“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quinta-feira, 3 de março de 2016

Os EUA contra a esquerda: teoria conspiratória?
É tolo pensar que, por trás das crises vividas pelos governos sul-americanos, há apenas o dedo de Washington. Mas é ingênuo desconsiderá-lo, mostra a História.
     “A todo momento — escreveu em 1959 o jornalista Herbert Matthews — a questão se coloca: se não tivéssemos a América Latina do nosso lado, nossa situação seria dramática. Sem acesso aos produtos e ao mercado latino-americano, os EUA seria reduzidos ao status de potência de segunda classe”. (The New York Times, 26 de abril, 1959). Desta preocupação surge, no início do século XIX, a imagem da região como um “quintal”, que os EUA devem proteger — e submeter — custe o que custar.   O projeto, inicialmente, tem o verniz de uma preocupação solidária: em 1823, o presidente James Monroe condena o imperialismo europeu e proclama “a América para os americanos”. Porém, sua doutrina logo transforma-se num instrumento de dominação do Norte sobre o Sul do continente.
     Às vezes violento, às vezes discreto, o expansionismo dos EUA na América Latina molda de tal modo a história do continente que diversos intelectuais continuam a ver a mão invisível de Washington por trás de cada obstáculo que faz as forças progressistas da região tropeçarem. Quando procuram os responsáveis por seus problemas domésticos, alguns governos latino-americanos flertam às vezes com teorias conspiratórias. Porém, é preciso notar que o sentimento anti-yankee não caiu do céu no continente de José Marti (1): resulta de mais de 150 anos de ingerência real, de inúmeros golpes e complôs, manifestações de uma vontade de hegemonia que viveu diversas transformações históricas.
     Entre 1846 e 1848, o México viu metade de seu território ser anexado pelo seu vizinho ao norte. Entre 1898 e 1934, os militares norte-americanos interviram 26 vezes na América Central: derrubaram presidentes, instalando outros em seu lugar; foi a época do domínio sobre Cuba e Porto Rico (1898); e assumiram o controle do canal interoceânico da antiga província colombiana do Panamá (1903). Abre-se, então, uma fase de imperialismo militar, que seria sucedida pela “diplomacia do dólar” e a captura dos recursos naturais por empresas como a United Fruit Company, fundada em 1899.
     A caixa de ferramentas imperiais de Washington não parece necessariamente a um arsenal militar. Em 1924, Robert Lansing, secretário de Estado do presidente Woodrow Wilson observa: “Devemos abandonar a ideia de instalar um cidadão americano na presidência mexicana, ou seremos levados inevitavelmente a uma nova guerra. A solução requer mais tempo. Devemos abrir as portas de nossas Universidades aos jovens mexicanos ambiciosos e ensinar-lhes nosso modo de vida, nossos valores assim como o respeito a nossa ascendência política. (…) Em poucos anos, esses jovens ocuparão cargos importantes, começando com a presidência. Sem que os Estados Unidos tenham que gastar um único centavo ou disparar um único tiro. Assim, eles farão o que queremos e eles farão melhor e de modo mais entusiasmado do que faríamos nós mesmos”(2). As universidades abrem-se, sem que se abandonem as táticas militares. Em 1927, na Nicarágua, os marines criam a Guarda Nacional, à frente da qual instalam o futuro ditador Anastásio Somoza.
     Com a Guerra Fria, Washington desenvolveu uma nova doutrina chamada de “segurança nacional”. O choque causado pela Revolução Cubana (1959), a formação de guerrilhas marxistas – em El Salvador e Colômbia, em particular –, a disseminação da Teologia da Libertação, a tentativa de um “caminho chileno ao socialismo” (1970-1973) e a insurreição sandinista na Nicarágua (1979) incitaram as cruzadas anticomunistas dos EUA.
     Como revelam cruamente milhares de arquivos, hoje retirados de sigilo, a CIA, Agência Central de Inteligência – fundada em 1947 – e o Pentágono mostram-se dispostos a tudo: campanhas midiáticas de desestabilização, financiamento de opositores, estrangulamento econômico, infiltração de forças armadas e financiamento de grupos paramilitares contrarrevolucionários. Os EUA apoiaram ativamente os golpes de Estado que ensanguentaram a região (Guatemala em 1954, Brasil em 1964, Chile em 1973, Argentina em 1976 e outros) e as  tentativas de invasão militar (Cuba em 1961, e Republica Dominicana em 1965…).    Sozinho, Fidel Castro, teria sido alvo de 638 tentativas de assassinato entre 1959 e 2000. Veneno, armadilhas em charutos e aparelhos fotográficos: a imaginação dos serviços secretos parece não ter limites. Os EUA encarregaram-se também de treinar centenas de oficiais latino-americanos na Escola das Américas. Destacaram agentes e financiaram o material (rádios, manuais de interrogatório) para a Operação Condor. Lançada em 1975, ela foi uma autêntica transacional de ditaduras no Cone Sul, encarregada de caçar, torturar e executar opositores em todo o mundo (3).
     Nesta área, a ação do governo Richard Nixon (1969-1974) contra o presidente chileno Salvador Allende representa um caso exemplar. Antes mesmo do líder socialista assumir o cargo, em 3 de novembro de 1970, a CIA, a embaixada norte-americana e o Secretário de Estado Henry Kissinger organizaram uma vasta rede clandestina de operações para derrubar o governo. A partir de outubro, a CIA entra em contato com os militares golpistas, entre eles o general Roberto Viaux.  Paralelamente, medidas de boicote econômico internacional e sabotagem (como o financiamento da greve dos caminhoneiros em outubro de 1972) agravam a situação doméstica. Os dirigentes mais conservadores da democracia-cristã e da direita chilena beneficiam-se de um generoso apoio, assim como a imprensa da oposição.  Segundo um relatório do Senado dos EUA “a CIA gastou 1,5 milhões de dólares para financiar El Mercurio, principal jornal do país e canal importante de propaganda contra Allende” (4). Agustin Ewards, seu proprietário desde então, está entre os ex-funcionários da CIA.
     Com o fim da guerras civis na América Central e os processos de redemocratização no Sul, os EUA mudam sua melodia. Na década de 1990, a promoção do “Consenso de Washington” (5) e o surgimento de governos neoliberais na região permitiram-lhes firmar sua hegemonia através da defesa do mercado. Em 1994, o presidente Bill Clinton propôs a criação de uma zona de “livre comercio” das Américas (ALCA). “Nosso objetivo é garantir às empresas dos EUA o controle do território que vai do polo norte à Antártida” (6), declarou alguns anos mais tarde o secretário de Estado Colin Powell. Mas Washington não contava com a rejeição popular de suas pautas políticas, nem com a ascensão dos governos progressistas na região. Em 2005, o projeto da ALCA é rejeitado. A integração dos países da região intensifica-se para desconforto dos EUA, mantidos de fora. Criam-se a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) em 2008 e a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e do Caribe (Celac) em 2010.
     Barack Obama não rompeu com alguns fundamentos. Os memorandos da “estratégia de segurança nacional”, escritos em 2010 e em 2015, sublinharam que a América Latina continua sendo uma prioridade para os EUA, em particular em termos de fornecimento de energia – daí a obsessão de Washington com a Venezuela – e o controle militar do continente. Após 2008, foram inauguradas novas bases militares (sob direção do Comando Sul do Exército dos EUA) e sistemas de vigilância eletrônica, graças a aliança inabalável com a Colômbia. Especialistas do Pentágono ainda enxergam a região segundo os preceitos estabelecidos por Nicholas Spykman em 1942 (7): de um lado, uma zona de influência direta integrando o México, o Caribe e a América Central; de outro, os grandes Estados da América do Sul (em especial o Brasil, o Chile e a Argentina), cuja união é preciso impedir.
     Para isso, o estímulo a acordos de livre comércio é considerado, em última análise, mais eficaz do que as formas diretas de intervenção (ler “Miragens do livre-comércio”). A recente reaproximação entre Washington e Havana, que visa romper o crescente isolamento dos Estados Unidos na região abrindo ao mesmo tempo um novo mercado, também insere-se nesta perspectiva. Diante de uma América multipolar, cada vez mais voltada à Ásia e agitada por muitos movimentos sociais de resistência, os EUA escondem-se por trás da diplomacia.
     Assim, a luta contra os governos latino-americanos considerados populistas repousa, principalmente, no poder de influência: o soft power da opinião através dos meios de comunicação privados e o desenvolvimento de certas ONGs e fundações que recebem milhões de dólares para “sustentar a democracia” inspirando-se no modelo das “Revoluções Coloridas” que aconteceram no leste europeu. No último 12 de março, Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, denunciou o papel de Miriam Kornblith, diretor da América Latina na National Endowment for Democracy (NED), no financiamento da oposição, sindicatos e associações anti-chavistas.
     Bravatas bolivarianas? A conferir. Em 31 de maro de 1997, o New York Times informou que a NED foi criada para pensar uma “maneira de realizar publicamente o que a CIA tinha realizado em sigilo durante décadas”. Os documentos revelados pelo Wikileaks mostram que os EUA financiaram a oposição venezuelana desde a chegada de Hugo Chavez ao poder em 1998 (8). Em 2013, o presidente equatoriano Rafael Correa congelou, por sua vez, toda as atividades de cooperação com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), enquanto seu homólogo boliviano, Evo Morales, expulsou esta organização “independente”, considerando que ela “conspirava” contra si.
     O Departamento de Estado não abandou seus velhos hábitos, como evidencia notoriamente o golpe de estado contra Chavez em abril de 2002. Em Honduras em 2009 e no Paraguai em 2012, os “golpes institucionais” favoreceram as oligarquias locais alinhadas com Washington (9). A estratégia consiste em destituir os dirigentes democraticamente eleitos, mas considerados muito insubordinados, com apoio de parte dos parlamentos nacionais. Conspiração ou arte de manejar a correlação de forças? A diferença pode ser tênue…

Franck Gaudichaud é Professor da Universidade de Grenoble-Alpes e vice-presidente da Associação America France-Latina (FAL).
(1) José Martí (1853-1895), fundados do Partido Revolucionário Cubano, é um dos heróis da independência da América Latina.
(2) Citado por James D. Cockcroft, Mexico’s Revolution. Then and Now, Monthly Review Press, New York, 2010.
(3) Cf. John Dinges, Les Années Condor. Comment Pinochet et ses alliés ont propagé le terrorisme sur trois continents, La Découverte, Paris, 2008.
(4) « Covert Action in Chile. 1963-1973 » (PDF), Relatório Church, Senado dos Estados Unidos, Washington, DC, 1975.
(5) Ler Moisés Naim, « Avatars du“consensus de Washington” », Le Monde diplomatique, mars 2000.
(6) « Les dessous de l’ALCA (Zona de livre-comercio Americano) »,Alternatives Sud, vol.10, no1, Centre tricontinental (Cetri), Louvain-la-Neuve (Belgique), 2003.
(7) Nicholas Spykman, America’s Strategy in World Politics : The United States and the Balance of Power, Harcourt, New York, 1942.
(8) Jake Johnston, « Whatthe Wikileaks cables say about Leopoldo López », Center for Economic and Policy Research, Washington, DC, 21 février 2014.
(9) Cf. Maurice Lemoine, Les Enfants cachés du général Pinochet,Don Quichotte, Paris, 2015

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2 comentários:

  1. Caro professor,

    não pude deixar de notar a semelhança entre o trecho que segue abaixo e a atual situação política do Brasil. Será mera coincidência? rs

    "O Departamento de Estado não abandou seus velhos hábitos, como evidencia notoriamente o golpe de estado contra Chavez em abril de 2002. Em Honduras em 2009 e no Paraguai em 2012, os “golpes institucionais” favoreceram as oligarquias locais alinhadas com Washington (9). A estratégia consiste em destituir os dirigentes democraticamente eleitos, mas considerados muito insubordinados, com apoio de parte dos parlamentos nacionais."

    Abraço

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    1. Embora o autor, não explicite que se refere ao Brasil, qualquer semelhança com o contexto atual creio não ser mera coincidência.

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