Sonhos de riqueza e ganância de aventureiros produziram um quadro
tão caótico na região das Minas que Portugal chegou a temer pela desintegração
da colônia.
Adriana Romeiro
O espetáculo multirracial oferecido pelas
multidões se desenrolava num cenário bastante peculiar: localizadas em meio aos
sertões, no coração indevassado do continente americano, as Minas ofereciam uma
geografia vertiginosa, salpicada de montes elevados, vales escarpados, rios
frígidos e caudalosos, toda ela recoberta por uma vegetação densa e
impenetrável, típica da Mata Atlântica. A todos causou profunda impressão a
paisagem inquietante da região, descrita invariavelmente em tons sombrios e
sinistros, diante da qual o medo era o sentimento mais comum.
Esta multidão de gente vária e
tumultuaria - para usar expressões da época - se distribuía por pequenos
povoados e arraiais, situados às margens dos rios e nas encostas dos montes,
onde se realizava a exploração do ouro. Estes primeiros núcleos populacionais
não passavam de povoados rústicos, estabelecidos de forma improvisada e
provisória, com ranchos de pau-a-pique, cobertos de palha, nos quais os
moradores apenas dormiam, já que todo o tempo disponível era dedicado à
mineração. A vida, neste contexto, era precaríssima. Nos primeiros tempos, a
fome foi companheira fiel dos povoadores, que, desconhecendo a pobreza da zona
mineradora, se lançavam na aventura do ouro, carregando tão somente um saco às
costas.
Surpreendidos pelas grandes ondas de
fome, sobretudo as que varreram a região entre os anos de 1698 e 1699 e os 1700
e 1701, viram-se obrigados a recorrer à caça para garantir algum sustento. Em
carta ao rei, em maio de 1698, Arthur de Sá e Meneses, governador do Rio de
Janeiro (1699-1702), descreveu o desespero dos mineiros: "Chegou a
necessidade a tal extremo que se aproveitaram dos mais imundos animais, e
faltando-lhes estes para poderem alimentar a vida, largaram as minas, e fugiram
para os matos com os seus escravos a sustentarem-se com as frutas agrestes que
neles achavam". Em pouco tempo, porém, toda a fauna da região seria
dizimada, agravando ainda mais a situação. Levaria algum tempo para que o
abastecimento de víveres se organizasse. E mesmo assim, em meio aos sertões das
Minas, alguns gêneros alimentícios constituiriam por muito tempo uma fina
iguaria: o tão prosaico sal, vindo de Portugal, junto com a manteiga, o queijo
e o bacalhau, custava caríssimo e poucos eram os que se davam ao luxo de salgar
os alimentos.
Se o sal era raro, a cachaça corria
farta. Desde o início, ela foi um gênero de primeira necessidade. E não é
difícil entender as razões. Havia, em primeiro lugar, a demanda imposta pelas
próprias condições de trabalho: a mineração era uma atividade extremamente
difícil e penosa, que exigia um alto consumo calórico. Os mineradores - em sua
maioria, escravos - passavam todo o dia com o corpo praticamente imerso na água
fria, bateando e transportando o cascalho dos rios até as margens, para ser
então lavado. Nessas condições, a aguardente não só fornecia as calorias
necessárias, mas também proporcionava um estado de semi-embriagues que tornava
mais suportáveis condições de trabalho tão adversas. Essencial na labuta da
mineração, a cachaça também o era no lazer: ao lado do jogo de cartas, das
missas e das festas religiosas, as bebidas alcoólicas integravam o limitado
universo do lazer dos mineiros.
A imagem do caos - tão típica dos relatos
dessa época - estava também associada à fluidez geográfica dos povoados, que se
moviam de um lado para o outro, ao sabor das novas descobertas e do esgotamento
das velhas lavras. O jesuíta italiano João Antônio Andreoni (1649-1716), mais
conhecido como Antonil, forjou uma bela expressão para descrever o movimento
incessante dos arraiais: "Freguesias móveis de um lugar para outro como os
filhos de Israel no deserto". Em pouco tempo, a corrida do ouro
desencadearia efeitos perversos. Do ponto de vista econômico, o êxodo de
milhares de escravos negros colocou em risco as lavouras do tabaco e do açúcar,
considerados os pilares da economia colonial. Por todos os lados ecoaram vozes alarmadas
com o espectro da "ruína total" que rondava a América portuguesa.
Além do deslocamento dos escravos para a
zona mineradora, também as multidões que buscavam o ouro nos sertões deixavam
para trás um rastro de abandono, com engenhos desmantelados, lavouras perdidas
e fábricas desamparadas. Indagava-se se a colonização não seria, nestas
condições, um empreendimento arriscado. Afinal, não se sabia ao certo a
extensão dos achados auríferos, feitos até então nos leitos e tabuleiros dos
rios, e não em minas de beta. Esse parco ouro de aluvião compensaria os
esforços de colonização? E ainda que fosse abundante e rico, o excesso da
oferta faria irremediavelmente o preço do ouro despencar em Portugal e no
Brasil, tornando o nobre metal tão vil, que mal valeria o esforço de sua
extração.
Maiores ainda eram os receios de natureza
política. Em primeiro lugar, temia-se que as riquezas recém-descobertas viessem
a se transformar rapidamente em alvo da cobiça das nações estrangeiras, que não
hesitariam em invadir e assaltar os portos marítimos em busca do ouro. Teria
Portugal como resistir a inimigos reconhecidamente superiores no plano militar
naval? Outros ponderavam sobre o verdadeiro destino das riquezas: não estariam
elas fadadas a mal aportar no Tejo para dali seguir em direção a países como
França, Inglaterra, Holanda e Itália, em pagamento das volumosas importações,
fortalecendo perigosamente o poder bélico das potências rivais?
Tamanho era o desequilíbrio das finanças
de Portugal que um observador experiente como o inglês Thomas Maynard havia
notado, em 1671, que: "todo o açúcar chegado este ano, acrescido de todos
os outros artigos que este reino tem para exportar, não dá para pagar a metade
das mercadorias por ele importadas, pelo que todo o dinheiro do reino se
escoará para fora dentro de poucos anos".
Num contexto de crise internacional,
quando o perigo de uma invasão estrangeira parecia iminente, a deserção em
massa dos soldados, deixando desguarnecidos os presídios e as fortalezas do
litoral, punha toda a América a perder. No plano interno, não eram menores os
dilemas. A corrida em direção ao ouro - motivada pela tão terrível auri sacra fames - ajuntaria homens
turbulentos e facinorosos numa região fora do controle da Coroa, encravada em
meio aos sertões distantes e inóspitos, e bem poderia originar uma república
independente a desafiar o poder de el-rei.
Ou, o que seria ainda pior, tal gente rebelde poderia vir a se associar com o
inimigo externo, minando de vez a autoridade régia sobre a região mais rica do
vasto império português.
Teria afinal a Coroa condições de
estabelecer a rápida colonização em terras tão longínquas, montando ali um
governo político capaz de conter os arroubos de gente tão inquieta? Se a
principal missão dos príncipes residia na administração da justiça, sendo esta
a causa final por que foram constituídos por Deus e pelos povos, como então
estabelecer o aparelho de justiça e instituir magistrados com os minguados
recursos de Portugal? Para a Coroa, mais importante do que a exploração
sistemática do metal, era garantir que a descoberta das minas não colocasse em
perigo o resto da América. Uma série de medidas restritivas foi então imposta,
a começar pela proibição do trânsito de pessoas e mercadorias pelo Caminho da
Bahia - de longe a via de ligação mais importante entre as Minas e o resto da
América, procurada por quase todos os que partiam para lá. Para conter o êxodo
dos escravos, estabeleceu-se uma cota de duzentos cativos que poderiam ser
adquiridos anualmente pelos paulistas.
Nada disso conseguiu, contudo, reverter a
migração em massa. Do ponto de vista administrativo, foi criado o Regimento de
1702, inspirado na legislação então existente para as minas de ouro. Apesar das
boas intenções, era uma peça falha, incapaz de dar conta das situações de
conflito que se desenhavam no horizonte. De acordo com o Regimento, o cargo
mais importante das Minas deveria ser ocupado pelo superintendente, o
responsável por praticamente todas as esferas administrativas, inclusive as
judiciais.
O propósito da Coroa era manter esse
cargo nas mãos de um magistrado diretamente nomeado pelo rei, evitando assim
que o controle da região escapasse do domínio português. Mas a experiência se
revelou muito diferente. Assim que o primeiro superintendente - o português
José Vaz Pinto - pisou na região, ele atraiu para si a ira dos poderosos do
lugar, que o obrigaram a fugir esbaforido para o Rio de Janeiro. O episódio
serviu para mostrar à Coroa os limites de seu domínio sobre a região e a força
dos poderosos locais - que, não por acaso, viriam a substituir o magistrado que
pouco antes haviam escorraçado.
As dissensões entre paulistas e
forasteiros remontavam às primeiras descobertas, radicalizando-se muito com o
passar do tempo. Os paulistas alegavam a sua condição de descobridores para
pleitear um tratamento especial, reivindicando para si o monopólio das terras
de sesmarias e dos cargos e postos administrativos. Lastreados nas promessas
feitas aos descobridores ao longo de todo o século XVII, quando a Coroa havia
desenvolvido uma política sistemática para trazer à luz o ouro tão almejado,
eles consideravam a presença dos forasteiros uma ameaça real aos seus
interesses, vendo-os com desconfiança e receio. A superioridade numérica dos
forasteiros abriu-lhes, no entanto caminho para pleitear, junto às autoridades,
cargos e postos na administração local, valendo-se para isso das intrincadas
redes de clientelismo que emanavam de Lisboa e se espalhavam por todo o
império.
A guerra, nessas circunstâncias, era
inevitável. O que se chama de Guerra dos Emboabas foi na verdade um levante
encabeçado por forasteiros contra os paulistas, sob a justificativa de que
esses últimos se comportavam de modo tirânico e despótico, dispensando aos que
não fossem paulistas o tratamento que se dava então aos escravos. Sob a bandeira
da luta contra a opressão e a tirania, os emboabas - alcunha infamante com que
os paulistas estabeleciam a fronteira étnica entre o "nós" e "os
outros", isto é, os forasteiros - conseguiram convencer a Coroa acerca da
legitimidade de sua causa. Para isso contou muito também a imagem extremamente
negativa que, desde o século XVI, se imputava aos paulistas, tidos por vassalos
rebeldes e insubmissos.
A chegada do governador Antônio de
Albuquerque, em agosto de 1709, apressaria o desfecho do confronto armado.
Apesar de consagrado por uma certa tradição historiográfica como o verdadeiro
herói civilizador das Minas, responsável pelo fim da barbárie e o início de uma
nova era, em que os longos tentáculos da Coroa finalmente alcançaram os
distantes e remotos sertões dos Cataguases, Albuquerque pouco pôde contra a
força dos potentados locais, fossem eles paulistas ou emboabas.
Além destes verdadeiros redutos de poder
privado, a Guerra dos Emboabas deixaria um legado amargo para a história
política da capitania. As formulações sobre o direito dos povos à resistência
contra a tirania, a noção de direito de conquista expresso na visão
potencialmente sediciosa de que a descoberta das Minas foi feita à custa de
sangue, sem o apoio de Portugal, e a ideia, trazida pelos paulistas, de que os
vínculos entre vassalos e Coroa tinham um caráter contratualista, condicionando
a fidelidade dos primeiros à atitude da segunda - tudo isso viria a imprimir
uma marca indelével no imaginário político dos mineiros, fomentando sedições e
motins por todo o século XVIII.
Adriana Romeiro é professora
de História na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de Um
visionário na corte de d. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.
Fonte – Revista Nossa História - Ano III nº 36 -
Outubro 2006
Saiba Mais – Bibliografia
GOLGHER, Isaías. Guerra dos Emboabas: a primeira guerra civil
nas Américas. 2a. ed. Belo Horizonte: Conselho Estadual de Cultura de Minas
Gerais, 1982.
MELLO, J. Soares
de. Emboabas: crônica de uma revolução
nativista - documentos inéditos. São Paulo: São Paulo Editora, 1929.
SUANNES, S. Os emboabas. São Paulo: Brasiliense,
1962.
Saiba Mais – Documentário
Clique no nome do episódio para assistir on-line
O mameluco
Jerônimo domina os segredos da mata. Como guia de uma expedição bandeirante, é
ele quem aponta o caminho, decifra os rastros dos animais, encontra comida e
água. Jerônimo terá que usar todo o seu conhecimento para salvar a vida do
jovem Pedro, seu patrão e meio-irmão.
O artesão Manuel
Correia confecciona imagens de santos. Com um detalhe: as imagens são ocas para
esconder o ouro em pó contrabandeado por seu patrão Antônio Vidal. Apaixonado
pela escrava Inácia, Manuel está prestes a cometer uma loucura por amor.
Saiba Mais – Link
Chica, a verdadeira
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