“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Um príncipe negro contra o racismo

Condecorado por bravura na guerra do Paraguai, d. Obá II d'África pode ser considerado um pioneiro dos modernos movimentos de afirmação da negritude
Eduardo Silva
      A raça negra não era apenas linda - como quis o movimento Black's beautiful da década de 1960 - mas superior aos "mais finos brilhantes", afirmava, em pleno regime escravista, d. Obá II d'África. Um brasileiro de primeira geração, nascido na Vila dos Lençóis, no sertão da Bahia, por volta de 1845, batizado como Cândido da Fonseca Galvão, mas que também era, por direito de sangue, príncipe africano, neto do poderoso rei Alafin Abiodun, unificador do império ioruba.
      A morte de Abiodun, no final do século XVIII, marcou o início da decadência do império ioruba na África Ocidental - no seu auge chegou a controlar a área entre o rio Níger, ao leste, e o rio Volta, a oeste, e a conquistar o reino de Dahomey -, que deixou de ser grande 'vendedor' de escravos para ter seu povo vendido em grande quantidade, 'iorubanizando' a Bahia até 1850. Alafin Abiodun, segundo a tradição oral africana, deixou a fama de sábio e de ter realizado um "longo e próspero" reinado para seus súditos. Poderoso, possuía centenas de esposas e foi pai de nada menos que 660 crianças - segundo o reverendo Samuel Johnson (1846-1901), pastor em Oyó, capital do império, e decano da historiografia ioruba.  
      Presume-se que pelo menos um desses filhos foi aprisionado, acabou vendido em Salvador como escravo e recebeu o nome cristão de Benvindo. Usando seu prestígio como príncipe, Benvindo deve ter conseguido envolver a comunidade ioruba em algum sistema de cotização e comprar sua alforria. Certo é que seu filho, d. Obá II, já nasceu como homem livre.
      Príncipe guerreiro, d. Obá apresentou-se para lutar na Guerra do Paraguai (1864-1870), saindo oficial honorário do Exército, por bravura. Em 1877, fixou residência no Rio de Janeiro, onde passou a fazer campanha por melhores condições de vida, igualdade racial, abolição da chibata e da escravatura.
      Com dois metros de altura, voz firme e modos de soberano, sua figura imponente chamava a atenção. Apresentava-se sempre bem vestido, de fraque, cartola, luvas, guarda-chuva, bengala, pincenê de ouro e suas "finas roupas pretas", como foi descrito pelo viajante alemão Carl Von Koseritz. Ou, em ocasiões especiais, em seu elegante e preservado uniforme de alferes, com galões e dragonas douradas, espada à cinta e chapéu armado com penachos coloridos.
      A elite da época, ignorando a história da África e os direitos reais africanos, entendia d. Obá II como um subproduto da Guerra do Paraguai (ver box), uma espécie de veterano resmungão, "meio amalucado", figura meramente folclórica. Por outro lado, o povo negro reconhecia e seguia sua liderança como príncipe real. Escravos, negros libertos do cativeiro e homens negros livres, ou seja, que nunca foram escravos, não só compartilhavam suas ideias como contribuíam financeiramente para a publicação nos jornais. E depois se reuniam em suas modestas casas para ler em voz alta e discutir os artigos.
      Mas o que interessava tanto aos leitores? D. Obá pensava de um modo bem diverso da elite que via as raças humanas essencialmente diferentes; para ele, pareciam perfeitamente semelhantes, e o valor dos homens não estava na cor da pele, mas no mérito, no valor guerreiro e humano de cada um. Por isso, a defesa da igualdade entre os homens se torna um dos pontos centrais de sua prática política, e a abolição total da escravatura vira sua bandeira de luta pública a partir de 1882.
      Soldado valoroso, defensor da pátria nos campos de batalha, d. Obá II d'África se sentia com autoridade moral para criticar abertamente a classe dominante e os escravistas: "o único desejo que certos ingratos brasileiros têm é serem acompanhados da preguiça, e não desejarem o bem-estar do país, nem coadjuvar o cego desejo da nação inteira em ser de uma só vez lavada a grande mancha da escravidão", publicava o jornal Carbonário, em 8 de junho de 1883.
      Mesmo comprometido com a abolição total, não poupava elogios, através do jornal Carbonário, aos responsáveis por leis como a do Ventre Livre (1871): "Ei-lo o gabinete 7 de março de 1871, onde teve à sua frente os eminentes estadistas [...], o imortal Rio Branco e todos os seus membros bem conhecidos". E também a Lei Saraiva-Cotegipe (1885), conhecida como a dos Sexagenários,"[...] o digno barão de Cotegipe no honrado gabinete de 20 de agosto de 85, que em ambos tenho fielmente militado".
      E quando sentia que o rumo dos acontecimentos necessitava de uma boa ajuda, apelava para as forças do sincretismo afro-brasileiro: "invoco sempre ao bem-estar dos conselheiros enfermos [...] em todas as minhas preces [...] a santa Bárbara e aos mais santos da África", confessou ele em outubro de 1887, no primeiro aniversário da abolição do açoite. Três anos mais tarde, em julho de 1890, após a áurea lei que pôs fim à escravatura, o príncipe negro d. Obá II d’África morria no Rio de Janeiro, mas seu sonho de igualdade sobrevive.

Eduardo Silva é pesquisador na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e autor de Dom Obá II d'África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Fonte – Revista Nossa História - Ano II nº 19 - Maio 2005

Saiba Mais – Bibliografia
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
JOHNSON, Samuel. The history ofthe Yorubas: from the earliest times to the beginning ofthe ritish Protectorate. Lagos: C.S.S., 1976.
KOSERITZ, Carl Von. Imagens do Brasil. São Paulo: Martins, 1943.
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: EDUSP, 1992.

Assista à reportagem: “Ecos da Escravidão”, que traça o longo e difícil caminho do cativeiro à abolição, a luta pela liberdade, as formas de alforria, os principais abolicionistas. Ainda analisa a polêmica: é possível ou não reparar os males deixados à população negra por anos e anos de trabalho escravo?
Os repórteres Carlos Molinari e Débora Brito foram aos principais polos de trabalho escravo no Brasil (Vale do Paraíba, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais).

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