“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Proletários e subversivos

A grande imprensa viu com bons olhos as primeiras comemorações do Dia do Trabalho. Depois condenaria a "tenebrosa doutrina" anarquista, por perverter as manifestações operárias no Brasil.
Silvia Regina Ferraz Petersen
     Se é difícil estabelecer com exatidão as circunstâncias em que o Dia do Trabalho foi comemorado pela primeira vez no Brasil, podemos de qualquer modo esboçar algumas condições históricas que cercam o acontecimento. Em fins do século XIX, um emergente processo de industrialização passou a atrair trabalhadores para centros urbanos como São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. A imigração, que favoreceu os contatos entre trabalhadores brasileiros e estrangeiros, foi uma via de entrada importante - mas não exclusiva - para as ideias socialistas e anarquistas que já animavam os trabalhadores europeus e logo teriam aqui seus intérpretes. Não se pode esquecer que o internacionalismo era uma bandeira de luta já levantada por Karl Marx quando conclamou, no Manifesto comunista, de 1848, os proletários de todos os países a se unirem. Assim, é fácil entender que também a comemoração do 1º de maio, originária das lutas dos operários norte-americanos e assumida na Europa, logo se difundisse no Brasil.
     Mas naqueles anos, quando a República recém proclamada parecia oferecer novas condições de cidadania, o socialismo também inspirava uma intelectualidade progressista, formada por profissionais liberais, jornalistas, advogados e até mesmo militares, que fundaram partidos e "centros socialistas" visando arregimentar os trabalhadores, ao lado das também incipientes associações organizadas pelos próprios trabalhadores para a defesa de seus direitos. Também as orientações ideológicas socialistas e anarquistas que inspiravam os trabalhadores possuíam diferentes matizes e eram apropriadas com consideráveis variações. Por isso, não deve surpreender que as interpretações da grande imprensa brasileira sobre o sentido do 1º de maio também fossem muito instáveis. Acompanhemos então esta história.
     Em 30 de abril de 1890, O Estado de S. Paulo divulgou amplamente a passagem da data em países europeus. Não há, no entanto, referências a comemorações no Brasil, e é provável que não tenham ocorrido. Mas, no ano seguinte, aparecem, na capital paulista, notícias no Diário Popular da comemoração promovida pelo Centro do Partido Operário de São Paulo, cuja orientação era presumivelmente socialista.  No Rio de Janeiro, a divulgação é igualmente breve, informando o Jornal do Commercio a realização de uma sessão solene pelo Partido Operário de São Cristóvão, encerrada com um concerto.
     Já em 1892, o noticiário é mais diversificado. Além do que se passou na Europa, há notícias sobre as comemorações no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Porto Alegre. É significativa a informação de que, no Rio de Janeiro, "o Marechal Floriano assistirá as festas comemorativas", pois ilustra o interesse que os políticos da jovem República tinham em atrair a classe operária em formação, ainda que, paradoxalmente, não houvesse de fato espaço para ela na ampliação da representatividade trazida pelo novo regime. É um jornal da distante cidade gaúcha de Pelotas, o Diário Popular, que oferece os detalhes dessas comemorações: "O Centro do Partido Operário, de que é presidente o tenente Augusto Vinhaes, realizou ontem uma sessão magna no Teatro São Pedro. O cidadão João Villa pronunciou um discurso violento, dando vivas à anarquia. As palavras do orador, merecendo aplausos de uns e a reprovação de outros, produziram enorme tumulto, estabelecendo ruidosa confusão”.
     As comemorações em São Paulo foram matéria do mesmo jornal, que esclareceu terem sido promovidas pelo Centro do Partido Operário, em cujo salão "adornado por bandeiras de várias nações" [...] "achava-se reunida grande multidão, em sua maioria proletários". A tribuna foi ocupada por vários oradores, sendo que "o orador oficial, o Sr. Artur Breves, advogou a causa dos socialistas, defendendo com ardor o direito de propriedade". Esta estranha combinação de socialismo e propriedade privada que serve para exemplificar as múltiplas apropriações que a teoria socialista recebeu no Brasil -, parece não ter causado surpresas. O relato do Diário Popular encerra com uma imagem idealizada e romântica dos trabalhadores: "Era belo ver-se aqueles dois obscuros proletários, maltrajados, sem camisa, no desalinho próprio do trabalhador sem recursos, sugestionando o espírito da assembleia sob o influxo de seu verbo quente, correto, vigoroso e por vezes até cintilante. Durante a sessão tocou uma banda de música." Neste ano de 1892 também se comemora em Porto Alegre pela primeira vez a data, noticiada assim n'A Federação: "Nosso colega Dr. Colombo Leoni, redator do L’Avvenire, nos comunica que as classes operárias desta capital também comemorarão, este ano, o 1º de maio, reunindo-se para este fim na Praça da Alfândega, domingo, às 2 horas da tarde [...] de onde seguirão por várias ruas da cidade em grande marcha comemorativa do dia consagrado às expansões pacíficas do proletariado". Notícias posteriores dão conta de que foram pronunciados discursos em alemão, italiano e português e que "reinou completa paz".
     O aspecto festivo, harmonioso e ordeiro, que transparece nas matérias jornalísticas, experimenta, em 1893, uma primeira e radical transformação. Coube à Liga Socialista de São Paulo promover, conforme notícias do Correio Paulistano, O Estado de S. Paulo e Opinião Nacional, a passeata festiva na qual, ao som de uma banda de música e precedidos por uma bandeira vermelha, "operários de todas as nacionalidades" saudaram o 1º de maio, percorrendo as ruas da capital "numa ordem e harmonia invejáveis". Ocorre que nesta mesma noite bombas de dinamite foram lançadas contra as residências de duas autoridades, não fazendo vítimas, mas causando estragos. Os atentados, sem que houvesse prova, foram atribuídos a operários anarquistas. A linha de apreciação que, em decorrência do incidente, perpassa uma longa matéria publicada na primeira página d'O Estado de S. Paulo, de 3 de maio de 1893, e que será uma tônica, a partir daí, nos veículos da imprensa. Segundo o jornal, as condições dos trabalhadores no Brasil, "onde a abundância é recompensa do trabalho, em que a riqueza não significa opressão", não justificam "as lutas sanguinolentas e o ódio cego" que movem os operários na Europa, "onde o capital predomina e impõe suas condições aos que só dispõem do próprio esforço para sobreviver". Os brasileiros deviam estar "em prevenção contra futuros males que hão de vir, com certeza, se continuarmos a transportar para o nosso país a população anarquisadora do Velho Mundo". Em seguida, o redator sugere as medidas policiais que deviam ser tomadas para conter "os que se rebelarem contra a ordem social, procurando nivelar, a poder de dinamite, as classes da sociedade": desbaratar as "propagandas subversivas", prender os infratores e fazer a deportação dos indesejáveis, "recurso empregado em outros países da Europa todas as vezes que os estrangeiros se tornam perigosos para a paz pública".
     A associação que foi estabelecida entre operários e a ameaça da ordem pública se desenvolveu rapidamente. A comemoração do 1º de maio é um bom indicador dessa transformação, pois se em 1891 a imprensa noticiava uma festa operária, em 1894 dava contas da apreensão sobre o que poderia ocorrer em São Paulo nesta data. Eis o acontecido: em meados de abril, O Commercio de S. Paulo noticiou a prisão de operários italianos, reunidos no Centro Socialista; depois desmentiu que deste centro participassem anarquistas ou que ali tivessem sido encontrados explosivos (parece que a denúncia partiu do cônsul italiano). Embora o jornal não ofereça mais detalhes, estes são encontrados nas palavras do secretário da Justiça, João Alvares Rubião Júnior, que relata haver tomado conhecimento de que no prédio nº 110 da Rua Libero Badaró reuniam-se operários visando ao desenvolvimento da "tenebrosa doutrina" e que então passou a vigiar os indivíduos denunciados como pertencentes à "perigosa seita", para no momento oportuno frustrar seus "sinistros intentos". Assim, na noite de 15 de abril, "em uma das conferências em que se discutiam os graves acontecimentos preparados para o dia 1º de maio, data em que comemoravam a chamada Festa do Trabalho, foram presos dez súditos italianos, verdadeiros anarquistas todos membros do citado Centro Socialista", dentre eles os militantes Eugênio Gastaldetti, Felix Vezani, Augusto Donati, Artur Campagnoli e Galileu Botti.
     Estes fatos causaram apreensão quanto ao 1º de maio e a imprensa noticiou as providências para manutenção da ordem: a cidade fortemente patrulhada, detenção de novos suspeitos e proibição da passeata. Não obstante, à noite, explodiu uma pequena bomba próximo ao quartel da polícia e um rapaz foi preso, embora negasse o fato e não se encontrasse com ele nada comprometedor. Quanto aos italianos, tiveram a deportação decretada, mas sete meses depois ainda se encontravam presos sem julgamento. O jornal anarquista L’Avvenire em seu primeiro número, de novembro de 1894, publicou longo editorial em defesa dos companheiros, que tinham sido objeto de falsas denúncias. Seu destino é esclarecido pelo relatório da polícia ao secretário da Justiça: esperaram presos no Rio de Janeiro pela deportação "tendo dali regressado e postos em liberdade no dia 12 de dezembro por não terem sido deportados como se requisitou".
     Assim, em 1894, já estava definida a dimensão de protesto e luta que, sob várias formas e intensidades, daí por diante marcaria as comemorações do 1º de maio no Brasil, sempre que foram organizadas pelos próprios trabalhadores, pois também esta data simbólica sofreu muitas manipulações que a desviaram de sua intenção original.
     No caso do Brasil, vemos a transição da liderança de intelectuais progressistas, profissionais liberais e militares, predominantemente brasileiros, que formaram de cima para baixo "partidos e centros socialistas", para a presença e atuação mais visível de militantes operários, muitos deles imigrantes, que por sua própria condição social estabeleceram vinculações mais sólidas com os seus companheiros de classe.
     Também através do 1º de maio ecoa o desenvolvimento do xenofobismo na classe dominante brasileira, o qual cresce paralelamente ao papel exercido pelo trabalhador europeu no meio operário nacional. Estas manifestações, que ficam claras na imprensa da época, não se dirigiam contra o estrangeiro como tal - que sempre teve acolhida numa sociedade europeizante como a nossa - e sim contra lideranças operárias estrangeiras, cujos interesses eram considerados uma ameaça aos dos empresários.
     Na ausência de uma legislação que regulasse as relações de trabalho, o tratamento dos conflitos entre operários e patrões logo foi entendido como atribuição da polícia, e as invasões das associações operárias, prisão de militantes e deportação de estrangeiros passaram a ser os métodos usuais.
     Por fim, o 1º de maio expressa a nítida percepção dos operários de então, de que as promessas republicanas não os alcançavam e que a união com seus companheiros era a única forma de lutar pelos seus direitos.
 Silvia Regina Ferraz Petersen é professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de Origens do 1º de maio no Brasil. Porto Alegre: MEC IPROEDI Editora da Universidade-UFRGS, 1981.
Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 7 - Maio de 2004

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sábado, 25 de abril de 2015

Assim na terra como no céu

Na gestão de seus negócios, os jesuítas desenvolviam no tempo da Colônia práticas administrativas similares às dos grandes senhores de engenho.
Paulo de Assunção
     O papel dos jesuítas foi sem dúvida de vital importância na construção do catolicismo brasileiro. Muito já se escreveu sobre o impacto da catequese entre os indígenas e o modelo educacional implementado por esses religiosos na América portuguesa. No entanto, suas práticas temporais - isto é, não espirituais, de cunho econômico -, receberam pouca atenção em comparação com questões pedagógicas e culturais.  Estas, guardadas as devidas proporções, nem sempre foram o único alvo do seu interesse. Aos colégios jesuíticos se associavam as propriedades da Companhia de Jesus - essenciais para a manutenção da sua obra evangélica - e, por consequência, todo o universo da administração colonial. A necessidade de manter as atividades religiosas e o sustento dos religiosos impuseram diversos problemas à gerência das fazendas da Ordem, exigindo de muitos gestores habilidade e pragmatismo na solução dos problemas administrativos, bem como ações eficazes para contornar os frequentes impasses políticos que marcaram os duzentos anos de presença jesuítica em terras brasileiras.
     Os negócios temporais dos jesuítas durante esse período foram norteados por atitudes, práticas e regras de caráter econômico, de acordo com o modelo de exploração colonial. A ação dos padres administradores/procuradores, que organizavam e davam impulso às atividades produtivas, revela que muitos deles deveriam possuir, além de um arcabouço espiritual, conhecimento profundo do sistema produtivo a que estavam vinculados. Esta configuração revelou, não raras vezes, as relações com o poder administrativo dos membros da Companhia, sujeitos, em algumas circunstâncias, aos ataques e às críticas de seus próprios pares, por adotarem condutas que se distanciariam do ideal jesuítico. Setores da sociedade colonial alertavam para o fato de que o temporal e espiritual possuíam interesses divergentes.  Na medida em que os olhos dos jesuítas se voltavam para os bens terrenos, viravam as costas para as questões espirituais. Na verdade, a Companhia de Jesus prosperou sem perder o discurso do pioneirismo e da ação heroica dos primeiros tempos. A instituição somente acrescentou aos seus registros dados temporais da produção, administração, balanços, débitos e créditos. Os funcionários de Deus trabalhavam orando, cultivando, contando e ampliando a seara divina.
     Em cartas, relatórios e outros documentos dirigidos aos padres superiores, procuradores, prefeitos e reitores dos colégios de Lisboa, Porto, Coimbra e outras localidades do território português, eles registraram a forma como eram administradas as diversas propriedades da ordem, ao mesmo tempo em que destacavam a necessidade e a importância da manutenção das propriedades produtivas para o bom funcionamento da instituição. Esta farta correspondência permite reconstituir e compreender o pano de fundo do contexto social em que os religiosos atuaram. Os documentos revelam um complexo jogo político e econômico envolvendo jesuítas, nobreza, monarca, funcionários da Coroa, mercadores e escravos, em relações nem sempre amistosas e tranquilas. Possibilitam-nos entender quem eram aqueles homens que viveram entre o temporal e o divino, na fronteira entre os "exercícios espirituais" e a gerência de suas propriedades.
     A Companhia de Jesus, revelam as cartas, soube interagir com o universo produtivo colonial, produzindo gêneros de consumo para suas residências e colégios. Envolvidos com a produção de açúcar, eles adotaram práticas administrativas similares às dos grandes senhores de engenho. Este comportamento é esboçado nos registros, onde são demonstradas as preocupações como a falta de liquidez, dependência de crédito, manutenção dos meios de produção, o transporte e encargos de distribuição. A tudo isso se acresciam seus deveres espirituais.
     Os livros ou rol de contas, elaborados pelos religiosos, registravam as transações das propriedades com detalhes. Esses informativos eram enviados ao padre-procurador para análise. A prestação de contas a cada safra e a inspeção das finanças eram de fundamental importância para se saber como estavam os recursos dos colégios e se as propriedades estavam sendo bem administradas. Também permitiam ao padre provincial tomar as decisões econômicas mais acertadas. Este tinha abaixo do seu comando os padres-reitores dos colégios de suas províncias e os padres-procuradores. Os primeiros controlavam os irmãos-dos-colégios e os padres-administradores. Havia também os padres-visitadores, cuja função era verificar se as "Constituições da Companhia de Jesus" estavam sendo seguidas conforme as práticas espirituais e temporais.
     O padre-procurador, além de suprir as necessidades dos bens dos colégios e residências do Brasil, era responsável por um minucioso exame dos relatórios e contas enviados pelos padres-administradores das propriedades. Por meio dessa documentação, era possível verificar a totalidade das operações realizadas: produção de pães-de-açúcar, arroz, fumo, especiarias e outros produtos; quantidade de cabeças de animais e de negros; os gastos com reposição dos instrumentos de produção, com as doenças da escravaria, com os fretes dos produtos que iam da colônia para o reino e vice-versa. Portanto, o padre-procurador era aquele que centralizava os papéis de todas as transações efetuadas, podendo mensurar a queda ou o aumento da rentabilidade. A obrigatoriedade de relatórios demonstra um sistema de controle e fiscalização atuante.
     As unidades produtivas procuravam ser autossuficientes, atendendo as necessidades dos estudantes, dos jesuítas e dos trabalhadores escravos e assalariados que compunham a estrutura da Ordem. O excedente produzido era vendido com lucro e utilizado para a compra de outros produtos necessários para manter as unidades funcionando. Num universo de incertezas, os religiosos tinham de lutar para que a produção açucareira, entre outras, gerasse lucro. Um trabalho inglório e difícil, pois além dos problemas inerentes ao processo produtivo, tinham de se preocupar com as variações climáticas, as oscilações do mercado e o jogo da política internacional.
     Regulamentos referentes à administração das unidades produtivas eram elaborados pelos padres-procuradores contendo orientações àqueles que assumiam funções administrativas. Continham as diretrizes básicas para uma boa gestão, entre estas o aconselhamento ao procurador para assegurar-se de que todos os títulos de propriedade e os direitos de possessão estivessem em acordo com as normas prescritas por lei e a recomendação de que visitasse com frequência as propriedades para assegurar o andamento das atividades. Entre outras orientações, devia cuidar para que os "exercícios espirituais" e a "doutrina" estivessem sendo bem praticados e evitar a presença de mulheres nas residências. Os regulamentos indicavam um forte controle, centralizado no padre-provincial e no padre-reitor. Estes deveriam ter conhecimento de todas as atividades empreendidas pelos seus subordinados, os quais não poderiam agir, principalmente no âmbito do plano temporal, sem a sua autorização.
     A aquisição de mais terras visando a uma maior produção de açúcar e outros produtos foi a solução encontrada para atender as necessidades do mercado consumidor, que demandava bens, ou para manter as condições de produção adequadas a um fluxo constante e estável. Os jesuítas demonstraram que compartilhavam de práticas de um capitalismo comercial, em que a tomada de decisão implicava correr riscos que deveriam ser criteriosamente evitados.
     A fusão da imagem dos jesuítas com a dos senhores de engenhos não foi difícil de ser estabelecida. Os propósitos dos "companheiros de Cristo" tinham sido alterados com o decorrer do tempo, deixando-os sujeitos aos mecanismos do contexto secular, e uma nova imagem da instituição surgira daí, misturando fé, missionarismo, fortuna e poder. Nicholas Cushner, estudioso das propriedades jesuíticas da América espanhola, já afirmava que as críticas às atividades mercantis da Companhia de Jesus, na Europa e na América, eram em parte fruto de uma mentalidade econômica medieval, que entendia serem determinadas práticas - por exemplo, a venda de produtos visando ao lucro -, ilícitas por natureza. Isso não combinava com o modelo idealizado de caridade cristã construído pela sociedade para as ordens religiosas.  Os próprios inacianos tiveram, aliás, a mesma preocupação, ao questionarem quais comportamentos seriam mais condizentes com os preceitos religiosos que defendiam. Conscientes de que as obra de educação, catequização e assistência espiritual deveriam continuar a existir, e eles precisavam de suas propriedades para mantê-las, os religiosos lutaram, assim, para preservar o que haviam conquistado.
Uma particularidade da administração dos jesuítas é que ela gozava de alguns benefícios reais que lhe permitiam autonomia em relação às obrigações impostas pelo sistema colonial, pois a Coroa reconhecia o papel fundamental que esses religiosos exerciam na defesa do cristianismo. Tais privilégios favoreceram suas propriedades, cuja produção era praticamente toda comercializada com isenção de taxas e de impostos. Contudo, no início do século XVIII, verificaram-se sensíveis sinais de decadência na instituição; em parte causada pela situação econômica enfrentada localmente pelas suas unidades produtivas; em parte por problemas de relacionamento com os poderes políticos e econômicos de diversas partes da Europa e da América.
     Considerou-se afinal que os direitos e privilégios conquistados pela Ordem comprometiam a economia do Estado português, e tal argumento justificou as ações antijesuíticas do marquês de Pombal, o poderoso ministro do rei d. José I (1750-1777). Pela lei de 3 de setembro de 1759, o monarca ordenou que todos os religiosos da Companhia fossem "tidos, havidos e reputados como desnaturalizados, proscritos, e exterminados do território português e de todas as terras de além-mar". Rompeu-se assim uma união de mais de dois séculos entre os jesuítas e a Coroa, sempre marcada por uma tumultuada relação de interesses entre o poder temporal e o poder espiritual.

Paulo de Assunção é professor de História na Universidade São Judas Tadeu, do Centro Universitário Capital (UN1CAPITAL) e do Centro Universitário Assunção (UNIFAI) e autor de Negócios jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: Edusp, 2004.
Fonte: Revista Nossa História - Ano II nº 19 - Maio de 2005

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terça-feira, 14 de abril de 2015

Medida provisória... até hoje

     Tema constante na imprensa atual, as relações comerciais do Brasil com o mundo devem uma especial reverência ao documento conhecido como a carta de Aber­tura dos Portos. Sua importância está destacada em todos os livros da nossa história. O que poucos sabem, no entanto, é que este do­cumento nasceu provisório, nun­ca foi revogado e representou uma grande surpresa apresentada ao príncipe d. João logo que chegou na Bahia em 1808.
     Assim que desembarcou em Salvador, com a Família Real e a Corte portuguesa, após atraves­sar o Atlântico para fugir da inva­são francesa em Portugal, d. João foi recebido por uma comitiva de comerciantes. Eles pediam a libe­ração do comércio com portos não portugueses porque os ar­mazéns estavam repletos de cai­xas e caixas de açúcar, rolos de ta­baco e muitos produtos encalha­dos desde o fechamento dos por­tos de Lisboa e Porto, com o blo­queio imposto por Napoleão Bonaparte.
     A iniciativa da recepção foi atribuída a José da Silva Lisboa, intelectual baiano bem aceito pela administração portuguesa, para aproveitar o fato de d. João estar desacompanhado de seus conse­lheiros - uma tempestade separou os navios da comitiva real! Sem as resistências do Conselho de Esta­do seria mais fácil a aprovação de uma medida daquele alcance.
     A carta foi assinada no dia 28 de janeiro de 1808, uma semana após a chegada do príncipe regen­te. E a ausência dos conselheiros provocou o aspecto mais curioso do texto, que é o seu teor "interino e provisório": talvez uma alternati­va para d. João voltar atrás em sua decisão, já que o impacto provoca­do pelo documento seria grande. Apesar de seu caráter provisório, a carta jamais foi revogada, nem mesmo após a retirada dos france­ses de Portugal, em 1811.
     As medidas aprovadas regula­vam, basicamente, as entradas e saídas de produtos das capitanias brasileiras. A partir de então quaisquer mercadorias transpor­tadas em navios de países em paz com Portugal - que pagassem uma taxa de 24% sobre o valor dos produtos - eram admitidas nas alfândegas. E súditos portu­gueses ou comerciantes estran­geiros poderiam também expor­tar suas mercadorias para qual­quer porto.
     A abertura dos portos às nações amigas, ou seja, aquelas que não haviam declarado guerra a Portugal, além de evitar conturbações sociais diante da dificuldade de es­coar a produção, também traduziu as tentativas, por parte da Coroa portuguesa, de racionalizar uma política administrativa e econômi­ca que adotasse princípios como os da liberdade de comércio. Para al­guns historiadores, a abertura dos portos não rompeu com o mono­pólio porque não havia controle rí­gido da Coroa sobre o comércio. Mas é evidente a importância das medidas. Em Portugal, a perda da posição de centro no comércio co­lonial europeu gerou forte crise nas finanças. E no Brasil, a abertu­ra dos portos e a vinda da Corte desencadearam o processo de se­paração política entre metrópole e colônia, consumada em 1822, quando a Independência foi ofi­cialmente declarada.
O documento pertence ao acervo da Biblioteca Nacional.

Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 3 - Jan. 2004

sábado, 28 de março de 2015

O sexo a quem compete?

Nas Olimpíadas de 1968, as atletas tinham que comprovar que eram mulheres submetendo-se a testes constrangedores.
     “Olimpíadas vencem a guerra dos sexos”, anunciou o Jornal dos Sports no dia 30 de outubro de 1968. O tom da manchete reflete a empolgação em torno de uma novidade implantada no megaevento disputado na Cidade do México: o exame científico para confirmar o sexo das atletas.
     O texto da notícia parecia imparcial: “A presença de indivíduos cujo sexo não pode ser perfeitamente definido nas provas femininas das Olimpíadas está completamente banida e a prova é que muitos dos maiores atletas que o mundo já viu ou não chegam ao México ou, lá chegados, se negaram a submeter-se às provas para comprovação de sexo – disse ontem na redação do JS o Dr. Aníbal Silva e Costa, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Esportiva. 'A obrigatoriedade dos exames de sexo há muito tempo devia constar dos regulamentos olímpicos para evitar a sobrevivência dos hermafroditas no esporte. Sempre fui a favor dos exames porque existem mulheres que competem em tal categoria que na realidade são homens. Com a obrigatoriedade dos exames, alguns fenômenos esportivos como as irmãs Irina e Tâmara Press, da União Soviética, não compareceram ao México'”.
     Pela primeira vez as mulheres atletas tinham seus corpos vasculhados, sua sexualidade questionada, seu sexo verificado cientificamente. Sob a orientação de um comitê médico, os testes de feminilidade, também divulgados como testes de sexo, garantiam uma “carteira rosa” às atletas consideradas aptas a competir. Reduzidas à equação XX, através da contagem dos cromossomos, somente assim elas poderiam participar de Jogos oficialmente organizados pelo Comitê Olímpico Internacional (COI).
     Nos primeiros Jogos Olímpicos da era moderna, em 1896, as mulheres não podiam competir. Sua inserção nas competições internacionais foi gradativa. A antiga crença na vulnerabilidade biológica e na fragilidade inata deixava as mulheres de fora de muitos eventos desportivos. Fragilidade, vulnerabilidade e passividade foram consideradas características totalmente desfavoráveis à exigência de desempenho atlético. Durante todo o século XIX, na Europa, essa ideologia da natureza feminina foi fundamentada “cientificamente”: buscava-se provar que a mulher é fisicamente inferior ao homem, inclusive pela capacidade de engravidar. As disciplinas requisitadas para defender tais argumentos eram a obstetrícia, a biologia, a sociologia, a psicologia, a antropologia e a ginecologia. Esta última consolidou a imagem da mulher como um ser submetido ao império de seus órgãos genitais – que determinariam sua natureza nervosa, frágil e inconstante e sua predisposição a doenças e perturbações mentais, moldando assim suas capacidades sociais.
     Alguns biólogos e médicos, como Cesare Lombroso (1836-1909), reforçaram naquele século que o cérebro da mulher era menor que o do homem e que o ovário e o útero exigiam muita energia e repouso para funcionar apropriadamente. Em consequência, as meninas deveriam ser mantidas longe de escolas e faculdades a partir do momento em que começassem a menstruar. Sem esse tipo de precaução, seus úteros e ovários poderiam se atrofiar e a raça humana se extinguir.
     A mesma análise não se estendia às mulheres pobres, obrigadas a trabalhar duramente e censuradas por se reproduzirem demais. Na verdade, justamente por conseguirem trabalhar tanto e ainda assim gerar muitos filhos, elas eram consideradas mais próximas dos animais e menos evoluídas do que as mulheres das classes altas.
     No século XIX pesquisas da craniometria ressaltaram a inferioridade das mulheres devido ao tamanho da estrutura óssea, incluindo quadril. Com os avanços das mulheres nos esportes, isto perde a importância e a força. Foi nas décadas de 1960 e 1970 – quando os movimentos feministas aumentaram – que as pesquisas sobre diferenças sexuais voltaram a ganhar força. Os sociobiologistas tentavam agora provar que os comportamentos sociais constituem características humanas universais e acabam sendo transmitidas geneticamente. A agressividade e o “instinto de caça”, por exemplo, seriam essencialmente masculinos. 
     Em 1968, diante da notícia de que haveria regras taxativas contra o dopping e contra mulheres de “sexo duvidoso”, a imprensa se mostrou complacente com as versões científicas da comprovação da inferioridade feminina e de sua inaptidão para os esportes. Naquele momento, a indeterminação do sexo por um exame “científico” soava como uma ameaça ao regime social heterossexista. Ao mesmo tempo, a homossexualidade feminina colocava em risco o regime patriarcal predominante, no qual as mulheres assumem papéis sociais considerados hierarquicamente inferiores aos dos homens, tornando-se consciente ou inconscientemente submissas a eles. Mulheres lésbicas ou com gênero indeterminado eram uma ameaça ao pretenso equilíbrio social. Por isso o teste de sexualidade das Olimpíadas do México foi tão bem recebido. “O exame para a comprovação de sexo – masculino ou feminino – é bastante simples e pode ser feito através de pesquisa de dois materiais: saliva ou sangue. Colhido o material, os cromossomos são contados. Se atingir um índice X, morfologicamente a atleta é impedida de competir entre as mulheres, já que passa a ser considerada uma anomalia”, explicava o Jornal dos Sports.
     Em uma seção especial destinada aos Jogos Olímpicos, o Jornal do Brasil também comentou a novidade: “Sobre a questão do controle de sexo, exigido pelo regulamento, o secretário geral Joanes Westterohff disse que a Federação Internacional de Natação foi a única que não respondeu oficialmente ao convite que lhe fez o presidente da comissão médica para as nadadoras se submeterem à verificação sexual, apesar de as nadadoras, em sua petição de inscrição, terem firmado o compromisso de se submeterem ao controle de sexo e controle sobre o uso de drogas. O presidente da comissão médica acrescentou que várias atletas femininas inscritas nos Jogos já haviam aceito voluntariamente as exigências regulamentares”.
     “Aceito voluntariamente as exigências” é uma contradição, pois se é uma exigência jamais será voluntária. Além disso, o olhar retrospectivo para aqueles acontecimentos desperta dúvidas sobre o vínculo entre os testes e o dopping. Sobretudo pela recusa das nadadoras, pois a natação era o esporte com mais casos de uso de substâncias químicas para melhoria do desempenho em edições anteriores das Olimpíadas. Talvez fosse mais fácil duvidar da “natureza do sexo” do que assumir que o dopping era usado em grande escala – algo desaconselhável diante de uma indústria fármaco-química em franca ascensão mundial.
     Os testes de feminilidade duraram oito edições dos Jogos Olímpicos, de 1968 até 2000. Por que duraram mais de três décadas mesmo diante das críticas, tanto de associações e entidades médicas e científicas como da imprensa e das próprias atletas? Essa medida e sua duração podem ser vistas como barreira à participação feminina e como uma forma de mascarar o fato de que o dopping assumira proporções incontroláveis com o advento da indústria fármaco-química.
     A imagem de uma mulher forte e atlética confundia as certezas criadas pela ciência do sexo e do gênero como norma catalogável. Vale dizer que, antes das Olimpíadas de 1968, o teste de sexo era feito da seguinte forma: as mulheres expunham seus corpos nus a um comitê de “peritos”, que julgavam e certificavam se sua morfologia era compatível com a ideia que tinham de feminilidade. Como tal prática significava uma exposição pública dos corpos das atletas e vinha ganhando críticas das entidades esportivas, o comitê resolveu “modernizá-la”.
     O parâmetro genético adotado no teste de cromossomos indicava uma nova realidade: a política tecnológica de monitoramento e catalogação dos corpos femininos. A “carteira rosa” simbolizava feminilidade. Era o passaporte das mulheres para o universo idílico de um feminino universal, naturalizado e definido por uma equipe de peritos composta por homens.

Patrícia Lessa é professora da Universidade Estadual de Maringá e autora do relatório de pós-doutorado “A fabricação dos tecno-bio-corpos e a produção do sexismo na linguagem”, (UFF, 2010).

Saiba mais - bibliografia
DEVIDE, Fabiano Pries. Gênero e mulheres no esporte: história das mulheres nos jogos olímpicos modernos. Ijuí: Unijui, 2005.
VOTRE. Sebastião (org.). Gênero e atividade física. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2011.

Saiba mais - vídeo
JC Debate sobre Violência Obstétrica - 06/03/2014
Você já ouviu falar em violência obstétrica? Milhares de brasileiras são humilhadas, desrespeitadas e perdem o direito de escolher a melhor forma que gostariam de dar a luz.

 Saiba mais - links

sexta-feira, 20 de março de 2015

Breve história da feijoada

A mistura de carnes e grãos que resultou no prato mais famoso do Brasil só ocorreu no século XIX e - ao contrário do que diz a lenda - bem longe das senzalas
Rodrigo Elias
     “O paladar não é tão universal como a fo­me", disse Luís da Câmara Cascudo em 1968. O ilustre etnógrafo e folclo­rista referia-se a um prato brasileiro, talvez o mais tipicamente brasileiro: a feijoada. Para ele, era preciso uma predisposição especial para que se pudesse apreciar os sabores do prato, assim como para usufruir todas as nuances de certos vinhos. Em outras palavras, a culinária - e mesmo a "simples" apreciação desta - pressupõe a educação de um im­portante sentido, o paladar. Por isso, é bom conhe­cer um pouco da trajetória desta instituição nacio­nal, que tem a vantagem de ser comestível.
     Convencionou-se que a feijoada foi inventada nas senzalas. Os escravos, nos escassos intervalos do trabalho na lavoura, cozinhavam o feijão, que seria um alimento destinado unicamente a eles, e juntavam os restos de carne da casa-grande, partes do porco que não serviam ao paladar dos senhores. Após o final da escravidão, o prato inventado pelos negros conquis­tou todas as classes sociais, para chegar às mesas de caríssimos restaurantes no século XX. Mas não foi bem assim.
     A história da feijoada - se quisermos também apreciar seu sentido histórico - nos leva primeiro à história do feijão. O feijão-preto, aquele da feijoada tradicional, é de origem sul-americana. Os cronistas dos primeiros anos de colonização já mencionam a iguaria na dieta indígena, chamado por grupos Guarani ora comanda, ora comaná, ora cumaná, já identificando algumas variações e subespécies. O viajante Jean de Léry e o cronista Pero de Magalhães Gandavo, ainda no século XVI, descreveram o feijão, assim como o seu uso pelos nativos do Brasil. A se­gunda edição da famosa Historia Naturalis Brasiliae, do holandês Willen Piso, revista e aumentada pelo autor e publicada em 1658, tem um capítulo inteiro dedicado à nobre semente do feijoeiro.
     O nome pelo qual o chamamos, porém, é portu­guês. Na época da chegada dos europeus à América, no
início da Idade Moderna, outras variedades des­te vegetal já eram conhecidas no Velho Mundo, aparecendo a palavra feijão escrita pela primeira vez, em Portugal, no século XIII.
     Apenas a partir de meados do século XVI começou-se a introduzir outras variedades de feijão na colônia, algumas africanas, mas também o feijão consu­mido em Portugal, conhecido como feijão-fradinho. Os cronistas do período compararam as variedades nativas com as trazidas da Europa e África, e foram categóricos, acompanhando a opinião de Gabriel Soares de Souza, expressa em 1587: o feijão do Brasil, o preto, era o mais saboroso. Caiu no gosto dos portugueses.
     As populações indígenas obviamente o aprecia­vam, mas tinham preferência pela mandioca, raiz que comiam e até transformavam em bebida, o cauim, e que caiu também nas graças dos europeus e africanos. A mandioca era o alimento principal dos paulistas, que misturavam sua farinha à carne cozi­da, fazendo uma paçoca que os sustentava nas suas intermináveis viagens de caça a índios. Mas também comiam feijão. Feijão-preto.
     O feijoeiro, em todas as suas variedades, também facilitou a fixação das populações no território luso-americano. Era uma cultura essencialmente domésti­ca, a cargo da mulher e das filhas, enquanto o homem se ocupava com as outras plantações e com o gado. A facilidade do manejo e seus custos relativamente bai­xos fizeram com que a cultura do feijão se alastrasse no século XVIII entre os colonos. Segundo Cascudo, tornou-se lugar-comum nas residências humildes do interior do país a existência do "roçadinho", no qual era atributo quase que exclusivo das mulheres o "apanhar" ou "arrancar" feijões. A dispersão populacional dos séculos XVIII e XIX, seja por conta dos currais do Nordeste, dos tesouros do Centro-Oeste ou das questões de fronteira no Sul, foi extremamente fa­cilitada pelo prestigiado vegetal. Atrás dos colonos, foi o feijão. Ao lado da mandioca, ele fixava o homem no ter­ritório e fazia, com a farinha, parte do binômio que "governava o cardápio do Brasil antigo".
     No início do século XIX, absolutamente todos os viajantes que por aqui passaram e descreveram os hábitos dos brasileiros de então mencionaram a im­portância central do feijão como alimento nacional. O francês Saint-Hilaire sentenciava, nas Minas Gerais de 1817: "O feijão-preto forma prato indis­pensável na mesa do rico, e esse legume constitui quase que a única iguaria do pobre." Carl Seidler, mi­litar alemão, narrando o Rio de Janeiro de 1826, des­crevia a forma como era servido: "acompanhado de um pedaço de carne de rês (boi) seca ao sol e de tou­cinho à vontade", reproduzindo em seguida uma má­xima que atravessaria aquele século e o seguinte: “não há refeição sem feijão, só o feijão mata a fome". Mas opinava: "o gosto é áspero, desagradável". Segun­do ele, só depois de muito tempo o paladar europeu poderia acostumar-se ao prato. O americano Thomas Ewbank, em 1845, escreveu que "feijão com toucinho é o prato nacional do Brasil".
     Porém, o retrato mais vivo do preparo comum do feijão - não é ainda a feijoada - foi feito pelo francês Jean-Baptiste Debret. Des­crevendo o jantar da família de um humilde comerciante carioca nos tempos de d. João VI, afirmou que "se compõe apenas de um miserável pedaço de carne-seca, de três a quatro polegadas quadradas e somente meio dedo de espessura; cozinham-no a grande água com um punhado de feijões-pretos, cuja farinha cinzenta, muito substancial, tem a vantagem de não fermentar no estômago".
     Porém, nem só de feijão viviam os homens. Os in­dígenas tinham uma dieta variada, e o feijão nem mesmo era o seu alimento preferido. Os escravos também comiam mandioca e frutas, apesar da base do feijão. Mas há o problema da combinação de ali­mentos, também levantado por Câmara Cascudo na sua belíssima História da alimentação no Brasil. Havia, na Época Moderna, entre os habitantes da colônia, tabus alimentares que não permitiam uma mistura completa do feijão e das carnes com os outros legu­mes. Como poderiam fazer nossa conhecida feijoada?
     Na Europa, sobretudo na Europa de herança lati­na, mediterrânica, havia - e há - um prato tradicio­nal que remonta pelo menos aos tempos do Império Romano. Consiste basicamente em uma mistura de vários tipos de carnes, legumes e verdu­ras. Há variações de um lugar para o outro, porém é um prato bastante popular, tradicional. Em Portugal, o cozido; na Itália, a casoeula; na França, o cassoulet; na Espanha, a paella, esta feita à base de arroz. Esta tradição vem para o Brasil, sobretudo com os portugueses, surgindo com o tempo - na medida em que se acostumavam ao paladar, sobre­tudo os nascidos por aqui - a ideia de prepará-lo com o feijão-preto, inaceitável para os padrões eu­ropeus. Nasce, assim, a feijoada.
     Segundo Câmara Cascudo, "o feijão com carne, água e sal, é apenas feijão. Feijão ralo, de pobre. Feijão todo-dia. Há distância entre feijoada e feijão. Aquela subentende o cortejo das carnes, legumes, hortaliças". Esta combinação só ocorre no século XIX, e bem longe das senzalas. O padre Miguel do Sacramento Lopes Gama, conhecido como "Padre Carapuceiro", publicou no jornal O Carapuceiro, de Pernambuco, em 3 de março de 1840, um artigo no qual condenava a "feijoada assassina", escandalizado pelo fato de que era muito apreciada por homens sedentários e senhoras delicadas da cidade.
     Vale lembrar que as partes salgadas do porco, co­mo orelha, pés, e rabo, nunca foram restos. Eram apreciados na Europa enquanto o alimento básico nas senzalas era uma mistura de feijão com farinha.
     Uma das referências mais antigas que se conhece à feijoada em restaurantes está no Diário de Pernambuco de 7 de agosto de 1833, no qual o Hotel Théâtre, do Recife, informa que às quintas-feiras seriam servidas "feijoada à brasileira". No Rio de Janeiro a menção a feijoada servida em restaurante aparece pela primeira vez no Jornal do Commercio de 5 de janeiro de 1849. Nas memórias escritas por Isabel Burton, esposa do viajante, escritor e diploma­ta inglês Richard Burton, em 1893, remetendo-se ao período em que esteve no Brasil, entre 1865 e 1868, aparece um interessante relato sobre a iguaria.  Falando sobre a vida no Brasil, ela diz que o alimen­to principal do povo do país - segundo ela equivalen­te à batata para os irlandeses - é um saboroso prato de "feijão" (ela usa a palavra em português) acompa­nhado de uma "farinha" muito grossa (também usa a expressão farinha), usualmente polvilhada sobre o prato. O julgamento da inglesa, após ter provado por três anos aquilo a que já se refere como "feijoada", e lamentando estar há mais de 20 sem sentir seu aro­ma, é bastante positivo: "É deliciosa, e eu me contentaria, e quase sempre me contentei, de jantá-la."
     A Casa Imperial - e não escravos ou homens po­bres - comprou em um açougue de Petrópolis, no dia 30 de abril de 1889, carne verde (fresca), carne de porco, linguiça, linguiça de sangue, rins, língua, cora­ção, pulmões, tripas, entre outras carnes. D. Pedro II talvez não comesse algumas dessas carnes - sabe-se de sua preferência por uma boa canja de galinha -, mas talvez outros membros de sua família sim. O livro O cozinheiro imperial, de 1840, assinado por R.C.M., traz receitas para cabeça e pé de porco, além de outras carnes - com a indicação de que sejam ser­vidas a "altas personalidades".
     Hoje em dia não há apenas uma receita de feijoa­da. Pelo contrário, parece ser ainda um prato em construção, como afirmou nosso folclorista maior no final dos anos 1960. Há variações aqui e acolá, adaptações aos climas e produções locais. Para Câmara Cascudo, a feijoada não é um simples prato, mas sim um cardápio inteiro. No Rio Grande do Sul, como nos lembra o historiador Carlos Augusto Ditadi, ela é servida como prato de inverno. No Rio de Janeiro, vai à mesa de verão a verão, dos botecos mais baratos aos restaurantes mais sofisticados. O que vale mesmo é a ocasião. Uma comemoração, uma confraternização, ou até mesmo uma simples reunião de amigos. Um cronista brasileiro da segunda metade do século XIX, França Júnior, chegou a dizer mesmo que a feijoada não era o prato em si, mas o festim, a "patuscada", na qual comiam todo aquele feijão. Como na Feijoada completa de Chico Buarque: "Mulher / Você vai gostar / Tô levando uns amigos pra conversar." O sabor e a ocasião, portanto, é que garantem o sucesso da feijoa­da. Além, é claro, de uma certa dose de predisposição histórica para entendê-la e apreciá-la, como vêm fa­zendo os brasileiros ao longo dos séculos.

Rodrigo Elias é historiador e professor das Faculdades Integradas Simonsen.
Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 4 - Fev. 2004

quinta-feira, 19 de março de 2015

A História Da Pobreza - Porque Pobreza?

A pobreza sempre fez parte de nossas vidas, mas nossas atitudes em relação a ela mudaram. Iniciando no período Neolítico, o filme de Ben Lewis, narrado por Shaun Parkes e animado pela empresa holandesa Submarine, nos leva a diferentes momentos da miséria no mundo. Se você sonhasse que ficou pobre ao longo dos tempos, ao acordar, qual seria sua visão da pobreza? Claro que ainda existem pessoas muito pobres, mas a pobreza atual está mais relacionada à desigualdade...

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Solução caseira

A escravidão indígena começou logo no início da colonização e manteve-se até meados do século XVIII, mesmo ilegal.
     Tão logo fizeram os primeiros contatos na costa brasileira, os portugueses começaram a carregar suas embarcações com mercadorias extraídas da nova terra para serem levadas à Europa. Entre elas, o pau-brasil, animais exóticos e... índios. Em pouco tempo tornou-se comum encontrar escravos indígenas nas ruas de Lisboa e arredores, principalmente nos serviços domésticos. Eles também eram vendidos na Espanha e em seus domínios.
     Quando os portugueses deram início às atividades produtivas no Brasil, a partir da criação das capitanias hereditárias, decidiram utilizar os índios para o trabalho escravo. Sem recursos para importar africanos e sem as condições necessárias para o emprego de mão de obra assalariada, os indígenas acabaram sendo a base da formação da economia colonial.
     Transformá-los em escravos era uma tarefa difícil e arriscada. A presença portuguesa no Brasil e a ocupação das novas terras dependiam do apoio da população nativa. Para defender tão vasto território, a Coroa precisava dos índios como aliados militares contra os concorrentes europeus (no século XVI, especialmente os franceses). Eles também eram úteis para combater grupos indígenas rivais que atacavam os incipientes núcleos coloniais, além de fornecerem informações e alimentos indispensáveis à sobrevivência em uma terra ainda mal conhecida.
     Se a princípio chegou a existir um frágil equilíbrio entre índios e portugueses, ele logo se rompeu. Os nativos acharam bom negócio vender aos recém-chegados seus prisioneiros de guerra, antes utilizados em atividades rituais e sociais (como a antropofagia). Quando, porém, o apresamento de escravos tornou-se um negócio concorrido, a ânsia de obter mais cativos desfez as alianças iniciais.
     No início da década de 1540, por exemplo, um certo Henrique Luís, traficante de escravos indígenas na costa, botou a perder o contato amistoso construído até então com os índios da atual divisa do Rio de Janeiro com o Espírito Santo. Tomado pela ambição de um lucro rápido e fácil, ele sequestrou uma liderança nativa aliada e exigiu como resgate um determinado número de escravos. O resgate foi pago, mas o comerciante, ao invés de cumprir o acordo, entregou o chefe ao grupo rival, obtendo assim escravos de ambos os lados. Os índios reagiram à altura da ofensa: tornaram a vida dos portugueses impossível naquela região. Não foi à toa que, ao escrever a sua História do Brasil no início do século XVII, frei Vicente do Salvador comentou que não era possível obter um testemunho direto sobre a ferocidade daqueles índios, pois os que por lá se aventuravam não retornavam com vida para contar.
     Muitos colonos apelaram a Deus e escreveram ao rei, implorando por alguma atitude em relação à conduta inescrupulosa dos traficantes. Não agiam movidos por fins humanitários, mas sim a partir de cálculos estratégicos: se as coisas continuassem como estavam, temiam que os portugueses fossem expulsos do Brasil. Para piorar, os franceses se aproximavam cada vez mais dos índios e entravam na disputa pelo território. A Coroa se viu então diante de um dilema: como escravizá-los e, ao mesmo tempo, manter a sua “amizade”? A solução encontrada foi separar os índios aliados dos índios inimigos.
     Esta diferenciação já existia nas primeiras instruções dos monarcas, que aconselhavam os navegadores a tratarem com distinção os líderes “amigos” e evitarem conflitos. Mas a nova postura em relação aos índios só começou a ser sistematizada em 1549, com a instalação do governo-geral em Salvador. Coube ao primeiro governador, Tomé de Souza, regulamentar a relação com os índios. Para isso, contava com dois importantes recursos: um regimento elaborado pelo rei oferecendo garantias aos aliados e a presença dos jesuítas, que chegaram na mesma época e passaram a ter voz ativa nas questões indígenas.
     O estatuto dos índios na sociedade colonial reafirmava a liberdade dos aliados. É bem verdade que eles eram obrigados a trabalhar para a Coroa e para os colonos, mas deveriam ser remunerados e tinham uma série de outras garantias, como a propriedade coletiva das terras dos seus aldeamentos. A escravização dos índios, porém, continuava permitida em duas situações: o resgate e a guerra justa. O primeiro fazia referência aos prisioneiros feitos pelos próprios índios, destinados à antropofagia. Neste caso, algum colono poderia resgatar o prisioneiro que, em retribuição, trabalharia algum tempo como escravo. Já a guerra justa era um recurso empregado quando os índios atacavam os portugueses, que então tinham o direito de defender-se e de escravizar os prisioneiros. Não foram poucos, no entanto, as guerras justas e os resgates que não passaram de um pretexto para a obtenção de escravos.
     À medida que a economia colonial se desenvolvia a partir de um produto destinado ao mercado internacional (o açúcar no Nordeste), os colonos começaram a importar escravos de origem africana. Assim, evitavam problemas com a lei e se beneficiavam da maior regularidade da oferta desta mão de obra. Trabalhadores indígenas, escravos ou livres, continuaram a existir, mas não formavam mais a base da produção.
     No entanto, em regiões menos prósperas, os índios ainda eram parte importante da mão de obra, por vezes a principal. Sem outra alternativa de enriquecimento, os colonos lutavam pela manutenção dos "seus índios", como então se dizia. Os paulistas alegavam que os índios eram “um remédio para a sua pobreza”. Uma forma de mantê-los cativos era a administração particular. Teoricamente, tratava-se de uma relação de troca: os índios eram livres, mas prestavam serviços ao seu "administrador" que, como pagamento, os instruía na fé católica. Na prática, muitas vezes adquiria ares de escravidão, como quando os índios eram deixados em testamento junto com as demais propriedades.
     Em certas ocasiões, como ocorreu em 1640, as tentativas de proibir definitivamente a escravidão indígena geraram verdadeiras revoltas, obrigando a Coroa a negociar. Na época, os jesuítas estavam empenhados em obter a proibição das expedições dos paulistas às missões do Paraguai em busca de cativos, conhecidas como "bandeiras" e completamente ilegais. Não foi difícil obter do papa e do rei a proibição específica de tal atividade, o problema foi colocá-la em prática. Por conta disso, os jesuítas foram sumariamente expulsos de São Paulo. No Rio de Janeiro, por pouco não aconteceu o mesmo: quando os moradores ficaram sabendo da notícia, dirigiram-se enfurecidos à residência dos padres. Alguns, mais exaltados, gritavam: "Mata, mata!". Diante da ameaça, os jesuítas recuaram e deixaram as coisas como estavam. Dessa vez, como em muitas outras, os colonos ganharam.
     O cenário só se modificou no final da década de 1750, quando o secretário de Estado do Reino de Portugal, futuro Marquês de Pombal, declarou a absoluta e definitiva liberdade indígena. O Diretório dos Índios propunha a inserção dos índios na sociedade colonial em condições de igualdade com os súditos de origem portuguesa. A Coroa pretendia assim criar uma massa populacional capaz de ocupar o território brasileiro, especialmente as áreas de fronteira em disputa com a Espanha. Por um lado, os índios tiveram dificuldades em lidar com a nova realidade, que previa uma série de mudanças culturais, como a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa. Por outro, receberam bem certas medidas, como o acesso a cargos geralmente restritos aos luso-brasileiros, como oficiais camarários e militares.
     De maneira geral, os índios fizeram um uso bastante ativo do Diretório em diferentes partes do Brasil. Muitos já possuíam uma longa experiência com a sociedade colonial e sabiam utilizar os recursos disponíveis a seu favor. Índios que estavam em situação de cativeiro irregular, por exemplo, conseguiram obter a liberdade recorrendo à Justiça. Sua lenta e progressiva conquista de direitos começava, de fato, ali.

Elisa Frühauf Garcia é professora da Universidade Federal Fluminense e autora de As diversas formas de ser índio (Arquivo Nacional, 2009).

Saiba mais - Bibliografia
MARCHANT, Alexander. Do escambo à escravidão. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1980.
MONTEIRO, John. Negros da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 115-132.
SCHWARTZ, Stuart. “Uma geração exaurida: agricultura comercial e mão de obra indígena”; e “Primeira escravidão: do indígena ao africano”. In: ___. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Saiba mais – Links

Saiba mais – Documentário
Histórias do Brasil a Série
Clique no nome do episódio para assistir:
Acreditando tratar-se de um francês, um grupo de índios captura o alemão Franz Hessen. E como os franceses são considerados inimigos da tribo, o alemão poderá ser devorado pelos índios. A única saída para Franz é convencer Pero Dias, um português ganancioso que vive entre os índios, a desfazer a confusão.

Saiba mais – Filmes
Como Era Gostoso o Meu francês
No Brasil de 1594, um aventureiro francês prisioneiro dos Tupinambás escapa da morte graças aos seus conhecimentos de artilharia. Segundo a cultura Tupinambás, é preciso devorar o inimigo para adquirir todos os seus poderes, no caso saber utilizar a pólvora e os canhões. Enquanto aguarda ser executado, o francês aprende os hábitos dos Tupinambás e se une a uma índia e através dela toma conhecimento de um tesouro enterrado e decide fugir. A índia se recusa a segui-lo e após a batalha com a tribo inimiga, o chefe Cunhambebe marca a data da execução: o ritual antropofágico será parte das comemorações pela vitória.
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Ano: 1971
Áudio: Português / Tupi / Francês
Duração: 84 minutos


Hans Staden
Hans Staden (Carlos Evelyn) é um imigrante alemão que naufragou no litoral de Santa Catarina (1550). Dois anos depois, chegou a São Vicente, concentração da colônia portuguesa no Brasil, onde trabalhou por mais dois anos, visando juntar dinheiro para retornar à Europa. Neste tempo em que viveu em São Vicente, Staden passou a ter um escravo da tribo Carijó, que o ajudava. Preocupado com seu sumiço repentino após ter ido pescar, Staden parte em sua procura, sendo encontrado por sete índios Tupinambás, inimigos dos portugueses, que o prendem no intuito de matá-lo e devorá-lo. É a partir de então que passa a ter que arranjar meios para convencer os índios a não devorá-lo e permanecer vivo. O filme aborda os primórdios da colonização, envolvendo o povo indígena Tupinambá, que então habitava o litoral brasileiro. Conta a história do alemão capturado pelos Tupinambás da Aldeia de Ubatuba, litoral de São Paulo, onde seria devorado em ritual antropofágico. O projeto do filme começou em janeiro de 1996. Da preparação para as filmagens constaram, entre outras coisas, os ensaios com os atores para o aprendizado da língua Tupi e a construção de uma réplica de Aldeia Tupinambá do século XVI em Ubatuba. Também foram rodadas cenas no Forte Bertioga, em trilhas, rios, matas, em canoas no mar e em Lisboa, Portugal, na Caravela Boa Esperança.
Direção: Luiz Alberto Pereira
Ano: 1999
Áudio: Português / Tupi / Alemão
Duração: 92 minutos