Canal Ibase
Camila Nobrega e Rogério Daflon
     A cada 90 minutos, alguém é envenenado por um agrotóxico no Brasil. O filme “O veneno está na mesa 2″ traz à tona uma encruzilhada. Para o diretor do documentário, Silvio Tendler – que tem no currículo “Jango” e “Cidadão do mundo”,  sobre Josué de Castro – está mais do que na hora de o pais fazer uma escolha entre dois caminhos: uma alimentação saudável fruto de uma agricultura familiar ou um modelo com base no agronegócio calcado no trinômio monocultura, baixa empregabilidade e agrotóxicos.
     - Eu comecei a entender o peso da alimentação na vida das pessoas quando soube que tenho diabetes. A partir daí, me dei conta de como o a comida pode levar doenças às pessoas. O  filme “O veneno está na mesa 1″  foi um alerta, mas o de agora traz uma alternativa. Ele te leva a escolher em que mundo você quer viver.  É agora ou nunca mais.
     O filme acaba de ser disponibilizado no YouTube. Ele foi exibido pela primeira vez em sessão lotada por mais de 600 pessoas no Teatro Casa Grande, no Rio, no dia 16 de abril. A sessão foi dedicada às cinco mil pessoas removidas do terreno da empresa Oi, no Engenho Novo, Zona Norte do Rio de Janeiro, que até hoje estão sem moradia.
     Antes do início do debate pós-filme, o diretor foi aplaudido de pé. O longa suscitou uma ótima discussão inspirada em cenas registradas em diferentes cidades brasileiras, onde a agricultura familiar tem sido pressionada em seu território e seus modos de vida pelo agronegócio. Há situações tão conflitantes que beiram o absurdo, como aviões de empresas pulverizando suas plantações e, ao mesmo tempo, lançando agrotóxicos em escolas e em culturas de pequenos produtores que não usam nenhum tipo de veneno.
       Um dos relatos do documentário é o de uma agricultora que teve um quadro grave de depressão que, ao que tudo indica, foi provocado pelo excesso de exposição a agrotóxicos em longo prazo. O que mais assusta, porém, é exatamente o fato de que não se trata de um caso isolado. Existe um grande problema de subnotificação de contaminações por este tipo de substância, mas, aos poucos, cada vez médicos diagnosticam mais casos de intoxicações e até câncer entre os trabalhadores do campo.
     Luiz Cláudio Meirelles, da Fiocruz, que participou de debate logo após a exibição, lembrou que, recentemente, a Agencia Nacional de Vigilância Sanitária liberou o uso de dois novos insumos químicos já banidos de outros países. No total, as megaplantações brasileiras contam com 14 tipos de agrotóxicos proibidos em outras nações.
     A batalha contra os produtos químicos na agricultura, que conta com mais de 80 entidades da sociedade civil na Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, tem adversários de grande peso econômico e político. Por um lado, desde a década de 1960, com a chegada da Revolução Verde ao Brasil e seu pacote tecnológico que aparelhou e endividou pequenos agricultores, a produção de alimentos foi cada vez mais inserida na lógica do capital internacional, calcada também no monopólio.
    Para se ter uma ideia, no Brasil, há 130 empresas que comercializam sementes modificadas e agrotóxicos, sendo que seis delas – Monsanto, Dow, Bayer, Basf, Syngenta e Dupont – controlam 68% do mercado. A concentração torna a vida dos agricultores familiares cada vez mais difícil. Além disso, no campo político o direito dos grandes latifundiários também fica assegurado. 120 deputados federais defendem os interesses de grandes fazendeiros – cerca de 40 mil pessoas – no Congresso Nacional.   Enquanto isso, aproximadamente 10 parlamentares representam mais de 12 milhões de pessoas que dependem da agricultura familiar e garantem os alimentos que chegam à mesa dos brasileiros.
Entrevistado no filme, o colombiano Miguel Altieri ressalta que a maior parte da produção agrícola de grandes empresas é para exportação.
     - A monocultura produz apenas 30% dos alimentos que comemos. A agricultura camponesa é responsável por 70%. Precisamos dar mais atenção a ela.
      Diferentemente do primeiro volume do “Veneno está na mesa”, nesta nova produção o cineasta aborda não apenas o impacto da agricultura convencional na vida dos brasileiros, mas vai além e mostra alternativas dentro da agricultura familiar que já estão em curso no território brasileiro, como o cultivo orgânico, a agroecologia e os sistemas agroflorestais. No Rio de Janeiro, por exemplo, há um circuito de feiras – orgânicas, agroecológicas e da roça – onde as pessoas podem buscar alimentos mais saudáveis e produzidos de forma mais justa também para os trabalhadores do campo, ampliando os meios de comercialização, aproximando produtor e consumidor e reduzindo os circuitos de distribuição dos alimentos.
     Mas a transição no Brasil tem sido difícil. O que está em disputa são modelos econômicos bem distintos. Um caso que ilustra isso é o da Chapada do Apodi, no Rio Grande do Norte, onde, segundo dados do filme, 13 mil hectares foram desapropriados por decreto da presidente Dilma Rousseff em prol do agronegócio, em detrimento da produção agroecológica da qual sobrevivem milhares de famílias.
     Pela forma como atua no território, em total desrespeito às populações, este modelo de desenvolvimento, cujos tentáculos aparecem não apenas na agricultura, está em xeque. O momento é o do conflito e não se pode deixar de tomar partido nesse caso. Comer também é um ato político.

Saiba Mais – Documentário
O Veneno Está Na Mesa I
     Filme de um dos maiores documentaristas do Brasil, Silvio Tendler, mostra o cenário assustador que se encontra o país em relação ao uso indiscriminado de agrotóxicos. O documentário mostra o perigo a que a população está exposta por conta do emprego de agrotóxicos na agricultura, e como este modelo beneficia as grandes transnacionais do veneno em detrimento da saúde da população. A população engole os produtos envenenados e as empresas ficam com os lucros.
     E, além da população, que consome os alimentos oriundos da produção agrícola, trabalhadores que manipulam os venenos também estão à mercê da contaminação e prejuízos com a saúde.
     Você sabia que o Brasil é o país que mais pulveriza agrotóxicos nos alimentos? Que é o recordista em consumo desses químicos?
Que um brasileiro consome em média 5,2 litros de agrotóxicos anuais?
Que os agrotóxicos provocam uma série de problemas de saúde, desde lapso de memória em crianças até má formação dos fetos?
Que apesar do Governo tentar proibir uso de muitos químicos, a justiça concede liminares a favor das grandes corporações químicas?
Que para conseguir crédito junto aos bancos o pequeno trabalhador é obrigado a usar transgênicos e pesticidas? Que as doenças provocadas por esses químicos nos trabalhadores do campo consomem 1,8% do PIB em tratamentos médicos?
Direção: Silvio Tendler
Duração: 50 Minutos
Ano: 2011
Áudio: Português

O Mundo segundo a Monsanto
     O documentário "O Mundo segundo a Monsanto", traça a história da principal fabricante de organismos geneticamente modificados (OGM), cujos grãos de soja, milho e algodão se proliferam pelo mundo, apesar dos alertas de ambientalistas.
A diretora, a francesa Marie-Monique Robin, baseou seu filme - e um livro de mesmo título - na empresa com sede em Saint-Louis (Missouri, EUA), que, em mais de um século de existência, foi fabricante do PCB (piraleno), o agente laranja usado como herbicida na guerra do Vietnã, e de hormônios de aumento da produção de leite proibidos na Europa.
     O documentário destaca os perigos do crescimento exponencial das plantações de transgênicos, que, em 2007, cobriam 100 milhões de hectares, com propriedades genéticas patenteadas em 90% pela Monsanto.
      Um capítulo do livro, intitulado "Paraguai, Brasil, Argentina: a República Unida da Soja", relata o ingresso desse cultivo nesses países, que estão hoje entre os maiores produtores do mundo, por meio de uma política de fatos consumados que obrigou as autoridades do Brasil e do Paraguai a legalizar centenas de hectares plantados com grãos contrabandeados.
A legalização beneficiou obviamente a Monsanto, que pôde cobrar assim os royalties por seu produto. 
Direção: Marie-Monique Robin
Duração: 109 Minutos
Ano: 2008
Áudio: Português

Saiba Mais – link

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Especial - Revolução dos Cravos

O que foi a Revolução Portuguesa
Disparada por uma canção, liderada por jovens militares, ela conquistou sociedade, radicalizou-se e depois sucumbiu, em quatro décadas de diluição.
     Há 40 anos, na noite de 24 de abril, os ouvintes de rádio em Lisboa nada suspeitaram, quando uma emissora popular executou a canção “E depois do adeus”, de Paulo de Carvalho, vencedora do Festival RTP da Canção de 1974. Mal sabiam que era uma senha, pela qual os membros do Movimento das Forças Armadas davam início a um golpe contra uma ditadura que durava 48 anos. Fora fundada por Oliveira Salazar e era chefiada, depois da doença e morte do líder, pelo professor Marcelo Caetano.
     A segunda parte da operação também foi disparada por uma canção executada na Rádio Renascença, exatamente aos 20 minutos da madrugada de 25 de abril. Esta segunda senha foi a canção “Grândola, Vila Morena” [ouça com Nara Leão]. Ao contrário da primeira, estava proibida sob acusação de fazer propaganda comunista. Sua transmissão significava que as tropas comandadas pelo capitão Salgueiro Maia estavam ocupando o Terreiro do Paço e logo a seguir cercando o quartel do Carmo, onde se abrigavam Marcelo Caetano e alguns ministros.
     Outras unidades, por todo o país, começaram a agir também a partir da execução da música, que viraria um símbolo romântico do golpe, juntamente com os cravos vermelhos com que as jovens presenteavam os soldados cujos fuzis traziam a democracia. Dias depois eram espalhados cartazes pelas cidades com as imagens de um soldado do Exército e um marinheiro e os dizeres: “Ditosa Pátria que tais filhos tem. Obrigado, Forças Armadas”.
     Marcelo Caetano não teve como reagir, pois seus comandantes mais leais foram aderindo ao golpe por pressão da média oficialidade. O primeiro-ministro negociou quase o dia todo a entrega do poder, exigindo a presença de um oficial de alta patente. Acabou por passar o comando ao general Antônio Spíndola, seguindo depois para o exílio no Brasil.
     Praticamente não houve resistência ao golpe militar. Ao contrário, ele desencadeou grande adesão popular, com as pessoas e os soldados rebelados confraternizando nas ruas. Caetano rendeu-se às 17h45. Uma hora depois, era emitido o decreto 171/74, que extinguia a temida Direção-Geral de Segurança (antes PIDE, órgão de repressão, tortura e morte de democratas ao longo de décadas), e as organizações pára-militares Legião Portuguesa, Mocidade Portuguesa e Mocidade Portuguesa Feminina. As únicas vítimas fatais do golpe, em Lisboa, foram quatro manifestantes civis que participavam do cerco à sede da antiga PIDE. Seus membros, apavorados, dispararam contra a multidão até serem dominados pelo Exército.
O programa do Movimento das Forças Armadas podia ser resumido nos três “D”: Democratização, Descolonização, Desenvolvimento.
     Ao golpe seguiu-se o chamado PREC – Processo (ou Período) Revolucionário em Curso, caracterizado por fortes embates entre as diferentes correntes de esquerda que assumiram o poder, e envolveram-se na formulação da Constituição aprovada em 1976. Houve muitas ocupações de terras e de edifícios privados, nacionalizações de bancos, seguradoras, indústrias químicas e de papel, e outras atividades que poderiam interessar ao Estado. Também promoveu-se uma “limpeza” ideológica na mídia, com demissão de jornalistas conservadores ou ligados ao antigo regime. Em reação às medidas mais radicais, grupos clandestinos de direita, alguns com participação e apoio de setores da Igreja, praticavam atos terroristas, explosões e assassinatos, principalmente na região central do país e na área do Porto, ao norte.
     A Lei Maior resultante da Assembleia Constituinte trazia princípios caracteristicamente esquerdistas, consagrava a “transição para o socialismo” mediante a nacionalização dos principais meios de produção, e mantinha a participação dos militares do MFA no poder político, através do Conselho da Revolução.
     Mais tarde, os dispositivos mais rígidos da Constituição foram sendo abrandados por sucessivas revisões, em 1982 (abrindo um pouco a Economia e extinguindo o Conselho da Revolução); 1989 (eliminando o princípio de irreversibilidade das nacionalizações); e 1992 e 97 (adaptando a Constituição aos Tratados da União Europeia assinados em Maastricht e em Amsterdã, no caminho da plena integração continental).
     Portugal foi governado alternadamente pelo Partido Socialista, de Mário Soares (homem de confiança dos Estados Unidos no processo de transição do PREC para a Democracia plena, incumbido de conter os comunistas), ou pelo PPD/PSD, Partido Popular Democrata/Partido Social Democrata, que nasceu na centro-esquerda e depois fez a chamada “viragem à direita” e hoje governa com o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho.
     Neste aniversário da Revolução, organizações de veteranos de Abril anunciaram que não participarão de nenhuma comemoração oficial porque este governo “traiu os ideais de 1975”.

Antonio Barbosa Filho é jornalista e escritor, autor de A Bolívia de Evo Morales e A Imprensa x Lula – golpe ou sangramento? (All Print Editora).

Saiba Mais – Filme
Capitães de Abril
A atriz portuguesa Maria de Medeiros escolheu o lirismo e a nostalgia para fazer um relato carinhoso e sincero sobre a Revolução dos Cravos, que mudou os rumos políticos e sociais de seu país. Portugal, 1974, na noite de 24 para 25 de abril, uma estação de rádio toca uma canção proibida: Grândola. Na verdade era o sinal planejado no início de um golpe de Estado militar que mudaria a face e o destino de um país. Ao som da voz do poeta José Afonso, as tropas rebeldes tomam os quartéis. Às três horas da manhã, entram em Lisboa, sob o comando de jovens militares que lutam pela liberdade sem desrespeitar os civis ou fazer uso da violência. Capitães de Abril relata com louvor uma nova história, nascida da liberdade, colocando em perspectiva os momentos de intensa paixão política, vivida por aqueles que acreditavam que podiam mudar o mundo.
Direção: Maria de Medeiros
Ano: 2000
Áudio: Português
Duração: 123 minutos

Saiba Mais – Documentários

As armas e o povo
Este filme retrata o período entre os dias 25 de Abril de 1974 e o Primeiro de Maio. Mostra o movimento militar e a agitação popular nas ruas.
As Armas e o Povo é um documentário coletivo realizado por diversos cineastas, incluindo Glauber Rocha que desembarcara há pouco em Portugal, para assistir aos primeiros dias da Revolução. São ilustrados os primeiros seis dias da Revolução dos Cravos.
Realização e produção: Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica.
 Bom Povo Português
Filme de Rui Simões, que descreve a situação social e política de Portugal entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, tal como ela foi sentida pela equipe que, ao longo deste processo, foi ao mesmo tempo espectador, ator, participante, mas que, sobretudo, se encontrava totalmente comprometida com o processo revolucionário em curso.