Frutos notáveis da engenhosidade nativa, recomendadas para fins
variados, inclusive medicinais, as bebidas alcoólicas trouxeram alegria e
riqueza ao Brasil colonial.
Luciano Figueiredo
Destiladas
ou fermentadas, e com base em diferentes gêneros - a mandioca, a cana-de-açúcar,
a uva, o trigo ou o milho -, as bebidas alcoólicas são exemplos da notável
engenhosidade das gentes, por vezes alegres, que habitavam estes trópicos. Mas
possuíam significados estranhos no tempo dos colonizadores. Longe de
representar simplesmente uma forma de alegria e divertimento humanos, serviam
como gênero medicinal, como era o caso da aguardente e do vinho. A primeira era
recomendada especialmente para dores, inflamações, feridas e ainda para os
olhos, a surdez e até para o tratamento de varíola e de sarampo. Já o vinho se
prestava para cauterizações e fricções, além de servir na preparação de bebidas
à base de ervas. Um pouco de vinho oferecido às crianças ajudava a evitar que
urinassem na cama.
Aos poucos, conforme avançava o verde
dos canaviais na terra brasilis, a
capacidade de produzir bebidas tropicais em larga escala vai firmando novos
rumos à economia do Brasil colônia. Considerada "filha da cana e neta do canavial",
como lembram estudiosos do folclore, a aguardente mereceu também um parentesco
ainda mais decisivo com o tráfico negreiro africano. Afinal, a jeribita, como
era chamada a cachaça brasileira no interior daquele continente, foi o
principal produto de troca por escravos nas feiras e portos da África central
desde o século XVII. Esta comercialização em escala internacional acompanhava o
que se passava na Europa do norte com diversos tipos de destilados enquanto nas
Américas certas bebidas como o pisco
e o chinguirito, ao contrário,
estavam circunscritas ao consumo doméstico e a produção ficava limitada ao
mercado regional.
Ao lado da produção da
"aguardente da terra", os lucros do comércio de bebidas importadas de
Portugal, como o vinho e a "aguardente do reino" (um tipo de
bagaceira feita à base de uva destilada), muito consumidas nas tabernas das
vilas brasileiras, rendiam recursos fiscais preciosos para financiar a proteção
da costa contra piratas e corsários que atacavam frotas e cidades. Criava-se
assim aqui, curiosamente, uma estreita dependência de bebidas alcoólicas: a
obtenção de mão de obra escrava para o plantio de cana-de-açúcar e para a
mineração estava vinculada à troca pela cachaça; e a defesa do território
contra os invasores e piratas dependia do vinho que se bebia aqui.
Mas aguardente combinava mesmo com
escravidão. E isso ocorria desde a perseguição e o comércio de escravos na
África, sobretudo em Angola, onde a predileção pela aguardente substituiu o
apreço às cervejas africanas e ao malafo
- bebida fermentada, muito utilizada em cerimônias, extraída de diversos tipos
de palmeiras e chamada pelos portugueses de "vinho-de-palma". Quando
os sobas (chefes nativos) e grupos
mercantis africanos experimentaram a aguardente brasileira, com seu elevado
teor de álcool em comparação com as bebidas que conheciam, nunca mais deixaram
de exigi-la como moeda de troca. Para a frustração de comerciantes da metrópole,
e a felicidade de produtores no Brasil colônia, os africanos rejeitavam o vinho
português, a "aguardente do reino", a cidra, os vinhos espanhóis, e a
cerveja europeia que os traficantes portugueses tentavam negociar sem sucesso.
A preferência pela cachaça, ao lado do tabaco baiano, assegurou grande destaque
aos comerciantes brasileiros na África.
Considerada
eficaz contra a depressão em longas travessias e, acima de tudo, como
fortificante, antes mesmo de chegar ao Brasil os negros conheceram a bebida que
iriam consumir em larga escala na América, já que os próprios traficantes
recomendavam que a jeribita fosse
fornecida de manhã e a noite aos escravos a bordo. Um hábito que se repetiu
aqui: os fazendeiros ofereciam cachaça a seus cativos quando eles saíam de
manhã para a penosa jornada de trabalho, e seu consumo funcionava como
complemento dietético diante da fraca alimentação oferecida pelos senhores. A
pinga então animava e enganava a sensação de dor e fome. A produção de bebidas
pelos engenhos na época guardava algumas peculiaridades, a começar pelas
técnicas de produção e as designações que surgiam para cada espécie. No
interior dos engenhos ou fora deles, a aguardente era destilada em alambiques
que podiam ser de cobre ou até de pedra-sabão, e que separavam o álcool do
restante do líquido. Também ali se produzia a garapa e a cachaça, bebidas com
mais baixo teor alcoólico consumidas pelos escravos, e obtidas a partir da
espuma retirada da fervura do caldo de cana ou do melaço que escorria das
formas antes de ser transformado em açúcar.
Ainda que aguardente e cachaça
apareçam como distintas para alguns autores, muitos costumam não diferenciar
uma da outra. Certo é que a produção da aguardente e da cachaça nos engenhos
serviu muitas vezes como a "salvação da lavoura" para seus
proprietários, e não apenas como fonte mais barata de calorias para a mão de obra.
Ao contrário do mercado da aguardente, sempre crescente, o comércio do açúcar
era caprichoso, com flutuações de preços que tornavam a produção instável e
onerosa. Qualquer retração no mercado internacional, e a queda nos preços,
abalava os rendimentos de toda a safra. Por isto muitos senhores investiam de
maneira complementar na produção e comércio da cachaça, chegando mesmo a defender
- em uma inversão curiosa - que esse era o principal comércio para assegurar o
lucro dos engenhos, uma vez que a venda do açúcar apenas pagava suas despesas.
Em épocas de preço baixo do açúcar, os senhores preferiam reduzir a produção do
açúcar branco e investir no fabrico da aguardente. Talvez por isso os engenhos
para a produção da aguardente de cana tenham se espalhado de norte a sul da
América portuguesa. Seus baixos custos, a capacidade da cana se adaptar em
qualquer terreno e a garantia de consumo explicam esse sucesso. Destilava-se a
aguardente até mesmo em unidades produtivas menos convencionais, como as
fazendas administradas por ordens religiosas, os engenhos de beneditinos e
algumas missões, por exemplo, ainda que a religião condenasse o consumo de
álcool.
Antes, porém, do sucesso da
aguardente, os colonos portugueses no Brasil se esforçaram para recriar no
além-mar o padrão de consumo do reino e, nos primeiros tempos, o vinho
integrava a dieta básica deles, embora com moderação. Não dispensavam "um
copinho de vinho de Portugal", segundo o testemunho do padre jesuíta
Fernão Cardim (1549-1625). Perseguindo certo conforto no Novo Mundo, os
primeiros colonizadores logo cuidaram de transplantar mudas de videira para a
produção de vinho. Na Bahia, chegou-se a produzir uva em abundância a partir da
terceira década do século XVI, e logo depois se tem notícia de vinho tirado de
cepas baianas. O mesmo se passa em São Paulo, onde se fazia vinho desde o
século XVII. Os esforços, no entanto, seriam em vão: mais do que a voracidade
das formigas que destruíam plantações inteiras, os colonos não conseguiram
aguentar a pressão das empresas monopolistas de comércio de Portugal,
responsáveis pela importação para o mercado do Brasil dos vinhos do reino e da
ilha da Madeira.
Mas
nem só de vinho e de aguardente da cana-de-açúcar vivia o morador do Brasil
colônia. Muitos cronistas que travaram os primeiros contatos com os índios
tupi, que habitavam o litoral, descreveram o consumo, durante celebrações, do cauim - bebida fermentada, produzida a
partir de tubérculos, como a mandioca, ou de cereais, como o milho, e ainda de
frutas, como o abacaxi. O mel, eventualmente adicionado, elevava seu teor
alcoólico.
Variações regionais de bebidas se
multiplicaram à margem da cana-de-açúcar, formando verdadeiras sínteses de
trocas culturais e das características da produção local. No Maranhão,
desenvolveu-se uma aguardente nativa, a tiquira,
feita de mandioca, e muito apreciada pela população pobre. Em Minas Gerais,
surge o alua ou "vinho de
milho", bebida fermentada criada pelos africanos chegados da Costa da
Mina. Na vila de São Paulo, a aguardente de milho e a de trigo, feitas a partir
destes cereais fermentados e destilados, se tornaram um sucesso. Mais ao sul,
aparece a de beiju, produzida pela fermentação e destilação do caldo da
mandioca ralada.
Apesar da diversidade de bebidas que
as culturas dos povos na América puderam fermentar e destilar, teria sido
elevado o consumo de álcool nesta época? A princípio, considerando a legislação
que insistentemente condenava o consumo pelos escravos, sim. Em diversos
momentos os administradores do Brasil desenharam imagens de violências
praticadas por escravos enebriados pelo álcool, cometendo roubos, mortes, fugas
e todo tipo de desordem social. Ainda que isto tenha ocorrido, a argumentação
contra os efeitos sociais e políticos da jeribita
muitas vezes escondia interesses dos negociantes de Portugal, que pretendiam
justificar assim a supressão da concorrência que a aguardente brasileira
oferecia aos vinhos e às bebidas importadas do reino, tanto no mercado local
quanto na África. Outras vezes, a guerra contra a "aguardente da
terra", como sucedeu em Minas Gerais na época da mineração de ouro e
diamantes, quando se proibiu engenhos de cachaça, traduzia o desejo de eliminar
a produção de bebidas que desviava a preciosa mão de obra da mineração.
Considerando-se ou não tais imagens
de consumo desenfreado pelos negros, inegavelmente elas colaboraram para
construir uma visão negativa sobre os efeitos sociais da aguardente. Por outro
lado, se não é possível por ora saber a quantidade de consumo, há indícios de
que no Brasil colônia se bebia bem menos do que se pensa. Até porque diversos
agentes se dedicavam a policiar o consumo excessivo de álcool. Os jesuítas, por
exemplo, orientavam os senhores a evitar a embriaguez dos cativos pela
aguardente, sugerindo que ela fosse substituída pela "garapa doce",
bebida fermentada a partir das escumas do caldo de cana, com mais baixo teor
etílico. As irmandades religiosas em diversas capitanias, como Bahia e Minas
Gerais, vetavam o ingresso e a permanência de irmãos que bebessem
imoderadamente. As visitas dos inquisidores de Portugal e dos bispos que atuavam
no Brasil às vilas e arraiais vigiavam atentamente aqueles que praticavam o
vício da "bebedice", e casos frequentes de blasfêmia por parte de
homens e mulheres embriagados de vinho chegavam à Inquisição.
Ao
menos nos meios sociais mais elevados, os portugueses pareciam praticar certa
temperança em relação às bebidas alcoólicas: a embriaguez era grave falta
social e motivo de desprezo na comunidade. Alguns viajantes no século XVIII
afirmam que os portugueses seriam o povo europeu menos afeito ao consumo de
álcool. Muitos confirmam esse padrão para o Brasil, como os missionários
católicos que passaram pelo Nordeste no século XVII. Eles ficaram admirados com
os habitantes de origem portuguesa que bebiam principalmente água fresca,
refrescos e suco de frutas; e se escandalizaram - talvez sensibilizados pelo
ódio àqueles protestantes - com o alarmante consumo de álcool por parte dos
holandeses durante a ocupação da região.
Viajantes europeus que percorreram o
território brasileiro a partir do século XIX expressam opiniões diferentes a
respeito do tema, embora predominem os testemunhos sobre a moderação dos
brasileiros, exceto em relação a escravos e marinheiros, consumidores de muita
aguardente. John Mawe registra que em São Paulo se consumia com parcimônia o
vinho nas refeições comuns, a mesma opinião de Saint-Hilaire, Gardner e
Tollenare. Há, para estes viajantes, certa unanimidade de que as elites das
fazendas ou dos sobrados urbanos não recorriam à bebida, só alguns cálices de
vinho do Porto ou Madeira, vinhos de laranja e licores, isso nas celebrações e
com sobriedade. Esta visão suavizada do consumo nos trópicos não está presente,
porém, na narrativa de Burton em suas andanças por Minas Gerais, a ponto de
afirmar que ali o "consumo de bebidas alcoólicas ultrapassa, eu acredito,
o da Escócia".
De todo modo, soluções no mínimo
inusitadas para reduzir o consumo do álcool também acompanharam o hábito de
beber no Brasil de então. João Curvo Semedo, por exemplo, reúne em seu livro Observações médicas doutrinais de cem casos
gravíssimos, de 1727, algumas medidas "contra a bebedice",
recomendadas a qualquer um interessado em abandonar o vício: servir ao ébrio
"vinho em que se afogaram duas enguias vivas" ou "vinho em que
se misturou um pouco de esterco de homem". Outra alternativa sugeria
recolher o "suor dos companhões [testículos] de um cavalo, quando estiver
suado" e servir ao beberrão, que também poderia escolher entre um copo de
"vinho em que deitaram uma fatia de pão que estivesse duas horas no sovaco
de um agonizante" ou ainda o "vinho que se deitou por meia hora
dentro dos sapatos do mesmo bêbado, quando os descalçar, estando ainda
quentes".
LUCIANO FIGUEIREDO é
professor de História na Universidade Federal Fluminense, editor de Nossa
História e autor do verbete, em colaboração com Renato P. Venâncio,
Colonization European and native drinking (Portuguese America), publicado na
Enciclopédia Alcohol and temperance in modero history: An international
encyclopedia. New York; ABC-CLIO, 2003, 2
vols.
Fonte: Revista Nossa História - Ano 2 nº 13 -
Novembro 2004
Saiba Mais – Bibliografia
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no
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CASCUDO, Luís da Câmara. Prelúdio da cachaça. Belo Horizonte:
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FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. Decadência do Patriarcado Rural e Desenvolvimento
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colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras / CNPQ, 1988.
Saiba Mais – Link
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