“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Como andam os princípios do Vaticano II?

A assembleia que se reuniu de 1962 a 1965 em Roma trouxe ventos de primavera para o mundo católico. Especialistas avaliam a atual crise na igreja e os ecos do Concílio no mundo.
Mauro de Bias         
A assembleia que se reuniu de 1962 a 1965 em Roma trouxe ventos de primavera para o mundo católico, operando reformas e abrindo novas perspectivas. Meio século depois, que saldo restou do otimismo da época? Confirmações, enrijecimentos, mudanças de rota... Especialistas avaliam os ecos do Concílio no mundo atual.

Frei Betto, teólogo.
Aqueles que hoje comandam a Igreja Católica conservam uma visão negativa do mundo.
     A Igreja Católica se encontra em um impasse. Promoveu o Concílio Vaticano II, quando aprovou importantes mudanças estruturais, mas não levou os documentos à prática após a morte do papa Paulo VI. João Paulo II e Bento XVI simbolizam o empenho em fazer a Igreja retroceder frente ao programa conciliar. Portanto, não penso que haja necessidade de um Concílio Vaticano III, e sim que se apliquem as decisões do Vaticano II.
     Aqueles que hoje comandam a Igreja Católica conservam uma visão negativa do mundo (acusado de relativismo de valores); sentem-se incomodados com o pluralismo religioso; insistem em manter, como estrutura básica da instituição, o modelo paroquial, próprio de uma sociedade pré-moderna, na qual relações humanas eram determinadas por proximidade geográfica; miram com desconfiança a mulher, impedida de acesso ao sacerdócio, como ser ontologicamente inferior ao homem; conservam uma visão deturpada da sexualidade, a ponto de condenarem relações sexuais que não tenham como estrito objetivo a procriação dentro do matrimônio; abominam as relações homoafetivas, e têm pouca sensibilidade ao mundo da miséria e da pobreza.
     No entanto, dentro dessa mesma Igreja Católica vicejam novos modelos pastorais, como as Comunidades Eclesiais de Base e a Teologia da Libertação, que facilita a releitura da Bíblia pela ótica dos oprimidos e das mulheres.

Ana Maria Tepedino, teóloga (PUC-Rio)
Não conseguimos implementar tudo, mas há renovação dentro das igrejas, com pequenas experiências nos movimentos e comunidades.

     O Concílio visava a refletir sobre identidade e missão da Igreja Católica, buscar caminhos próprios e, com outras instituições, descobrir o que se poderia fazer pelo mundo. O Vaticano II mudou profundamente a Igreja e suas relações. Havia grande efervescência social, intelectual, política, econômica e religiosa.     
     Diante desse quadro, João XXIII convocou os bispos do mundo inteiro, professores de universidades católicas, movimentos e associações, pastores e teólogos de outras igrejas para dialogar e refletir.
Houve mudanças em relação aos leigos, agora convidados a uma participação maior e mais efetiva na Igreja. Houve mudança na linguagem, menos abstrata e mais metafórica e simbólica, que melhora a compreensão e nos chama a um novo protagonismo. E na hierarquia, a vivência de uma comunhão e corresponsabilidade maior entre os bispos. Surge uma teologia em que a Igreja é povo de Deus em comunhão, e expressa a relação de Pai, Filho e Espírito Santo, entre si e conosco, como modelo na perspectiva de abertura aos outros, da nossa relação com o transcendente, com a natureza e com a realidade.
     Muita gente gostaria de um novo concílio. Não conseguimos implementar tudo, mas há renovação dentro das igrejas, com pequenas experiências nos movimentos e comunidades, nas paróquias, nas organizações eclesiais, nas obras em que os responsáveis agem com seus dons pessoais, fazendo caminho para a experiência de Deus (espiritualidade).

Padre Sérgio Costa Couto (Arquidiocese do Rio de Janeiro)
Encontramos muito progresso, mas aqui e ali alguma coisa descarrilou. Devemos retomar seus textos, que ainda têm muito a nos falar.

     “Poucas vezes, ao longo de sua história, teve a própria Igreja, e todos os observadores de boa vontade, tão forte sensação de ser movida por uma grande esperança”. Esta observação otimista foi de Joseph Lortz, em 1965. Não é apenas a palavra de um historiador sério que reflete sobre a documentação, mas o ânimo de um padre que vivia aquele momento do Concílio Vaticano II. Segundo historiadores e testemunhas, o clima de universalidade superava as divergências.
     Os documentos, acaloradamente discutidos e emendados, eram por fim aprovados com maiorias espantosas: mais de 2.000 votos contra três ou quatro, por exemplo! Contudo, a Igreja também vive no seu tempo. Não conseguimos evitar as influências do “mundo”. Algumas são melhores do que outras. Em 1968, em pleno processo de aplicação das disposições conciliares, somos atingidos por um ambiente de revolução. Os documentos eram cada vez menos lidos, superados por um “espírito do concílio”, que, como jovem rebelde e inconsequente, recusava a própria e milenar herança.
     Nestes 50 anos, encontramos muito progresso, mas aqui e ali alguma coisa descarrilou. Devemos retomar seus textos, que ainda têm muito a nos falar. No Vaticano II, temos uma orientação para nossa época, como o Concílio de Trento o fez para a sua. Durante os pontificados de Paulo VI, João Paulo II (sobretudo) e Bento XVI não faltaram documentos urgindo, corrigindo e exortando, segundo a necessidade do momento. Quantos os conhecem? Penso ser este o problema de nosso tempo: a Igreja se expressa, mas a sua expressão chega fragmentada; cada um lê o que quer. Nossa missão é apresentar a fé cristã ao homem de hoje, mas fazê-lo com tranquilidade e sem esconder que algumas de suas exigências podem pesar, mas nunca serão impossíveis com a graça de Deus.


Novos rumos para velhos dogmas
O Concílio Vaticano II tentou manter o catolicismo sintonizado com um mundo que mudava vertiginosamente. Mas terá sido bem interpretado?
     Até a década de 1960, o padre celebrava a missa em latim e de costas para os fiéis. Neste mesmo período, a Igreja Católica afirmou que a separação entre o Estado e a religião era um fruto positivo da filosofia moderna. Estas e outras profundas transformações abalaram alguns importantes alicerces em que a Igreja de Roma se baseou a partir do século XVI, com o Concílio de Trento (1545-1563). Era a crise da identidade tridentina, levada a termo com a realização do Concílio Vaticano II (1962-1965), o maior evento religioso do século passado, a 21ª grande reunião de bispos e alguns religiosos de todo o mundo com o intuito de discutir os rumos que a Igreja deve tomar.
     A Igreja foi se isolando e se fechando desde o século XVI, primeiramente como reação ao cisma protestante, que adveio das inquietações teológicas de Martinho Lutero (1483-1546), e, posteriormente, ao pensamento liberal e à doutrina comunista. Tornava-se uma “fortaleza sitiada”, interpretando a emergência da modernidade como um grande mal que se abatia sobre o cristianismo. No século XIX e no início do XX, esta tendência foi reforçada ainda mais com os papas Gregório XVI (1831-1846), Pio IX (1846-1878) e Pio X (1903-1914), que lançaram inúmeras condenações contra os principais elementos da cultura moderna, ficando conhecida como ultramontana, “detrás os montes”, ou seja, referente àqueles que estão aquém dos Alpes, com Roma e apoiando todas as decisões do Sumo Pontífice. Porém, essa tendência passou a conviver com diferentes movimentos no seio do catolicismo que, ao contrário, defendiam uma Igreja capaz de dialogar com o mundo, mais aberta à participação do fiel em suas atividades, e que respondesse de forma mais plausível aos desafios do mundo.
     Quando o Concílio Vaticano II foi convocado, o mundo já estava bem diferente daquele dos séculos anteriores: já vira duas grandes guerras, o surgimento do nazifascismo, a emergência e a consolidação de Estados comunistas por todo o mundo, a concretização das democracias liberais, o desenvolvimento dos meios de comunicação, a liberalização moral, o pluralismo religioso e a diminuição da influência das instituições religiosas na esfera pública. O Vaticano II foi a resposta da Igreja aos novos desafios colocados pelo novo mundo que surgia. Ou seja, uma grande tentativa de atualizar a Igreja – realizar seu aggiornamento, palavra em italiano que significa atualização, muito utilizada pelos bispos e religiosos participantes do concílio.
     O fato é que este concílio se diferenciou de todos os anteriores, pois não tinha sido convocado para condenar uma forma de se pensar e agir, nem para promulgar dogmas, como acorrera nos vinte já então realizados. Em quatro anos, de 1962 a 1965, inúmeras questões doutrinais, morais e políticas foram debatidas em uma assembleia instalada na nave central da Catedral de São Pedro, no Vaticano, com a presença de milhares de bispos e religiosos, vindos dos quatro cantos do planeta. A Igreja precisava dar uma resposta a esse mundo em transformação, reafirmar seu papel na contemporaneidade e apontar novos rumos. Precisava demonstrar que não era uma instituição tradicional e milenar já sem contato com a realidade circundante e sem ressonância no mundo.
     Foram debatidos temas que mudaram significativamente o rosto do catolicismo. Pretendia-se passar de uma Igreja fechada em si mesma a uma Igreja aberta ao mundo, capaz de seguir sua missão, levando a mensagem evangélica a todos os confins do mundo, e assim aprender com ele. Uma profunda mudança de compreensão de si mesma, que ainda se continua a sentir.
     A assembleia produziu quatro constituições, nove decretos e duas declarações. Um ponto de seus documentos mais centrais, a Constituição Pastoral Gaudium et spes (07/12/1965), afirma que a Igreja “está firmemente persuadida de que pode receber preciosa e diversificada ajuda do mundo, não só dos homens em particular, mas também da sociedade, dos seus dotes e atividades (…) caminha juntamente com a humanidade inteira. Experimenta com o mundo a mesma sorte terrena”. Com essa ideia, entendia-se o mundo moderno não mais como um inimigo a ser combatido, mas – naquilo em que trazia de positivo em relação ao homem e seus maiores dramas – um aliado.
     As principais questões discutidas foram as litúrgicas, isto é, aquelas relativas aos ritos do catolicismo; questões ecumênicas, sobre as relações entre os cristãos separados; sacerdócio; a missão; a educação; o diálogo inter-religioso e a liberdade religiosa. Entre estes temas, uma nova perspectiva é assumida, consolidando a imagem de “Povo de Deus”, a imagem de todos o fiéis, que agora são compreendidos como aqueles que exercem um “sacerdócio comum nos Sacramentos”. O lugar dos leigos é elevado a uma importância jamais assumida na história do catolicismo.
     Mas o caminho que levou à promulgação dos textos finais e seus avanços foi marcado por tensões entre sensibilidades diversas no interior do concílio. Logo apareceram grupos que buscaram orientar o concílio em suas decisões. Dois deles se mostraram extremamente aguerridos para fazer valer suas posições nos resultados finais: um, mais progressista, com a presença maciça de bispos de Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda e da América Latina, inclusive do Brasil, como Hélder Câmara (1909-1999), que defendiam uma distensão entre a Igreja e os valores modernos; e outro, que pode ser chamado de conservador e era minoria, com a presença marcante de italianos, ligados à Cúria Romana, franceses, norte-americanos e também alguns brasileiros, como Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999) e Antônio de Castro Mayer (1904-1991). Além destes três bispos, que desempenharam importantes papéis no concílio, o Brasil teve mais 243 representantes, entre eles José Ivo Lorscheiter (1927-2007), Jaime de Barros Câmara (1894-1971), Eugenio de Araujo Sales (1920-2012) e Clemente José Carlos Isnard (1917-2005).
     Durante as reuniões, houve um crescente embate entre essas duas concepções, que acabou resultando em um movimento de conquista das mentes dos padres conciliares a partir de palestras, encontros e até mesmo panfletagem. O grupo que saiu “vitorioso” do concílio foi aquele defensor do diálogo com o mundo moderno, reconhecido como a “maioria conciliar”, pois conseguiu inserir nos textos finais a sensibilidade que os marcava, especialmente a compreensão de que o concílio não deveria condenar abertamente nenhuma corrente moderna de pensamento. Porém, a “minoria conciliar” – desejosa, entre outras coisas, de um novo dogma mariano, da manutenção da liturgia do Concílio de Trento e de uma condenação formal do comunismo – conseguiu inserir seus posicionamentos em alguns trechos dos textos finais. 
     As resoluções conciliares foram encontrando aplicação progressiva sob o comando do papa Paulo VI nos anos que se seguiram ao final do concílio, em dezembro de 1965. Porém, as posições contrárias presentes nos debates conciliares estenderam-se ao período posterior. Por um lado, grande entusiasmo e otimismo disseminavam-se em alguns meios, e, junto de alguns deles, também posicionamentos teológicos e litúrgicos que excediam em muito as determinações do concílio. De outro, aqueles não tão otimistas, defensores de uma aplicação calma e cautelosa, além dos que, como Marcel Lefebvre e Antonio de Castro Mayer, radicalizam seu discurso assumindo uma posição anticonciliar, afirmando inclusive ser o concílio ilegítimo.
     Hoje, entre os historiadores do catolicismo, há discussões sobre os significados do Concílio Vaticano II, sua atualidade, ou se um novo concílio se faz necessário. A questão central se debruça sobre os papados de João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI. O primeiro cumpriu e o segundo cumpre os programas do concílio? Ou, ao contrário, como defendem alguns, eles dificultaram sua aplicação ao interpretar o concílio de maneira restrita?

Rodrigo Coppe Caldeira é professor da PUC-MG e autor de Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II (CRV, 2011).

Saiba Mais - Bibliografia
ALBERIGO, Giuseppe. Breve História do Concílio Vaticano II. Aparecida: Santuário, 2006.
BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas, 2005.

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