“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sábado, 18 de agosto de 2018

O Brasil do outro lado do espelho

Como Portugal recebeu a notícia da Independência do Brasil? Na primeira metade do século XIX, a reação de deputados e intelectuais portugueses projeta a crise de identidade após a separação oficial.
Fernanda Paula Sousa Maia
      “Amputado da sua continuação além-atlântico (que outra coisa não era então o Brasil)". Na ressaca da Independência do Brasil, era assim, mutilado, que Portugal se percebia, na análise perspicaz do ensaísta lusitano Eduardo Lourenço. Para os liberais portugueses de 1800, na qualidade de intelectuais e de políticos, o desafio era justamente explicar essa perda, além de tentar resolver a insegurança sentida por um país que apenas encontrava justificativa, como nação, nos seus prolongamentos ultramarinos. E não estavam em questão apenas as consequências econômicas da separação, mas a superação da crise de identidade nacional que a Independência gerou em Portugal.
      Para lançar um pouco de luz sobre as relações Portugal-Brasil nesse período, vale a pena enfocar o papel exercido pelos deputados eleitos de Portugal, entre 1826 e 1852: até que ponto a atuação parlamentar esteve na origem do pensamento político e do discurso oficial sobre o Brasil? Embora se encontrassem num momento de definição do seu papel na vida política nacional - com o fim do regime absolutista em Portugal -, pouco a pouco os deputados foram aprendendo a intervir em assuntos até então reservados aos governos e aos chefes supremos do Estado. Ao mesmo tempo, partilhavam suas ideias com uma opinião pública urbana cada vez mais consciente e que seguia atentamente, pelos jornais e nas galerias da Assembleia, os longos debates parlamentares. Conscientes dessa vigilância, e pressionados pelos interesses políticos e econômicos que representavam, os parlamentares acabariam por produzir um discurso compatível com o que podia ser politicamente dito.
      Foi assim que desfilaram na Câmara Legislativa os principais temas sobre as relações Portugal-Brasil, permitindo estabelecer algumas constantes. Como: por exemplo, aspectos políticos e diplomáticos resultantes da aplicação do Tratado de 1825 (ver box), as relações econômicas entre os dois países, e a emigração para o Brasil.
      Considerado em Portugal um "mau tratado", a sua aplicação, no entanto, motivou grande parte dos debates na Assembleia Legislativa portuguesa. E uma das questões mais delicadas viria a ser a aplicação do artigo 9º do tratado, que estabelecia o pagamento, pelo Brasil, de uma indenização de dois milhões de libras esterlinas, para compensar as perdas sofridas por Portugal com a separação. O anúncio do pagamento dessa quantia em um ano, após a ratificação do tratado, fazia prever uma rápida conclusão da pendência.
      O relacionamento comercial entre os dois países também provocou uma participação mais ativa na Assembleia, apesar de os deputados ainda não estarem preparados para ver o Brasil como um parceiro comercial igual a qualquer outro. Como advertiu, logo em 1827, o deputado liberal Mouzinho da Silveira, ao chamar a atenção para as consequências negativas de "chamar nosso ao Brasil e não saímos disto; olha-se para ele como os filhos que, tendo um espelho na mão, espreitam se ainda têm vivo o pai, que expirou". Os políticos continuavam a acreditar que "por mais que se diga, ainda por muito tempo os portugueses cuidarão que têm no Brasil uma segunda pátria".
      Não espanta, por isso, a persistência da Assembleia Legislativa portuguesa, durante quase toda a primeira metade do século XIX, na conclusão do tratado, desejo "muito geral, e parece quase nacional". Essa seria a visão predominante entre os parlamentares, que em várias ocasiões insistiram na necessidade de retomar a ligação comercial com o Brasil nos termos de um benefício que consideravam essencial, a que julgavam ter direito, e que se recusavam a dispensar. Sustentados nos laços familiares e históricos seculares, os deputados pretenderam desenvolver uma argumentação de cunho sentimental que não era mais viável no ambiente pós-Independência. Como os parlamentares Mouzinho da Silveira, Almeida Garrett ou José Estêvão tentaram realçar sem sucesso. Contra todas as evidências, a maioria optou pela cômoda visão de um inevitável entendimento com o Brasil, recorrendo às relações paternais: o Brasil seria o filho pródigo que apenas aguardava o melhor momento para regressar à casa paterna.
      Para reduzir a carga dramática que a perda da colônia tinha provocado, muitos deputados insistiam em ver o Brasil ligado a Portugal através de um acordo comercial baseado em cláusula de favores especiais. Na Câmara dos Deputados, intervenções frequentes sublinhavam a urgência de um tratado com o Brasil como uma das poucas saídas para a persistente crise econômica. Daí a forma cautelosa com que as questões comerciais foram debatidas pela Assembleia, preocupada em não suscitar quaisquer dúvidas que pudessem entravar o entendimento futuro entre os dois países. Por isso, a rejeição do parlamento brasileiro ao Tratado de Comércio de 1836 representou um verdadeiro golpe para Portugal, o que ajuda a entender o pesado e significativo silêncio que sobre ele desceu. Bem revelador, aliás, do atordoamento geral de uma Assembleia em estado de choque.
      O elevado número de emigrantes portugueses com destino ao Brasil também atraiu a atenção dos parlamentares, obrigados então a discutir a migração (ver box) a partir de um enquadramento diferente: o Brasil não mais como uma colônia portuguesa, mas um território estrangeiro. Testemunhas de um fenômeno novo, foi com alguma dificuldade que os deputados perceberam essa forma de mobilidade geográfica com raízes históricas, sobretudo no norte de Portugal.
      Mas o processo de assimilação da Independência estava em curso e só restava aos deputados desenvolver um discurso que concedesse uma nova razão de ser a Portugal. É nesse ambiente que o deputado, liberal e conhecido escritor de Viagens na minha terra, entre muitas obras, João Batista de Almeida Garrett (1799-1854) se destaca, ajudando a veicular a imagem segundo a qual "podemos tirar mais vantagens do comércio com uma nação irmã, mas independente, do que nunca tínhamos tirado de uma colônia sujeita". Assim se entende a razão por que Garrett, na memorável sessão de 31 de março de 1837, tenha enfatizado que "Portugal não existe independente senão pelo mar. (...) Segurem-nos o mar, e basta o patriotismo, e brio português, para nos conservar independentes em terra." As novas propostas liberais emprestariam um sentido diferente à separação do Brasil, retirando toda a dimensão de angústia a que estava associada dentro dos quadros mercantilistas.
      Ao mostrar o mar, Garrett fornecia aos deputados outros fatores de orgulho: os restantes territórios imperiais portugueses e o desenvolvimento da marinha mercante como as derradeiras alternativas à perda do Brasil. Aos poucos, procurava-se restaurar a dignidade nacional, que o futuro iria se encarregar de colocar, predominantemente, na dimensão mítica de um passado glorioso que ainda hoje sobrevive.

Fernanda Paula Sousa Maia é professora de História na Universidade Portucalense, do Porto, em Portugal, e autora da tese O discurso parlamentar português e as relações Portugal-Brasil: a Câmara dos Deputados (1826-1852), publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 2002.

Fonte - Revista Nossa História - Ano I nº 7 - Maio 2004

Saiba Mais – Bibliografia
CERVO, Amado Luiz. O Parlamento brasileiro e as relações exteriores (1826-1889). Brasília: Editora UnB, 1981.
KEITH, Henri H. "The symbiosis of love and hate in luso-brasilian relations, 1822-1922." In: Studia. Lisboa, n. 43-44 (jan.-dez.), 1980.
LOURENÇO, Eduardo. "Crise de identidade ou ressaca imperial?" In: Prelo. Lisboa, n. 1 (out.-dez.), 1983.

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