“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 20 de setembro de 2015

Terras para todos

Atraídos pela propaganda oficial, brasileiros de todas as partes tentaram a sorte na Amazónia, no início da ditadura, mas em vez de prosperidade encontraram um território controlado pela violência e trabalho escravo.
Regina Beatriz Guimarães Neto
     Consequências de vários projetos de colonização aprovados pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), tanto oficiais quanto da iniciativa privada, a década de 1970 ficou marcada pela derrubada sem precedentes da floresta amazônica. Grandes clareiras deram lugar, da noite para o dia, a cidades. O barulho das máquinas e de pequenos aviões se somava ao burburinho de homens e mulheres de diversas regiões do Brasil, sobretudo do Sul, que chegavam a lugares tão distantes quanto Rondônia e Mato Grosso seguindo as precárias estradas abertas na mata. Os jornais e as propagandas do governo e das empresas privadas estimulavam esse novo bandeirantismo. Faziam alarde das riquezas da região, da abundância de terras e das inúmeras oportunidades de trabalho que iam surgindo. O que se chamou de "colonização" pelos governos militares se encaixava numa narrativa majestosa sobre a grandeza do Brasil. Era a versão moderna do mito do Eldorado amazônico.
     Esses projetos de colonização passaram a ser um instrumento de poder do Estado para direcionar o deslocamento, sobretudo de pequenos proprietários, do Sul para o Norte. Para a ditadura militar, era prioritário controlar os movimentos sociais no campo. A "questão da terra" era um problema de segurança nacional. Por isso, as empresas de colonização se beneficiaram dos incentivos financeiros do Estado, através da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e da Superintendência do Desenvolvimento Sustentável do Centro Oeste (Sudeco) e outros programas ou projetos governamentais, como o Polocentro, o Proterra, o Polonoroeste e o Prodeagro. Programas desenvolvidos com recursos obtidos pelo governo federal junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ou ao Banco Mundial.
     Nos estados que compõem o território amazônico, instaurou-se um grande mercado de terras, em que o governo controlava o acesso, a posse e a distribuição de áreas a serem exploradas. Empresas de colonização, como a Sinop, a Indeco, a Incol, a Codemat, Jurena Empreendimentos e a Colonizadora Líder, entre outras, adquiriam grandes extensões, com mais de 200 mil hectares, através de licitações abertas pelo Estado para a compra de terras devolutas, que podiam ser compradas a preços irrisórios. A Indeco (Integração, Desenvolvimento e Colonização), por exemplo, adquiriu do estado de Mato Grosso, em 1973, para efeito de colonização, 400 mil hectares de terra, a Cr$ 50,00 o hectare. Incorporando terras contíguas, logo apareceria como dona de mais de 1 milhão de hectares, num território encravado em terras indígenas. A colonizadora Sinop adquiriu 650 mil hectares, num primeiro momento, criando três núcleos de colonização, na área coberta pela BR163 (Cuiabá-Santarém).
     Em sua origem, as empresas que se dirigiram para a Amazônia não eram diretamente ligadas ao agronegócio. Algumas pertenciam a capitalistas estrangeiros, interessados em especular com a terra. Estas colonizadoras destinavam apenas uma pequena parte no caso de Alta Floresta (área explorada pela Indeco), mais ou menos 13% de toda a área enquadrada no projeto - para pequenos agricultores. Eram oferecidos lotes com cem hectares, que logo depois iriam sofrer um processo violento de fracionamento, reproduzindo as mesmas condições das quais os colonos haviam fugido do Sul.
     A construção de novas cidades na região foi anunciada como o melhor caminho para o país superar o "atraso". Ser moderno, como preconizava a publicidade oficial, relacionava-se à adoção de novas tecnologias e à expansão dos mercados. A paisagem da floresta era rasgada por estradas. Em propagandas que exaltavam o "corredor de exportação", a BR-163 - Cuiabá-Santarém, as novas cidades são apresentadas como exemplo de progresso. E mostravam seus grandes saltos desde que clareiras foram abertas na selva.
     Desde o primeiro momento da implantação dos projetos de colonização, as plantas cartográficas que mapeavam os lotes urbanos projetavam um território hierarquizado. Separavam por módulos os novos habitantes, circunscrevendo o lugar social de cada colono. Reproduziam-se, no plano da arquitetura urbana, as relações de poder em que as empresas assumiam o controle sobre a circulação e a fixação dos moradores.
      Os desenhos que projetaram a construção das novas cidades na década de 70 podem ser vistos como um símbolo desta ordem social. A cidade de Juína, próxima ao estado de Rondônia, é emblemática. Tem a forma de vários octaedros interligados, cada qual representando um módulo, que por sua vez é dividido em lotes. Estes octaedros que aparecem nas propagandas parecem grandes colmeias, sugerindo, quase instantaneamente, que se trata de uma cidade voltada para o trabalho. O desenho da cidade de Vila Rica, que se situa nos limites com o estado do Pará, foi feito em forma de sino, evocando a religiosidade do período colonial e a ostentação da riqueza aurífera.
     Os núcleos urbanos dos projetos destinados à colonização se envolveram também com a exploração de madeira por grupos nacionais, mais tarde associados a empresas estrangeiras, à pecuária e à mineração. A exploração de ouro no norte de Mato Grosso fez com que, a partir do final da década de 70, houvesse uma verdadeira corrida para os garimpos dentro dos projetos de colonização. Guarantã do Norte, Matupá, Terra Nova e Colider cresceram com os garimpos do rio Peixoto Azevedo e rio Teles Pires. Também foi assim com Alta Floresta, Paranaíta Carlinda e Apiacás, território controlado pelo grupo Paranapanema. Já na parte mais a noroeste do estado, reinava a Sopemi (Sociedade de Pesquisa e Exploração de Minério S/A), subsidiária da De Beers, Consolidated Mines Ltda., nas grandes explorações e pesquisas de diamantes, com sede na cidade de Juína.
    Estas cidades acabaram, assim, apresentando os maiores índices de aumento populacional da Região Amazônica. Só Mato Grosso - após a divisão do estado, em 1977 - contabilizou mais de cem municípios novos até o ano 2000. Os municípios de Sinop (74.831 habitantes), Alta Floresta (46.982), Juína (38.017) e Sorriso (35.605), que surgiram como núcleos de colonização em finais da década de 70, estão entre os maiores índices de crescimento do estado, segundo dados do censo de 2000, do IBGE. No entanto, a "escravidão por dívida" e o não cumprimento dos contratos de trabalho por parte dos patrões continuam sendo práticas usuais na região.
     As colonizadoras e grandes fazendas contratavam a segurança de homens armados. Os herdeiros deste modelo de colonização ainda utilizam instrumentos de vigilância sobre sua área de influência, uns mais explícitos - como retirar os posseiros à força e até mesmo queimando barracos -, e outros menos visíveis, oferecendo-lhes lotes em setores mais afastados, insalubres, sem acesso a nenhuma infraestrutura.
     Nos primeiros momentos da abertura das novas áreas de colonização, as empresas construíram barreiras físicas, de madeira ou cimento, para ter controle sobre a região. Utilizaram também barreiras naturais, como rios de difícil travessia, para impedir a entrada dos colonos sem identidade comprovada ou daqueles considerados indesejáveis. Os moradores de Juína, cidade encravada em território indígena - Cinta-Larga, Enawenê-Nawê, Erikbaktsa e Myky -, se acostumaram a conviver com os "correntões" que ficam presos às guaritas das empresas onde se abrigam sentinelas armadas. Elas se localizam em pontos estratégicos da área de colonização. Ali se exige a identificação dos colonos, geralmente por meio de uma carteirinha fornecida pela empresa.
      Parcela significativa de pequenos agricultores e trabalhadores, que chegaram à região acreditando na possibilidade de adquirir um lote ou sonhando com novas oportunidades de trabalho, acabou descobrindo que a terra prometida era o paraíso da violência social. O trabalho escravo em propriedades rurais e áreas de desmatamento tem sido alvo de constantes denúncias da Comissão Pastoral da Terra e outras entidades.
     Nos relatórios anuais da CPT, os estados do Pará, Maranhão e Mato Grosso lideram os maiores índices de violência no campo desde a década de 70. Esses números refletem um padrão de ocupação e exploração da riqueza na Amazônia criado na época da ditadura, que acaba por destruir a floresta amazônica em nome da construção de novas cidades e estradas.
     Atraídos pelas promessas do Eldorado amazônico, homens e mulheres, em situação de grande pobreza, três décadas e meia depois se deslocam de forma constante pela região em busca de trabalho. Ora atuam nas áreas de mineração, ora participam das derrubadas da floresta. E ainda nas grandes lavouras de soja, algodão e milho. Excluídos do mercado regular de trabalho e sem qualquer documento de identidade, recebem variadas denominações, sempre pejorativas, nos lugares por onde passam. São conhecidos como "peões de trecho", "andarilhos" ou "pés-inchados". Movem-se de uma cidade para outra, mudam de região e de estado. Esses trabalhadores transformam o próprio caminho que percorrem na sua morada. Trabalhar e caminhar, para eles, são sinônimos.

Regina Beatriz Guimarães Neto é professora de História na Universidade Federal de Mato Grosso e autora de A lenda do ouro verde. Política de colonização no Brasil contemporâneo. Cuiabá: Unicen/apoio Unesco, 2002.

Fonte: Revista Nossa História - Ano II nº 19 - Maio 2005

Saiba Mais – Bibliografia
FERREIRA, Eudson de Castro. Posse e propriedade territorial: a luta pela terra em Mato Grosso. Campinas: Editora da Unicamp, 1986.
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo: HUCITEC, 1997.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção e violência. Tese de Livre Docência - Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1997.

Saiba Mais – Documentários
Mataram Irmã Dorothy
Em fevereiro de 2005, a irmã Dorothy Stang, de 73 anos, foi brutalmente assassinada. Ativista na defesa do meio ambiente e das comunidades carentes exploradas por madeireiros e donos de terra na Amazônia, a freira americana foi morta com seis tiros no interior do Pará. O documentário revela os bastidores do julgamento dos assassinos de Dorothy e investiga as razões de sua morte.
"Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar."
Direção: Daniel Junge
Ano: 2008
Áudio: Português - Legendado
Duração: 94 minutos

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