A sagração de Nossa Senhora Aparecida como Padroeira do Brasil em
1931, foi o ponto alto de uma história que se inicia no século XVIII e envolve
mistério, fé e política.
Juliana Beatriz Almeida de Souza
Habitações de pau a pique erguidas ao redor da capela de Santo Antônio,
no pequeno outeiro à margem direita do rio Paraíba, deram início, em meados do
século XVII, à vila de Guaratinguetá. Passagem obrigatória em direção às Minas
Gerais e ao rio das Velhas, para os que vinham de São Paulo ou Rio de Janeiro,
o povoado se desenvolveu com suas roças de mantimentos e colônias de pesca que
garantiam a subsistência dos habitantes e das tropas que por ali passavam.
Os moradores eram gente nascida e
criada em extrema pobreza: rudes padrões de habitação, alimentação e vestuário.
Não era diferente para João Alves, Domingos Garcia e Felipe Pedroso, três
pescadores da vila. Num dia de outubro de 1717, época ruim para a pesca,
saíram, como sempre, para trabalhar. Ficaram horas nas suas canoas, sem
resultado. Mas tinham de insistir. O governador recém nomeado da capitania de
São Paulo e Minas do Ouro, Pedro de Almeida Portugal, futuro conde de Assumar,
passaria por ali, para assumir seu cargo em Vila Rica, e era preciso recebê-lo
bem. Os membros ilustres do lugar pretendiam fazer um banquete em sua
homenagem, com fartura de pescado. E, no entanto, os peixes não apareciam.
João Alves lançou novamente a rede e,
dessa vez, sentiu um peso na malha. Quando a puxou, percebeu no fundo um
pequeno objeto de cor escura que identificou como a imagem de Nossa Senhora,
sem a cabeça. O pescador atirou de novo a rede. Veio, então, a cabeça da
Virgem. Eles a guardaram e voltaram a pescar. Daí em diante, o sucesso foi tal
que os três, com os barcos abarrotados de peixe, decidiram voltar para casa,
com medo de naufragarem.
Unindo a cabeça ao tronco da imagem
com "cera da terra", Felipe Pedroso conservou-a em casa. Após a sua
morte, o filho, Atanásio Pedroso, construiu um altar e um oratório para a
imagem que ganhou manto e coroa artesanais. A devoção foi crescendo e o culto à
Virgem surgida nas águas do Paraíba acabou oficializado pela Igreja, em 1743.
Já na segunda metade do século XVIII, capelas e oratórios dedicados a Nossa
Senhora da Conceição Aparecida foram construídos em outros lugares, nos quais a
fama da Senhora foi levada pelos tropeiros, sertanistas e mineradores, desde
Sorocaba até Campos de Curitiba, Laguna e Viamão, na direção sul; e a Cuiabá e
a Goiás. A Virgem seguia o caminho do
ouro. O título "Aparecida" deve ter surgido nesses primeiros tempos
de devoção, denotando as circunstâncias do encontro dessa imagem de Nossa
Senhora da Conceição: aparecida das
águas. No século XIX, o culto continuou se expandindo e a capela recebia
visitas ilustres: em 8 de dezembro de 1868, na festa da Imaculada Conceição, a
princesa Isabel e o conde d'Eu foram à capela e consta que, na ocasião, doaram
à imagem uma coroa de ouro.
No início da República, o culto à
Virgem passou a ser promovido de forma especial pela Igreja católica. Esta,
compreensivelmente, recebeu a nova ordem política com desconfiança. Com o
advento da República, o Estado se separou da Igreja, extinguindo-se o Padroado
- conjunto de direitos, privilégios e deveres concedidos pelo papado à Coroa
portuguesa -, que a Constituição de 1824 ratificara e a de 1891 suprimira. Era
hora, enfim, de a Igreja brasileira redefinir o seu lugar na sociedade. O final
do século XIX e o início do XX significaram, para ela, um momento de
desenvolvimento institucional, com o fortalecimento de suas estruturas
internas, criação de novas dioceses, aumento do controle episcopal sobre o
clero e crescimento das ordens religiosas, com a
chegada de um novo fluxo de sacerdotes estrangeiros. Mas, parece ter sido a
busca por símbolos que representassem a recém-inaugurada República o mote do
projeto de fazer da Virgem de Aparecida um símbolo católico genuinamente
brasileiro. Essa escolha ligava-se à tradição devocional mariana, ou seja, ao
culto à Virgem Maria, presente desde os tempos coloniais, apresentando ainda a
vantagem de a imagem ser de cor escura, o que sugeria, também, um possível
canal de inclusão dos negros entre a crescente legião de devotos.
Em novembro de 1903, seguindo uma
decisão dos bispos da província meridional do Brasil, d. Joaquim Arcoverde,
arcebispo metropolitano do Rio de Janeiro, solicitou à Santa Sé, sendo
atendido, licença para coroar solenemente a imagem, escolhendo 8 de setembro, dia
da Natividade de Nossa Senhora, para os
festejos. Foi a primeira vez, no Brasil, que se organizou uma cerimônia desse
tipo. Os bispos buscavam, com a solenidade, renovar o culto a Maria e
oficializar o gesto que a devoção popular já havia consagrado, de enfeitar com
manto e coroa o objeto da sua devoção. Além dessa intenção, havia o desejo de
mostrar ao governo republicano a força da fé católica. Em lugar da figura do
rei paternal, a Igreja oferecia a figura maternal de uma rainha, com poderes
especiais para ouvir as demandas de seu povo e, se justas, atendê-las. Nossa
Senhora Aparecida podia se transformar, também, no símbolo feminino que o novo
regime tanto procurava.
Foi no final dos anos 1920 que o
projeto de tornar a Virgem de Aparecida símbolo nacional se configurou
plenamente. Em setembro de 1929, o episcopado brasileiro reunido em Aparecida,
no Congresso Mariano, comemorava o jubileu de prata da coroação da imagem. Ao
final do Congresso, o então arcebispo do Rio de Janeiro, d. Sebastião Leme, liderou um movimento para pedir ao
papa que a Virgem fosse reconhecida como "rainha e padroeira do
Brasil". Em 16 de julho de 1930, Pio XI assinou o decreto atendendo à
solicitação. O pontífice acreditava estar colaborando assim para o aumento da
devoção mariana, em especial sob a invocação da Imaculada Conceição.
Acontecimento assim, de tamanha relevância, deveria ter comemoração à altura. A
festa também precisava de cenário especial, representativo de toda a nação. O
ano era 1931. O lugar escolhido, a cidade do Rio de Janeiro, então capital
federal.
Ato de
fé e patriotismo, a cerimônia atingiu seus objetivos máximos. A nação
republicana ganhava a proteção da Virgem negra de Aparecida, cuja mensagem de
harmonia social vinha contribuir para a consolidação das bases políticas no
Brasil dos anos 30. Nessa época, a Igreja católica no Brasil buscava a
consolidação interna e a reafirmação de seu poder e de sua imagem perante a
sociedade. Ao mesmo tempo, o governo de Getúlio Vargas procurava instaurar uma
nova ordem política e social movida pela valorização do trabalho e baseada na
conservação da família tradicional. A religião se apresentava, então, como um
dos elos capazes de unir a todos, sem distinções.
O
período pode ser percebido, portanto, como o da reaproximação mais efetiva
entre o Estado e a Igreja após a Proclamação da República. A 12 de outubro de
1931, também no Rio de Janeiro, foi inaugurado o Cristo Redentor, no alto do
Corcovado. Novamente se combinaram os ingredientes que fizeram o sucesso da
procissão em homenagem à Virgem, cinco
meses antes: uma semana de preparação dedicada ao Cristo, ato público com
concentração popular e presença de bispos e autoridades públicas de todo o
país, entre elas Getúlio Vargas. A ocasião foi igualmente bem aproveitada por
d. Sebastião Leme, que entregou ao presidente um documento com reivindicações
católicas para uma futura Constituição. O ensino religioso nas escolas públicas
e corporações militares se destacava entre as questões para as quais pedia
atenção.
Assim, a Igreja defendeu o respeito
às instituições públicas, postura que agradava ao governo, reivindicando,
entretanto, uma legislação de acordo com a doutrina católica. Percebia, na
verdade, a proximidade de uma renovação política no Brasil na qual deveria
influir, e a união dos bispos em torno do culto à Virgem de Aparecida
representou um passo importante nesse sentido. Numa época em que a ideia
comunista fermentava no mundo, a Igreja temia pelo seu futuro no país, mas a fé
popular contribuiu para assegurá-lo. Devoção religiosa e projeto político se
combinaram, portanto, na escolha de Nossa Senhora Aparecida para Padroeira do
Brasil.
JULIANA BEATRIZ ALMEIDA DE SOUZA é professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de
"Mãe negra de um povo mestiço: devoção a Nossa Senhora Aparecida e
identidade nacional". In: Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, n. 29, p. 85-102, 1996.
Fonte: Revista Nossa História - Ano 1 nº 12 -
Outubro 2004
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