“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 16 de julho de 2018

O eunuco do Morro Redondo

Um drama real em Pernambuco no ano de 1936: a castração executada pelo cangaceiro Virgínio Fortunato, cunhado de Lampião.
Frederico Pernambucano de Mello
"Lampião, que exprime o cangaço, é um herói popular do Nordeste. Não creio que o povo o ame só porque ele é mau e bravo. O povo não ama à toa. O que ele faz corresponde a algum instinto do povo (...). As atrocidades dos cangaceiros não foram inventadas por eles, nem constituem monopólio deles. Eles aprenderam ali mesmo, e, em muitos casos, aprenderam à própria custa." Rubem Braga, O conde e o passarinho. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1935.
          O dia 19 de maio de 1936, uma terça-feira, poderia ter sido igual a todos os outros no povoado do Morro Redondo, distrito de Catimbau, do município do Buíque, Pernambuco, com a população - toda ela conhecida entre si, quando não aparentada ou unida pelo compadrio - entregue às tarefas cotidianas da vaqueirice e do trato do algodão e da mamona. Pelas duas horas da tarde, quase todos já tinham almoçado, o silêncio é quebrado desde longe por aboios e rinchos de jumento, num crescendo de tropel de cavalos em disparada. Todos atribuem a aproximação rápida a vaqueiros, com seus chapelões de couro, e se tranquilizam, ainda que curiosos por tanto barulho tão de repente.
          Logo os fatos iriam mostrar que estavam enganados, que não se tratava de vaqueiros farreando alegremente e que o lugarejo humilde, arredado do mundo e até mesmo das trilhas do cangaço, estava sendo ocupado por uma das frações mais brutais do bando de Lampião, comandada pelo cunhado do chefe, o não menos famoso cangaceiro Virgínio Fortunato, o Moderno. Com dez pessoas, oito homens e duas mulheres, todos a cavalo - o que denotava estarem seguros da ausência da polícia -, deslocavam-se divididos taticamente em três grupos separados entre si por cerca de quinhentos metros. No "coice", apenas o chefe Virgínio, em companhia das mulheres, inclusive a sua própria, a bela Durvalina Gomes, a Durvinha, a quem a cabroeira tratava por Maria Bonita para disseminar o pavor de que Lampião, em pessoa, estivesse por perto, e mais Rosalina, a Doninha, mulher do cabra Rio Branco. O cangaceiro Moreno, de coragem comprovada, lugar-tenente do chefe, fazia a "cabeceira" ou vanguarda com mais dois cabras. Todos tinham se juntado momentaneamente para a tropeada em direção ao Morro Redondo, cientes de que surpresa e pavor eliminam reações. Ali estavam, além de chefe e lugar-tenente, os cangaceiros Chumbinho, Jararaca, Ponto Fino, Serra de Fogo, Canário e Rio Branco. No mato, à espreita para possível ação de "retaguarda", o cabra Azulão.
          As missões de rapina, chamadas pelos cangaceiros de "volantes", para mexer com os policiais que denominavam assim as suas tropas móveis, não eram incursões aleatórias. Algum planejamento as antecedia, assuntando-se sobre a abertura dos caminhos, locais sujeitos a tocaia, presença de força policial próxima e, sobretudo, o levantamento dos ricos da terra. Não foi surpresa que entrassem na rua trazendo preso, montado em um cavalo, o capitalista do lugar, Firmino Cavalcanti, mais conhecido como Firmino de Salvador, dominado, com o irmão, o velho Epifânio, em seu sítio de nome Breu, um centro algo próspero de agricultura e de compra de couros e cereais. Muito ao estilo do bando de Lampião, vinham presos a resgate, cumprindo às famílias, além de levantar o dinheiro, arranjar um "positivo" de coragem que viajasse até encontrar o grupo e resgatar a vítima. Uma dificuldade, se considerarmos, além de tudo, que esse resgate não era menor do que a quarta parte do valor de um automóvel à época, podendo ir, em alguns casos, ao dobro de tal valor. O equivalente a dois carros pela vida de fazendeiro próspero foi moeda comum no sertão dos anos 20 e 30 do século passado. No tempo de Lampião.
          Os bandidos, ágeis, saltam dos cavalos e vão ganhando as casas a chicotear a todos pela frente, aqui e acolá brandindo o coice dos fuzis sobre os mais apavorados, lançando ameaças, nivelando a população pelas denominações comuns de "fi' da peste", "fi' d'ua égua", "cão", "amancebado", "descarado", ditas em altas vozes. O cangaceiro Serra de Fogo impressiona por gritar a cada instante: "Veja logo o dinheiro pr'eu não ser mais ruim do que já sou!" Outra marca negativa vem das mulheres cangaceiras, que não poupam os chicotes no rosto e no lombo dos mais próximos, numa ação de gênero de todo incomum nos sertões.
          O chefe Virgínio, faiscando de ouro sobre o traje colorido e imponente, se exalta por não encontrar em casa o filho do prisioneiro Firmino, a quem incumbiria, no plano traçado, ir ao Buíque levantar o dinheiro do resgate. O jovem Pedro de Albuquerque Cavalcanti se achava no mato, "dando campo", no traquejo do gado da família. No bando havia dez anos, desde que enviuvara de uma irmã de Lampião morta pela peste bubônica no Juazeiro do padre Cícero, Virgínio desce do burro e entra na casa de Pedrinho Salvador - como era conhecido - advertindo a mulher deste, dona Ester, com palavras graves. Botando os olhos muito vermelhos sobre ela, recomenda que Pedrinho "vá ver o dinheiro no Buíque assim que chegar". E se recosta numa mesa, servindo-se de cerveja quente, cara fechada, importante, consciente de seu poder absoluto. Chumbinho bota a cara bexigosa na janela, avisando o chefe de que as montarias estavam cansadas. Este, numa demonstração de que o absolutismo tinha limite, recomenda cuidado na devolução dos cavalos, "porque tem um que é do coronel Arcelino de Brito".
          Saindo à ruazinha de lama, Virgínio divisa entre os curiosos um rapaz alto, magro, 22 anos de idade, caboclo quase índio, a quem se dirige com energia: "Venha cá, cabra! Se correr, morre!" O jovem, que jamais vira um cangaceiro em sua frente, se aproxima sem receio, sendo-lhe indagado se era da terra, ao que responde afirmativamente. Segue-se nova pergunta: "Você sabe onde fica o Xilili? Quero que você me bote na estrada que vai pra lá. E vamos logo, cabra!" Para sua surpresa, o jovem - que sabia onde ficava o lugar levado pela ingenuidade põe-se na frente dos animais e responde que ignorava aquele rumo.
          O chefe cangaceiro se enfurece, risca o cavalo novo em que se montara e grita não entender como alguém dali não conheça o lugar procurado, próximo de onde se encontravam. Atordoado, o jovem mantém a negativa implausível. E o mundo lhe desaba sobre a cabeça, todo o seu futuro vindo a se definir nos poucos minutos que se seguem. É arrastado pelos cabras para trás de uma cerca, derrubado no chão a coice de fuzil e fica à espera do chefe, numa eternidade de segundos. Virgínio apeia calmamente, calça umas luvas amarelas e vai até às mulheres pedindo que procurassem uma sombra porque tinha que fazer "um serviço". Uma delas lhe atira no rosto sem nenhum respeito: "Que tanto 'serviço' é esse, rapaz! Chega de tanto 'serviço'!".
          Sem se alterar, o chefe vai até onde estava o jovem, levanta-o pela abertura da camisa, encara-o, e sentencia com uma dureza de Velho Testamento: "Eu agora vou fazer um 'serviço' em você mode você não deixar descendença de famia em riba do chão. Desça as calças!" O rapaz cobre o rosto e cai, compreendendo finalmente no que se metera. Sai o grito: "Valha-me Nossa Senhora!" E a resposta incrível: "Ah, não tem o que fazer. É Nossa Senhora mesmo que está mandando". O punhal longo corre rápido pela virilha da vítima e estoura o cinturão com movimento de alavanca. Calças arriadas, Virgínio ordena: "Segure [os testículos] senão eu toro com tudo [com o pênis]". Embainha o punhal de quatro palmos e dois dedos - seria perdido horas depois e recolhido à delegacia do Buíque - e bate mão de uma "peixeira", faca ainda pouco conhecida no sertão à época. Um golpe só e o bandido tem nas mãos bolsa e testículos do jovem. Caminha, ainda lentamente, reingressa no arruado e chega à porta de dona Ester, com as mãos em concha ensanguentadas, e diz, educadamente: "Dona, eu tinha visto que a senhora tava com feijão no fogo. Quer os colhões de um porco?" E despeja tudo na panela de barro, sem esperar resposta. O feijão espuma. A mulher agradece. Virgínio sai e vai juntar-se aos companheiros. Risadagem. De cima do cavalo, dirige-se ao jovem caído, a perder muito sangue, e receita exatamente a assepsia eficaz da vaqueirice: "Bote sal, cinza e pimenta!".
          O lugar-tenente Moreno volta da rua, onde se detivera a ameaçar com o mesmo "serviço" ao também jovem Antônio Leite Cavalcanti, o Antônio Grosso, e ao prisioneiro Epifânio que, velho e desiludido do futuro, reage duramente ao bandido, caindo-lhe na admiração. Moreno grita na rua: "Oh, veio macho! Ninguém me toca mais num fio de cabelo dessa onça... Só assim eu vou sabendo que muié pariu home no Morro Redondo!".
          No dia 25 de maio, vindo de Rio Branco (atual Arcoverde) na segunda classe do trem da Great Western, o jovem Manuel Luís Bezerra, o "Mané Lulu", filho de Francelina e Luís Bezerra, naturais, como o filho, ali mesmo do Catimbau do Buíque, chegava ao Recife, ficando por um mês no Serviço de Pronto-Socorro, após o que voltaria a pé para a sua residência. O Morro Redondo ganhava uma espécie de eunuco.
          O leitor que toma partido gostará de saber que o chefe Virgínio não viverá muito tempo mais para debochar de sua vítima nas passagens pelo Morro Redondo, amiudadas a partir de então, indagando como ia o "protegido" de saúde e se voltara a namorar... Em outubro desse mesmo 1936, quando procurava os Cariris Velhos, na Paraíba, para se furtar à ação das forças policiais assanhadas pelo ataque de 28 de setembro à vila de Piranhas, no sertão alagoano do São Francisco, passa a ser seguido a distância, nem bem cruzara a divisa, pelo destacamento policial da vila de Inajá, Pernambuco, de apenas quatro soldados, sob o comando do cabo Pedro Alves, um perseguidor experiente de cangaceiros, com mortes nas costas. A aproximação se fazia difícil por conta do número elevado de bandidos: trinta homens e três mulheres, acoplados os bandos de Corisco, com ele mesmo à frente e sua mulher, Dadá, o de Virgínio, completo, mais os remanescentes do grupo de Gato, morto em Piranhas.
          O jogo de gato e rato às avessas - rato enorme, gato minúsculo - segue pelas areias do Moxotó por dois dias, até que num baixio próximo da sede da Fazenda Rejeitado, sul do município pernambucano de Alagoa de Baixo (hoje Sertânia), quando, a bem dizer, já avistavam a Paraíba, os bandidos levam uns poucos tiros, dados de longa distância. Uma longa distância que nunca fora problema para o fuzil Mauser, modelo 1908, regulamentar na volante pernambucana. Pedro Alves e o soldado Pompeu Aristides de Moura, um filho de cangaceiro da ribeira do Navio, tinham ficado sós no momento em que acertavam a tática de atirar "no cabra mais vistoso" e correr para a caatinga, livrando-se do retruque que sabiam violento e rápido. Estava ali a nata do cangaço. E é assim que Virgínio, alto, elegante, grisalho, com uma cartucheira de ombro faiscante de balas a lhe cingir o tórax em diagonal, encontra a morte com apenas um tiro que abre a face interna da coxa e expõe a veia femoral. Sentado ao pé de uma quixabeira, a se esvair em sangue, encontra tempo para se despedir de cada um dos companheiros. Os soldados mergulham na caatinga como veados, debaixo de um chuveiro de balas. Seriam premiados pela ousadia: cabo passando a sargento, e soldado, a cabo.
          No dia seguinte, outros soldados vão ao local para o levantamento do cadáver mal sepultado na pressa, arrancando os dentes de ouro do finado a coice de fuzil, à falta de qualquer outro despojo, tudo conduzido pelo bando na véspera. Um dos soldados, do destacamento do Buíque, conhecedor do episódio do Morro Redondo, corta uma orelha do morto famoso. Cunhado de Lampião. Com uns dias, cavando possível agrado, leva a peça salgada para Manuel Luís, que se recusa a ficar com esta, mas não a escutar toda a história da morte de seu algoz.
          Passados 51 anos da tragédia, Manuel Luís ainda se emociona. Segura no braço do entrevistador e diz baixinho: "Foi o dia mais feliz da minha vida!".
          Duas observações para finalizar. Interessa pouco enquadrar o cangaço como expressão de criminalidade, embora isto seja perfeitamente possível no plano jurídico. O caráter público, ostensivo e franco da ação do cangaceiro - a partir do próprio traje - nos remete para algo mais profundo, anterior à própria ideia de lei na colônia surgida em 1500. E ligado continuamente, ao longo de cinco séculos, ao que temos considerado o mito primordial brasileiro, expresso na frase dos primeiros reinóis que viram os habitantes do Brasil e que, submetidos à dupla dominação, a do papado romano e a da Coroa portuguesa, encantaram-se em relatar para a Europa terem encontrado homens iguais a si, mas superiores num ponto capital: "eles vivem sem lei nem rei e são felizes".
          E agora uma constatação. Também uma curiosidade. Todo o quadro de punições do cangaço não é senão a transposição para a subcultura cangaceira de procedimentos empregados pelo vaqueiro no dia a dia do trato com o gado. Assim, o "sinal", a individualizar por cortes nas orelhas o gado pequeno, a ovelha ou a cabra, a "miunça" do falar sertanejo. Ou o "ferro", a queimar o pelo do gado graúdo, deixando a marca indelével do dono. Ou, ainda, o "sangramento" do gado miúdo, pela introdução de instrumento perfurante. Ou, por fim, a "capação", aqui relatada, em tudo similar à que se faz com o bode, por exemplo. Quase dono do mundo, vivendo sem lei nem rei como seus ascendentes de cinco séculos, o cangaceiro confirmava com gestos a condição assumida de vaqueiro de gente, sobranceiro e, por vezes, desligado da categoria da morte, a se levar a sério o que cantava a gesta.

FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e autor de Guerreiros do sol violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004. O autor agradece à equipe do posto médico do Catimbau do Buíque, Pernambuco, o apoio que lhe permitiu, quando do levantamento dos fatos aqui narrados, fazer a constatação anatômica da lesão sofrida por Manuel Luís Bezerra.

Fonte: Revista Nossa História - Ano 2  nº 13 - Novembro 2004

Saiba Mais – Bibliografia
CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião: o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
LIMA, Estácio de. O mundo estranho dos cangaceiros. Salvador: Itapoã, 1965.
MELLO, Frederico Pernambucano de. Quem foi Lampião. Recife - Zurich: Stàhli Edition, 1993.


Saiba Mais – Filme
Baile Perfumado
Amigo íntimo do Padre Cícero, o mascate libanês Benjamin Abrahão decide filmar Lampião e todo seu bando, pois acredita que este filme o deixará muito rico. Após alguns contatos iniciais ele conversa diretamente com o famoso cangaceiro e expõe sua ideia, mas os sonhos do mascate são prejudicados pela ditadura do Estado Novo.
Direção: Lírio Ferreira, Paulo Caldas
Ano: 1996
Áudio: Português
Duração: 93 minutos





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