Será
que um fazendeiro com muitos escravos, no começo do século XIX, deveria
permitir que seus escravos aprendessem a ler e a escrever? Nos Estados Unidos,
os cativos eram impedidos de estudar nas escolas. Mas nem sempre foi assim: nos
tempos coloniais, os fazendeiros do sul dos EUA, seguindo suas convicções
protestantes, achavam que todos os homens e mulheres deveriam encontrar Deus
lendo a Bíblia. Para isso, eles costumavam matricular seus escravos em escolas
missionárias ou oferecer algum tipo de instrução particular para que pudessem
aprender a ler.
As
coisas começaram a mudar em 1880, quando, perto de Richmond (Virginia), um
grupo de escravos planejou matar seus donos e fugir: a tentativa de rebelião
fracassou e o líder, Gabriel, foi enforcado. A vontade de educar se transformou
em medo. Muitos acreditavam que os escravos alfabetizados poderiam ser
influenciados por textos incendiários e forjar seus próprios salvo-condutos,
que os autorizavam a transitar sozinhos, tornando-se perigosos fugitivos. No
mesmo ano, um juiz da Virginia declarou: “Todo ano aumenta o número daqueles
que podem ler e escrever, e o aumento do conhecimento (...) é a coisa que mais
precisamos temer”. Com pavor das insurreições, os fazendeiros resolveram banir
as assembleias que pudessem permitir que os escravos se reunissem e conspirassem,
e até mesmo reuniões destinadas a algum tipo de “instrução mental”, como as
escolas.
Para
acalmar suas apreensões e conter seus escravos, os americanos resolveram impor
posturas que cerceavam a possibilidade de alfabetização dos escravos, transferindo
a responsabilidade e a culpa para aqueles que ensinassem: mestres, negros
libertos e colegas escravos. Os donos de escravos na Carolina do Sul toleravam
os escravos que sabiam ler, mas desde 1740 vinham prometendo impingir uma
pesada multa a qualquer um que ensinasse um escravo a ler ou o empregasse “como
escriturário em algum tipo de atividade escrita”.
Os
brancos intensificaram as restrições depois da sangrenta rebelião de Nat
Turner, que em 1831, na Virginia, acabou com cinquenta e seis brancos assassinados
e um número igual de escravos executados – incluindo o próprio Turner –, além
de muitos espancados ou mortos pelos guardas. Qualquer pessoa branca que
ensinasse ou até mesmo ajudasse um escravo a ler ou a escrever poderia ser
multada em cem dólares ou ficar presa por até seis meses. Um negro liberto que
fizesse o mesmo poderia receber até cinquenta chibatadas e ser multado em até
cinquenta dólares, ao passo que um escravo receberia até cinquenta chibatadas.
Mesmo antes dessa revolta, a legislação da Geórgia de 1829 proibia qualquer um
de ensinar um “escravo, negro, ou pessoa livre de cor, a ler ou escrever
palavras, sejam escritas ou impressas...” Outros estados americanos acabaram
copiando o exemplo. Sumiu a permissão a ensinar os escravos a ler a Bíblia. O
medo superou o amor cristão.
Essas
leis apenas refletiam o medo branco, porque, na prática, eram quase
inaplicáveis. Quem poderia monitorar o que os donos de escravos faziam em suas
próprias plantações ou casas, nos centros urbanos ou nos locais de trabalho? A
legislação da Virginia reconheceu o dilema: não se podia impedir que os donos
de escravos ensinassem seus próprios escravos a ler e a escrever. Na melhor das
hipóteses, podia-se evitar que um forasteiro o fizesse.
O
médico C. G. Parsons, que passou por plantações sulistas na década de 1850,
reparou que os donos de escravos da Geórgia alfabetizavam seus cativos “apesar
da proibição da lei, pois isso servia melhor aos seus interesses e
conveniências”. Ainda segundo Parsons, “quando esses proprietários tinham
necessidade de que seus serviçais fossem ao mercado para realizar transações
comerciais e levar cartas e recados de família a família, eles lhes ensinavam a
ler nomes, a escrever instruções simples e a contar pequenas somas”.
Ironicamente, os donos de escravos caíram em sua própria armadilha. As leis que
deveriam protegê-los, caso fossem cumpridas, acabariam impedindo que eles
usassem seus escravos como desejavam.
Também
é verdade que alguns escravos pagaram caro por saberem ler e escrever. Um certo
Solomon Northup sofreu “cem chibatadas” por ter roubado uma folha de papel e
fabricado a tinta de que precisava para escrever aos seus amigos do norte,
pedindo ajuda para que pudesse fugir e alcançar a tão almejada liberdade.
Ao
contrário dos seus colegas protestantes do sul dos Estados Unidos, os donos de
escravos brasileiros, como católicos, não achavam que fosse seu dever ensinar
os cativos a ler a Bíblia. Nem falavam abertamente sobre o que poderia
acontecer caso seus serviçais se alfabetizassem, embora certamente temessem uma
insurreição. De qualquer maneira, o acesso às escolas públicas lhes foi
restringido. Uma reforma da educação pública, feita em 1854 na capital
imperial, juntou no mesmo balaio as crianças com doenças contagiosas, aquelas que
não tinham sido vacinadas e os filhos de escravos, e decretou que ninguém que
pertencesse a esses grupos poderia frequentar a escola primária. A Bahia seguiu
o exemplo do Rio de Janeiro com uma regulamentação provincial, em 1862 –
repetida em 1873 –, que proibia os escravos de estudar nas escolas públicas. Em
1881, autoridades baianas exigiram dos alunos matriculados que confirmassem ter
entre cinco e 15 anos, que não tinham doenças contagiosas e que não eram
escravos.
As
autoridades achavam que educar os cativos era desnecessário. Suas motivações
eram, em parte, econômicas, já que ninguém queria “desperdiçar” verbas
públicas. Assim como os sulistas americanos, os brasileiros temiam que as
escolas acabassem se tornando zonas perigosas, lugares onde os escravos ou os
filhos dos escravos poderiam se reunir para alimentar e divulgar ideias
sediciosas. Tanto na América do Sul como na do Norte, os donos de escravos se
tornaram vítimas dos seus próprios medos.
Sandra Lauderdale Graham é autora de Caetana diz não: História das
mulheres da sociedade escravista brasileira (Companhia das Letras, 2003) e
“Writing from the Margins: Brazilian Slaves and Written Culture”, in
Comparative Studies in Society and History, vol. 49, nº 3 (2007).
Saiba Mais - Bibliografia
ALGRANTI,
Leila Mezan, MEGIANI, Ana Paula (orgs). O Império por escrito: Formas de
transmissão da cultura letrada no mundo ibérico, séculos XVI-XIX. São Paulo:
Alameda, 2009.
HAIDAR,
Maria de Lourdes Mariotto. O ensino secundário no império brasileiro. São
Paulo: Universidade de São Paulo/Editorial Grijalbo, 1972.
SILVA,
Maria Beatriz Nizza da. Cultura no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1981.
Filme:
Mississipi em Chamas
Mississipi,
1964. Rupert Anderson (Gene Hackman) e Alan Ward (Willem Dafoe), dois agentes
do FBI, investigam a morte de três militantes dos direitos civis em uma pequena
cidade onde a segregação divide a população em brancos e pretos e a violência
contra os negros é uma tônica constante.
Um
dos jovens desaparecidos é negro e os outros dois jovens são brancos ativistas
contra a discriminação legitimada na região pela sociedade e pelo descaso das
autoridades. Na cidade em questão, encontra-se um grupo que faz parte da Ku
Klux Kan, organizações racistas que apoiam a supremacia branca e o
protestantismo em detrimento a outras religiões. Ainda que nem todos os
moradores compartilhem desse sentimento a favor da segregação racial, há um
silêncio em relação ao assunto, e a Ku Klux Kan goza de uma impunidade
providenciada pelas vistas grossas dos policiais locais. Alguns policiais,
inclusive, participam dos atos violentos que o grupo promove contra a população
negra local. Os negros vivem em condição de miséria e não podem frequentar os
mesmos lugares que os brancos, a não ser em um espaço definido para eles. Os
ataques constam de incêndios, espancamentos e mortes, sem que ninguém seja
responsabilizado. O desenrolar da história mostra uma certa mudança de situação
para os negros, principalmente quando alguns criminosos racistas são presos e
condenados a longos anos atrás das grades. Porém, muito sangue foi derramado
antes que algum benefício fosse atingido pela população discriminada.
Direção:
Alan Parker
Áudio:
Português
Duração:
127 min.
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