“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 3 de julho de 2016

O ladrão de sementes

Um aventureiro ajudou a transformar a economia global, passando o monopólio mundial da borracha para as mãos da Inglaterra.
     Na história da geopolítica internacional, costumam figurar apenas os nomes dos grandes governantes e diplomatas. Henry Wickham não foi um deles. Ainda assim, esse personagem ajudou a transformar a produção mundial da borracha, influenciando as relações internacionais e a hegemonia econômica do século XX.
     Ao trocar um pneu de carro ou vestir uma capa de chuva, estamos lidando com alguns dos mais de 50 mil derivados da borracha, matéria-prima absolutamente indispensável na cadeia produtiva de quase todos os setores econômicos. Para atingir esse sucesso, iniciado na esteira da revolução industrial, a borracha trilhou percursos tortuosos. Há pouco mais de cem anos, o monopólio da produção concentrava-se na Amazônia, região responsável por fornecer quase 100% da demanda global na época – principalmente para os países industrializados que, por sua vez, buscavam uma maneira de neutralizar esse domínio.
     Foram cinco décadas de hegemonia amazônica antes daquele empreendimento borracheiro desmoronar, superado pela crescente produção no Sudeste asiático. Na ordem do dia, então, passaram a ser debatidas questões sobre a soberania nacional, em particular a proteção do patrimônio biológico, e uma reavaliação do modelo de desenvolvimento praticado pelo Brasil, que ao longo da história sempre se valera do extrativismo e da exportação de produtos naturais – café, minérios, açúcar, borracha. 
     Wickham teve papel ativo nessa história. Ele foi responsável pelo contrabando de 70 mil sementes de seringueiras, parte das quais seriam plantadas com êxito no Jardim Botânico Real de Londres (Kew Gardens) e depois transferidas, em mudas, para as colônias britânicas no Sudeste asiático.
     Henry Alexander Wickham nasceu em 1846, ao norte de Londres. Aos 20 anos, viajou para a Nicarágua à procura de plumas para fornecer à chapelaria de sua mãe. Foi a primeira viagem de muitas que faria à América Latina, anotando em um diário suas impressões sobre a região. Nesse diário, ele já levantava a possibilidade de um empreendimento borracheiro. O império britânico estava em expansão: o reinado da rainha Vitória (1837-1901) estabeleceu uma política de crescimento econômico, colonização e aumento da presença militar em seus domínios além-mar. Esse cenário representava, para Wickham e outros cidadãos ingleses, uma crescente chance de almejar fama e fortuna em empreendimentos e descobertas, com ou sem o aval do governo britânico. 
     A borracha era necessária à revolução industrial, que estava a todo vapor na Inglaterra. O então diretor de Kew Gardens, Joseph Hooker, tomou conhecimento do diário do jovem Henry. Em Rough Notes, Wickham já discursava sobre os limites e as possibilidades de produzir borracha em massa. Hooker ofereceu a ele 10 libras para cada mil sementes de seringueira coletadas. Mesmo sem garantia ou remuneração adiantada, Wickham se animou com a proposta e convocou esposa, mãe, irmã e irmão para se engajarem em um empreendimento nas cercanias de Santarém, Pará, onde estabelecera um sítio. Para alguns de sua família o destino não foi feliz: sua mãe, sua irmã e a sogra do irmão faleceram, provavelmente por doenças tropicais, sucumbindo ao clima amazônico.
     As perdas familiares não afastaram Wickham de seu projeto. Em troca de migalhas, indígenas e caboclos o ajudaram a coletar, próximo ao rio Tapajós, as almejadas sementes. Elas eram acondicionadas em uma embalagem especial e sigilosa – para não estragarem durante a longa viagem marítima e para não serem detectadas pelas autoridades brasileiras. O governo havia estabelecido fiscalizações alfandegárias salpicadas pela Amazônia. Wickham escapou de uma inspeção mais rigorosa graças ao então cônsul inglês na região, que conseguiu liberar o barco Amazonas, da linha Liverpool-Manaus. Para a sorte de Wickham, a embarcação sofrera uma desventura ao ter sua carga original roubada, dando assim espaço para o envio das sementes à Inglaterra.
     No final do século XIX, a Amazônia mal sabia que a festa da borracha estava chegando ao fim. Manaus usufruía de uma vida de dar inveja até aos europeus que gozavam seu período Belle Époque. A opulência de Manaus ostentava o Teatro Amazonas, calçadas alinhadas, parques chiques, bonde elétrico e outros apetrechos semelhantes aos das cidades europeias. Os barões da borracha tinham vida tão luxuosa que mandavam suas roupas para a Europa a fim de serem lavadas.
     Graças as 70 mil sementes traficadas por Wickham, as colônias britânicas da Ásia em pouco tempo teriam suas plantações. E em 1919 seriam responsáveis por 95% da demanda global de borracha. A Amazônia não teve fôlego para enfrentar a competição. Seu esquema de extração e comercialização da borracha – à base de patrões, regatões, isto é, comerciantes da Amazônia que praticavam preços abusivos, e trabalho semiescravo – explorava e endividava os seringueiros, responsáveis pela extração desse recurso natural. Os preços inflacionados inviabilizavam o modelo extrativista diante do capitalismo mais eficiente do império britânico.
     Embora também se valessem da exploração de mão de obra barata imposta aos súditos colonizados, os ingleses se diferenciavam dos brasileiros pela rapidez e expansão do processo produtivo. Afinal, eram os líderes da revolução industrial. Seus métodos alcançavam grande produtividade e, por consequência, preços baixos. Em seu habitat natural, a seringueira tem uma ocorrência de aproximadamente um espécime por hectare (o tamanho de um campo de futebol). Na Ásia, foi cultivada em fileiras, concentrada em plantações. Os seringais britânicos vingaram, produzindo látex em abundância. 
     Embora não fosse bem sucedido na maioria de seus negócios, Wickham não desanimou e viu na borracha uma oportunidade rara de enriquecer. Diante do sucesso da empreitada britânica na Ásia, reivindicou seus merecidos louros. Não teve a pompa que esperava. O reconhecimento tardou quase quatro décadas, mas veio em vida: em 1920, foi condecorado “Sir” pelo Rei George V. Nada muito além disso. Segundo algumas fontes, ele recebeu uma mísera pensão e alguns brindes. Sua esposa, Violet, que ficara ao seu lado por muito tempo, abandonou-o. Os botânicos profissionais de Kew Gardens o consideravam um amador aventureiro e desprezaram seus esforços.
     Após a Amazônia, seu espírito desnorteado e aventureiro levou-o para a Nova Guiné e a Austrália, onde sofreu outro fracasso. Nunca chegou a se estabelecer economicamente em definitivo. Morreu em 1928, talvez sem se dar conta de que integrara, de fato, uma enorme lista de “peões” sem muita expressão nos investimentos britânicos além-mar. Foi mais um personagem secundário de um longo processo de troca e roubo de espécies biológicas para fins lucrativos, que remonta à era colonial e existe ainda hoje. Para o historiador norte-americano Alfred Cosby, trata-se de imperialismo ecológico, que atualmente assume a forma de produtos farmacêuticos, grande parte deles derivados de plantas. A mesma Amazônia que revelou ao mundo os potenciais da borracha abriga em sua rica biodiversidade outras incontáveis (e desconhecidas) matérias-primas, que podem interessar a diversas indústrias. Continuam em voga questões de soberania nacional e, mais recentemente, alguns grupos indígenas vêm alcançando o reconhecimento de seu direito ao uso do patrimônio natural que manejam há milênios. O império da vez são as megacorporações internacionais.
     Vilão, cavaleiro em missão nobre a serviço da coroa britânica, oportunista? Seja como for, Wickham foi peça-chave de um processo histórico que se enquadra na espoliação colonial e na globalização. Suas ações, ainda hoje, renderiam grande polêmica.

Louis Carlos Forline é professor de antropologia da Universidade de Nevada e pesquisador visitante no Museu Paraense Emílio Goeldi.

Saiba Mais - Bibliografia
SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A. Queiroz, 1980.
WEINSTEIN, Bárbara. A Borracha na Amazônia: Expansão e Decadência. São Paulo: Edusp, 1993.
BENTES, Rosineide. A apropriação ecológica de seringais na Amazônia e a advocacia das Rubber PlantationsRevista de História, 151 (2), p. 115-150, 2004.
LEONARDI, Victor. Os historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira. Brasília: Paralelo 15, Editora Universidade de Brasília, 1999.

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