“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Fibra de gaúcho, tchê!

Com suas glórias e torpezas, a Revolução Farroupilha, que combateu o Império e proclamou uma república nos pampas, foi fundamental para a construção histórica de uma identidade rio-grandense. Mas isso existe mesmo?
Sandra Jatahy Pesavento
      Bem antes do sucesso de A casa das sete mulheres, a colorida e bem cuidada série da Rede Globo, a Revolução Farroupilha já gozava de certa fama, associada a uma longa guerra contra o Império brasileiro, entre 1835 e 1845. Mais do que isso: a Revolução Farroupilha sempre foi o acontecimento pelo qual o Rio Grande do Sul deu entrada e se fazia presente nos manuais de nossos currículos escolares de História do Brasil, na literatura gauchesca, nos discursos políticos, nos tão difundidos Centros de Tradições Gaúchas.
     Fronteira viva com os domínios castelhanos, a então chamada província de São Pedro era uma região essencial para o acesso ao Prata, onde os portugueses tinham interesses e de onde operavam através do contrabando, a partir da Colônia do Sacramento, fundada em frente a Buenos Aires, em 1680. Nessa virada de século, portugueses e castelhanos disputavam ainda o gado abandonado pelos padres das missões jesuíticas, depois de expulsos pelos bandeirantes paulistas - o gado xucro ou chimarrão, rebanho selvagem caçado no pampa.
     É a origem dos rebanhos bovinos e das tropas de muares levadas pelos tropeiros para o abastecimento e o serviço da zona das Minas Gerais. Para assegurar sua estratégia, a Coroa passou a conceder poderes amplos aos senhores de terra e gado, estimulando o assentamento de grandes fazendas de criação, as estâncias, no decorrer do século XVIII. Chefes de bandos armados, tais estancieiros, com os seus homens, defendiam as terras no extremo sul, demarcando a fronteira.
     Com a Independência, ocorreu uma reversão da antiga autonomia. "O centro explorava o sul", denunciavam os rio-grandenses. O Rio Grande virara "colônia" da Corte, bradavam com indignação os senhores locais, apontando as inovações da política imperial que alteravam a situação do Rio Grande do Sul: a centralização político-administrativa; a discriminação das rendas provinciais remetidas à Corte; a taxação do charque gaúcho. Mas além do desprestígio político e econômico, que também recaía sobre outras províncias do Império, inseridas à mesma época no que se convencionou chamar de "rebeliões regenciais", havia a desvalorização militar da província.
     Os chefes locais, tantas vezes vitoriosos nas lutas contra os castelhanos, eram responsabilizados pela perda da Província Cisplatina, em 1828, anexada oito anos antes por d. João VI, e desde então o comando de tropas não lhes era mais confiado. A trama se arma, os senhores se rebelam e lutam lado a lado com seus homens, dando o tom de companheirismo e aspirações comuns, erguidas em plano mais alto, simbolicamente, do que as distinções da posse da terra e da hierarquia social.
     A deflagração de uma revolta armada contra o Império durante um decênio, a proclamação da República Rio-Grandense, a elaboração de uma constituição específica e a criação de símbolos característicos, como bandeira e hino, cuja letra aludia a uma "ímpia e injusta guerra", são ações - mais do que históricas - atemporais, eternas, imutáveis, porque integrantes de uma identidade regional altamente agregadora.
     Tais questões, entendidas na época pelos sulinos como de "descaso", "opressão" ou de "exploração" do "centro" sobre o Rio Grande, serão vistas mais tarde em seu aspecto afirmativo: a província, "ameaçada", se levantara por uma "causa justa" em face das "liberdades ameaçadas", e mostrara aos do "centro" a sua força. A realidade, transposta para a narrativa por força desse novo objeto de culto e de estudo, apresenta os ingredientes fundamentais para a construção de um mito das origens. Há um espaço definido: o pampa, a fronteira, os deslocamentos inerentes à guerra e à criação de gado; há um tempo idílico: a idade de ouro em que o voluntarismo não encontrava freios no poder central; e há também um sujeito, forjado por uma alta concepção de si próprio, segundo tais princípios de mobilidade e autonomia.
     As proezas dos rio-grandenses na Revolução Farroupilha percorreram o caminho da oralidade à escrita para delimitar, ao longo dos anos, um passado, uma memória, uma história. Com as transposições de uma "maneira de ser" - do acontecimento para a região, da região para os seus habitantes, ou do Rio Grande para os rio-grandenses, homogeneizando grupos sociais, raças e etnias -, todos passam a ser herdeiros das "gloriosas tradições de 35", integrados em uma representação do passado que se converte em patrimônio comum, dotado de forte coesão social e veiculado já na segunda metade do século XIX.
     Vários incidentes contribuíram para dar caráter de epopeia à Guerra dos Farrapos, cuja longa duração confirma por si só o valor militar dos revoltosos. Da conquista espetacular de Porto Alegre, capital da província, na arrancada farroupilha de 20 de setembro de 1835, até o estabelecimento de uma paz honrosa - a Paz de Ponche Verde, em 28 de fevereiro de 1845, entre o representante do Império, Caxias, e os chefes locais, atendidos em suas reivindicações -, houve uma sucessão de episódios romanescos e rocambolescos que fazem do acontecimento uma verdadeira saga, como a aventura militar e amorosa vivida por Giuseppe Garibaldi e a bela Anita.
     A fuga espetacular do líder farrapo Bento Gonçalves, a nado, da prisão do Forte do Mar, na Bahia, auxiliado pela maçonaria; a construção e o transporte por terra de navios, puxados por juntas de bois, campo afora, desde a foz do rio Capivari, na Lagoa dos Patos, até a costa da praia, em Tramandaí, para possibilitar aos farrapos a conquista de Laguna, em Santa Catarina; duelos de morte entre aliados farroupilhas, como o de Bento Gonçalves com Onofre Pires, são episódios contados e recontados de pais para filhos desde o final do conflito.
     Já nos primeiros anos de sua fundação, em 1868, a Sociedade Partenon Literário, de Porto Alegre, celebra a revolta farroupilha em prosa e verso, estetizando um passado ainda recente, de modo a torná-lo vivo na memória social. Nasciam as imagens do "monarca das coxilhas", do "centauro dos pampas", dos "indômitos guerreiros", da "vocação libertária", essenciais para que o Rio Grande recuperasse seu poder de barganha com o poder central. Diante de uma realidade nacional esvaziada de lutas, com o fim da Guerra do Paraguai, em 1870, recuperava-se pela memória a vocação, a identidade e a missão do Rio Grande do Sul, que sempre teve como moeda de troca, nos tradicionais ajustes com a Corte, o seu valor militar.
     Na década de transição para a República, a Revolução Farroupilha estava consolidada pela narrativa histórica como acontecimento-chave para a explicação da província. Liberais e conservadores, rivais na política do Império, já se proclamavam herdeiros da mesma identidade rio-grandense, quando uma nova geração, ardorosamente republicana, afronta as instituições monárquicas e arrebata o passado das mãos dos liberais, denominando-se os reais herdeiros do "decênio heroico", capazes de dar nexo entre duas repúblicas: a remota, de setembro de 1836, e a iminente, de novembro de 1889.
    Quando da eclosão da Revolução de 1930 contra o poder central da República Velha, o grito dos gaúchos - "Rio Grande! De pé, pelo Brasil! Não poderás falhar ao teu destino heroico!" - portava em si, de forma orgânica, ancestral e telúrica, um destino manifesto: o de lutar pelas boas causas, sempre alerta, tal como já fora o bravo "sentinela da fronteira". Nesse grito se insere a delicada questão de um equilíbrio instável, sempre presente no confronto do Rio Grande com o dito poder central: qual a relação que se estabelecera desde a Revolução Farroupilha entre o todo e a parte, a nação e a região?
     A resposta se dá na relação da história com o imaginário: mesmo se tendo rebelado contra o centro, mesmo tendo proclamado a república em um contexto monárquico, o Rio Grande optara por ficar do lado do Brasil. "Poderia" se aliar com as repúblicas do Prata, vizinhas, mas permanecera ao lado do Império. Logo, "ninguém tão brasileiro quanto o gaúcho", pois sua brasilidade foi escolha e não imposição.
     Paira, porém, uma advertência: uma guerra de dez anos se inscrevera na história da região e do país, a lembrar que, humilhado ou contrariado, o Rio Grande era capaz de ir às armas em defesa da liberdade. Equilíbrio instável, portanto: continuar a "ser gaúcho e brasileiro" dependia do respeito e reconhecimento, pelo "todo", dos valores e direitos da "parte", num ajuste de identidades permanente entre a região e a nação. Resta uma pergunta: se processos de formação de identidade se constroem por oposição a uma alteridade, os gaúchos são diferentes e específicos com relação a quê?
     Falamos dos castelhanos, no? Ora, os "outros", frente aos rio-grandenses, seriam talvez os "do outro lado da fronteira", tornados "gaúchos malos" pelos azares da guerra, mas parceiros nas lides da paz e no cotidiano de um modo de ser. De alguma forma, estes "outros" acabam sendo os "mesmos", a partilharem uma cultura fronteiriça, comungando valores e práticas de um passado mítico: bravura, honra, justiça. Ou em bom castelhano: sobranceria.
     São duas as tendências de interpretação que se discutem no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, ao longo da primeira metade do século XX: a do historiador gaúcho Alfredo Varela (Revoluções cisplatinas, 1915 e Histórias da grande revolução, 1933), que integra a Revolução Farroupilha ao ciclo platino, acentuando o caráter separatista do movimento, e a do historiador gaúcho J. R Coelho de Souza (O sentido e o espírito da Revolução Farroupilha, 1944) que dá ênfase ao caráter federalista da revolta e, consequentemente, ao seu projeto de integração com o Brasil. Acabou vitoriosa a versão da "vocação brasileira" da Revolução Farroupilha, no momento em que, não por acaso, governava o Brasil o gaúcho Getúlio Vargas, no início dos anos 40...
    Na segunda metade do século XX, interpretações marxistas da história tentaram derrubar a mitificada versão da identidade sulina, mostrando que a Revolução abrigava, também, incidentes pouco gloriosos ou éticos, sobretudo no encaminhamento final da luta, nos acertos de paz com o Império. No combate de Porongos, por exemplo, quando se acerta quem deve morrer, para selar a paz diante de uma derrota dos farrapos, as vítimas escolhidas serão os lanceiros negros, escravos que lutavam do lado farroupilha em troca da liberdade. Da mesma forma, demonstrou-se que o gaúcho mítico nunca existiu historicamente e que a decantada democracia dos pampas era uma construção idealizada que respondia aos interesses de legitimação das oligarquias locais. Hábitos como tomar o chimarrão na mesma cuia, passando de mão em mão, nada tinham a ver com uma estrutura social bem hierarquizada e marcada pela extrema concentração da propriedade da terra. Heróis eram derrubados, Bento Gonçalves questionado nas suas ações.
     Os recentes estudos da história cultural apresentaram um novo enfoque de análise, retomando questões que estranhamente resistiam às violentas críticas do marxismo: as representações sociais, com a força simbólica das palavras e imagens, reinventam o mundo, dando a suas construções o efeito de real, o que explicaria o fato de, no Rio Grande, as pessoas teimarem em "querer acreditar" no mito do gaúcho e na lendária epopeia farroupilha. Ela retornou com força, como carro-chefe de uma identidade vitoriosa e largamente difundida pela mídia e pelos partidos políticos. Caberia até perguntar se algum dia esteve ausente da vida e das preocupações dos intelectuais, seja para criticá-la ou promovê-la.

Sandra Jatahy Pesavento é professora titular de história do Brasil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 2 - Dez. 2003

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4 comentários:

  1. Olá, você tem esse artigo disponível em PDF? Pode me mandar?

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    1. Tenho em word. Link para download
      https://mega.nz/#!rQcWUYjR!MUrJzcXJ2WXKR018B1wtiR3K6nDYmKA_oU9DjM34ysg

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  2. Olá, amigo! Tem o artigo completo, com resumo e as referências? estou precisando para um trabalho na faculdade.

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    1. Até onde sei o artigo está completo. Por favor, verificar fonte: Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 2 - Dez. 2003

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