Revoltosos do século XVII invadem o Rio de Janeiro, derrubam o
governador, assumem o comando político da capitania e acabam conseguindo o que
queriam: liberar a venda da “caninha".
Antonio Filipe Pereira Caetano
Na madrugada
de 8 de novembro de 1660, revoltosos saídos da freguesia de São Gonçalo de
Amarante, no recôncavo fluminense, atravessaram a baía da Guanabara de armas
nas mãos e invadiram a câmara da capitania do Rio de Janeiro. Objetivo:
derrubar o governador Salvador Correia de Sá e Benevides. Como o ilustre
administrador régio - cujos domínios se estendiam à Vila de São Paulo e à
capitania do Espírito Santo - se achava fora da cidade, os amotinados
aprisionaram Tomé Correia de Alvarenga, o governador interino. Começava aí um
episódio dos mais raros no tempo da Colônia. Um grupo de súditos rebelados da
Coroa portuguesa consegue tomar o poder, numa capitania importante, à revelia
do rei, e estabelecer um governo próprio, que durou cinco meses, impondo sua
vontade na condução dos negócios de estado, promovendo inclusive mudanças
significativas no cenário político-econômico local. Jerônimo Barbalho Bezerra,
o líder da revolta, acabou morto. Apesar de o conflito não ter deixado rastros
de destruição pela cidade do Rio de Janeiro, alterou profundamente o cotidiano
da população fluminense e o sistema de poder regional.
O movimento, designado por alguns como
Revolta da Cachaça, resultou de um complexo conjunto de insatisfações
acumuladas pelos proprietários de terras da região. A capitania do Rio de
Janeiro encontrava-se, desde o início do século XVII, numa situação econômica
complicada. A produção açucareira fluminense encalhava nos portos, pois,
comparada ao açúcar produzido na Bahia e em Pernambuco, era considerada de má
qualidade. Além disso, a expulsão dos holandeses do Nordeste, em 1654, havia
produzido um grande baque na economia da América portuguesa, uma vez que esses
antigos invasores transferiram com muita eficiência a produção do açúcar para
as Antilhas, o que ocasionou o aumento da concorrência e a queda dos preços do
produto no comércio internacional. A economia fluminense, naquele momento,
voltava-se em larga escala para o comércio da cachaça, bebida de grande
aceitação na América portuguesa e na costa africana.
A produção da aguardente de cana se
concentrava na região do recôncavo - São Gonçalo, Magé, Itaboraí, Saquarema,
Cabo Frio, Maricá, Guapimirim -, onde foi desenvolvida uma cultura canavieira,
durante os séculos XVI e XVII, paralelamente ao processo de conquista e
povoamento da região pelos portugueses. Para os fazendeiros, era um ótimo
negócio, pois para fazer a cachaça utilizavam o mesmo sistema produtivo do
açúcar, sem muitos gastos adicionais, e, além disso, não era preciso dividir o
produto com os lavradores, pois enquanto estes se responsabilizavam pelo
plantio, os senhores de engenho transformavam a cana em açúcar. A cachaça era
considerada resto da produção de cana, não interessando aos lavradores. Mas com
a criação, em 1649, da Companhia Geral do Comércio, pela Coroa portuguesa, o
quadro mudou e os produtores começaram a se sentir prejudicados. Acende-se, aí,
o estopim da revolta. A Companhia passou a deter o monopólio exclusivo do
comércio da farinha, do bacalhau, do azeite e do vinho, o que não afetava os
produtores da Colônia. Mas, paralelamente, tomou uma decisão drástica: proibiu
a produção e o consumo da cachaça fabricada na América portuguesa. Isso era
inadmissível. Era a cachaça, sobretudo, que movimentava a economia fluminense
numa atividade comercial triangular e bem estabelecida: com o produto que saía
do porto do Rio de Janeiro se compravam escravos, em Luanda, e prata, ao sul do
continente.
A medida protecionista se explicava no
contexto da economia colonial. A cachaça era, então, o principal concorrente do
vinho português, este usado também como moeda de troca na aquisição de escravos
africanos. A aguardente de cana tornou-se popularmente conhecida e apreciada já
naquela época porque era mais barata, não estragava, conservava por mais tempo
o teor alcoólico e, além disso, chegava mais depressa à África que o vinho, com
a vantagem de que, acondicionada nos porões, servia de lastro aos navios,
diminuindo assim os gastos com transporte. Por tudo isso, a Coroa portuguesa queria
impedir a presença da cachaça na África e no Brasil, para impor o consumo do
seu produto. No meio dessa crise, o governador da capitania do Rio de Janeiro,
Salvador de Sá, teve uma infeliz ideia: criar um novo imposto, com o qual
pagaria os soldos das milícias fluminenses, que estavam atrasados, e renovaria
o fardamento e armamento das tropas, que estavam em condições lamentáveis.
Tanto a proibição da cachaça como o novo
imposto produziram reações indignadas. Depois de inúmeras discussões no Senado
da Câmara, os grandes proprietários aconselharam o governador a aceitar
contribuições voluntárias, de acordo com a possibilidade de cada súdito.
Teimoso, Salvador de Sá impôs a taxação como queria e em seguida viajou para a
Vila de São Paulo, a fim de fiscalizar atividades de mineração. Descontentes,
os produtores do fundo da baía da Guanabara, mas que possuíam moradias e
negócios na cidade do Rio de Janeiro, se reuniram nas terras de Jerônimo
Barbalho Bezerra, na Ponta do Bravo, localizada na freguesia de São Gonçalo de
Amarante (hoje conhecido como o Bairro Gradim) e arquitetaram a derrubada da
administração. Entre as reivindicações estavam a menor rigidez nas questões
relacionadas à comercialização da cachaça, como também uma divulgação mais transparente
dos editais de convocação às eleições municipais. Os moradores de regiões mais
afastadas (povoações no entorno da baía de Guanabara como São Gonçalo, Magé e
Guapimirim) encontravam dificuldades de acesso ao documento, o que se refletia
na ausência de seus representantes no fórum legislativo local.
Às primeiras horas da manhã do dia 8, os
revoltosos ergueram-se de armas em punho e convocaram os "homens
livres" para uma reunião geral no edifício do Senado, ao toque dos sinos
das igrejas. Ao perceber que sua guarnição de milicianos havia feito causa
comum com os rebeldes, seduzidos pela promessa de que os soldos atrasados lhes
seriam pagos integralmente, o governador interino Tomé Correia de Alvarenga -
que era primo de Salvador de Sá fugiu para o santuário do Mosteiro de São Bento
acompanhado do provedor-mor, Pedro de Souza Pereira, parentes e amigos mais
chegados à sua família. A multidão pôs-se então a saquear suas casas, inclusive
a do governador da capitania, enquanto uma reunião geral declarava que todos os
Correia estavam depostos e destituídos de seus cargos. Ao se confrontar com os
revoltosos, Tomé Correia de Alvarenga não aceitou suas reivindicações. Foi
então preso e remetido a Portugal, junto com um documento que descrevia os
desmandos praticados por Salvador de Sá.
Derrubado o administrador régio, os
revoltosos aclamaram Agostinho Barbalho Bezerra, irmão de Jerônimo, como novo
governador. Este se mostrou relutante em aceitar o cargo, até porque não estava
muito a par dos planos do irmão, líder da revolta. Para não ser governador,
chegou a abrigar-se no santuário do Convento de São Francisco, mas os
amotinados o arrancaram de lá à força, obrigando-o a aceitar o governo e
ameaçando-o de morte, caso recusasse. No poder, Agostinho nomeou outros
capitães de ordenança, marcou eleições para a Câmara local, expulsou da cidade
todos os moradores que tinham algum tipo de relação com Salvador de Sá e tornou
inválidas as determinações da Coroa com relação à proibição da comercialização
da cachaça. Nascia um governo voltado especificamente para os interesses
políticos e econômicos dos produtores. Assim, Agostinho, que tinha aceitado o
cargo para salvar a própria vida, se mostrou muito rapidamente um governante
conciliador: aconselhou mesmo os refugiados do Mosteiro de São Bento, virtuais
inimigos, a voltar para suas casas na cidade, chegando até a tentar a
reintegração de alguns deles em seus antigos cargos.
Enquanto isso, na Vila de São Paulo, os
ecos dos acontecimentos no Rio de Janeiro chegavam aos ouvidos de Salvador de
Sá. Apoiado pelos paulistas, ele logo preparou um exército, formado por índios,
para atacar o Rio de Janeiro e retomar o controle da capitania. Perdoava a
população fluminense por ter apoiado os revoltosos e autorizava a administração
temporária de Agostinho Barbalho Bezerra, reconhecido por ele mesmo como um
homem de bem e que, conforme lhe informaram, se encontrava naquela situação por
pressão dos amotinados. Por outro lado o governador condenava os atos dos
principais líderes do movimento, acusando-os de traírem e desrespeitarem as
determinações da Coroa portuguesa.
O apoio oferecido pelos paulistas pode
parecer estranho à primeira vista, principalmente porque, em 1640, eles haviam
se confrontado com Salvador de Sá por conta da proibição de escravizar índios,
expressa na bula papal de Urbano VIII, que ameaçava de excomunhão da Igreja
Católica todos aqueles que escravizassem os indígenas. A bula foi apoiada por
Salvador de Sá, para irritação dos paulistas. Mas, ao mesmo tempo, os paulistas
deviam ser gratos ao governador da capitania por uma série de melhoramentos,
como a construção de pontes e a abertura de estradas. Para eles, isso era mais
importante que as reivindicações dos súditos do Rio de Janeiro. A economia paulista
estava voltada para a produção de cereais, como o trigo, e não foi atingida
pelas restrições impostas à economia da aguardente. Além disso, as taxações de
Salvador de Sá não foram estendidas à Vila de São Paulo, de modo que não tinham
do que reclamar. Apoiaram o governador e tornaram mais vulnerável a situação
dos súditos fluminenses rebelados.
A partir
do momento em que Agostinho Barbalho ganhou o apoio de Salvador de Sá, os
revoltosos o retiraram da administração da capitania, já que o mesmo se
recusava, muitas vezes, a aplicar medidas exigidas pelos produtores
fluminenses. Naquele momento, a Revolta da Cachaça havia se radicalizado. Uma
junta foi formada para administrar a capitania no lugar de Agostinho e essa
conjuntura confusa favoreceu Salvador de Sá na sua volta ao Rio de Janeiro.
Segundo os esparsos relatos documentais, a invasão da cidade pelas tropas do
governador se deu de madrugada, da mesma maneira como fizeram os revoltosos. O
desfecho foi rápido. Preso, o líder Jerônimo Barbalho Bezerra foi enforcado e
sua cabeça pendurada no pelourinho da cidade, como exemplo para a população
fluminense. Os demais líderes - Diogo Lobo Pereira, Lucas da Silva e Jorge
Ferreira de Bulhão - foram presos e enviados a Portugal para julgamento.
Com o término da revolta, em 8 de abril
de 1661, tudo parecia novamente calmo na capitania, até o momento em que a
Coroa portuguesa decidiu pronunciar-se sobre o acontecimento. Após ter recebido
as críticas feitas pelos revoltosos à administração de Salvador de Sá, o rei
deu ouvidos a seus súditos e afastou o governador de sua função. Para ocupar o
cargo, foi escolhido Pedro de Melo, que se encontrava em Portugal no momento da
indicação. Agostinho Barbalho, cujo prestígio não se chamuscara com a revolta, ficou
como administrador interino da capitania enquanto o titular atravessava o
Atlântico. A Coroa restringiu também os privilégios da Companhia Geral do
Comércio e, consequentemente, favoreceu a economia da cachaça. Anos mais tarde,
absolveria os revoltosos presos, condecorando-os até com a comenda da Ordem de
Cristo, como reconhecimento pela sua fidelidade e lealdade ao rei.
Não se deve perder de vista que a Revolta
da Cachaça não foi um movimento isolado no império ultramarino português. A
partir de 1640, um terremoto de revoltas assolou os domínios portugueses. Todas
iam contra o abuso no exercício do poder dos representantes régios
(governadores, vice-reis, provedores e ouvidores), os quais, em vez de
governarem visando ao bem comum e à preservação da ordem, estavam, segundo os
revoltosos, interessados exclusivamente em se beneficiar dos cargos que
ocupavam para conquistar riquezas, benesses e prestígio. Muitos desses
funcionários foram considerados tiranos e infiéis à Coroa. Pelo entendimento
que passou a vigorar, tais movimentos foram feitos em prol do rei português, e
não contra ele. Embora violentas, as revoltas foram o recurso que os súditos
descontentes encontraram para impor sua opinião.
A ação dos revoltosos do século XVII
tinha sua origem bem longe dali. As ideias que justificavam o direito a
rebelião contra o governador tirano nasceu na Restauração portuguesa de 1640. A
Restauração foi a tomada do controle político da Coroa portuguesa por uma nova
dinastia, a dos Bragança, após sessenta anos de domínio espanhol - período
denominado pelos historiadores como União Ibérica (1580-1640). Foi denunciando
a tirania, a vilania e a sobreposição dos interesses privados aos coletivos que
os portugueses conseguiram destronar Filipe IV, monarca espanhol que
administrava o reino português. A aclamação de d. João IV, em 1640, pôs fim à
União Ibérica e ao mesmo tempo abriu a brecha para que essas mesmas ideias
fossem utilizadas pelos súditos ultramarinos para afastar administradores
régios que não atendiam aos padrões de comportamento exigidos de um funcionário
real.
Logo, no cômputo geral, os rebelados
saíram vitoriosos com o afastamento da família Correia da administração
fluminense. Após o movimento de 1660, os representantes do clã só ocuparam
cargos menores e nunca mais voltaram a ter o controle da capitania. Além disso,
os descendentes tiveram que refazer as alianças, através do matrimônio, para
manter sua atuação na política fluminense, uma vez que os proprietários de
terra das regiões mais longínquas já se faziam mais presentes na Câmara local.
A Coroa portuguesa ficou do lado de seus súditos, liberando a produção e a
comercialização de aguardente. A Revolta da Cachaça entrou para a história como
a primeira revolta em todo o Atlântico Sul em que os rebelados tomaram o poder
em uma cidade colonial e a governaram em nome do rei. E da cachaça.
Antonio Filipe Pereira Caetano
é professor da Fundação Universidade Estadual de Alagoas e autor da dissertação
de mestrado “Entre a sombra e o Sol – A Revolta da Cachaça”. Defendida na Universidade Federal
Fluminense (UFF), em 2000.
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional -
Edição nº 3 - Setembro de 2005
Saiba Mais – Bibliografia
BOXER, Charles R.
Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e
Angola. São Paulo: Unesp, 1988.
COARACY. Vivaldo.
O Rio de Janeiro no século XVII. Rio
de Janeiro: José Olympio. 1968.
FIGUEIREDO,
Luciano Raposo de Almeida. "Além de súditos: notas sobre revoltas e
identidade colonial na América portuguesa". Revista Tempo, volume 5 n° 10, dezembro de 2000.
Saiba Mais – Link
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