Janaina
Mello
Pelas formas tradicionais de combate
era difícil capturá-los. Conheciam como ninguém a região. Os ataques de
surpresa, seguidos de recuos rápidos para dentro das matas, com a utilização
de "trilhas quase intransitáveis", deixavam os oponentes desnorteados
e costumavam desmantelar a repressão governista. Na correspondência entre o
presidente da província de Pernambuco, Manuel Zeferino dos Santos (14/11/1832 -
27/9/1833), e o ministro do Império Nicolau Pereira de Campos Vergueiro
(13/9/1832 - 23/5/1833), constam, de fato, muitas queixas quanto aos insucessos
da repressão aos cabanos de Alagoas. Pernambuco, por seu turno, estaria
arcando com o ônus do combate nas duas províncias sem possuir homens suficientes
nas tropas de linha, já que as forças militares eram compostas por civis
recrutados compulsoriamente. Estes desertavam do campo de batalha em grande
quantidade, devido ao atraso no soldo e à preocupação com as privações por que
passavam suas famílias por causa de sua ausência no trabalho agrícola.
Havia na época muita exaltação nas
cidades. Disputavam espaço na cena urbana os moderados (plantadores e
comerciantes defensores do equilíbrio, do Estado forte e centralizado, sem
incorporação de populares), os exaltados (proprietários rurais,
militares, padres, funcionários públicos e médicos defensores da soberania
popular, do federalismo, valorizando os pobres) e os restauradores (que
pregavam a centralização absolutista, com a volta do tradicionalismo português
e a recondução de d. Pedro I ao trono). Mas, para os políticos da Corte, o
campo é que era um espaço instável e preocupante.
Num relatório de 1841, quando aliás
já tinha terminado a Cabanada, o ministro da Justiça Paulino José Soares de
Souza, em nome do Partido Conservador, ainda alertava seus pares sobre como
podiam ser perigosas as ideias "das gentes do interior" não
submetidas às leis do governo. Outro político, Justiniano José da Rocha
(1812-1862), em artigos publicados no jornal O Brasil, ao se referir aos
pobres do país, ressaltava o "baixo nível de civilização dessa
gente", e mais a ausência de crença moral, de fé religiosa e de amor ao
trabalho.
A insurreição cabana, com sua
diversidade étnica, estava associada a demandas sociais, tais como o direito à
terra, à liberdade, à justiça e à prática religiosa almejadas por negros,
indígenas e trabalhadores livres. Mas os cabanos não eram todos pobres. A
primeira fase da revolta foi capitaneada por proprietários, entre eles
Domingos Lourenço Torres Galindo e Manuel Afonso de Melo. Alguns haviam
participado da sedição militar de abril do mesmo ano, conhecida como Abrilada,
defendendo a restauração de d. Pedro I, em oposição ao governo liberal moderado
instalado nas províncias e na Corte. Mas, acostumados ao luxo e a privilégios,
não estavam preparados para a vida nas matas. Enfrentando de inimigos armados a
insetos, alimentando-se de frutos silvestres e larvas, tendo seu vestuário
esgarçado por espinhos e galhos, foram facilmente capturados ou mortos em
combate. Outros, em desespero, se renderam às forças governistas.
Índios e negros estavam mais
habituados aos rigores da natureza. Em 1832, a população indígena ingressou na
guerra cabana, atemorizando os senhores de engenho. Eram eles tapuias-kariris,
originários do Terço Paulista (planalto do Piratininga), cujos antepassados
tinham sido trazidos para a região, no século XVII, por Domingos Jorge Velho. A
partir de 1833, o conflito se intensificou com a presença de escravos fugidos
dos engenhos de açúcar ou conduzidos à guerra pelos interesses políticos dos
próprios senhores.
Em 1834, os negros
"papa-méis" (na fala regional, escravos fugitivos que se alimentavam
de mel silvestre nas matas) já eram maioria entre os cabanos. As epidemias e a
escassez de alimentos, resultante da destruição dos roçados de milho pelas
tropas governistas, reduziram o número de índios e lavradores nas fileiras
revoltosas. No governo de Manuel de Carvalho Pais de Andrade (17/1/1834
-11/4/1835), em Pernambuco, as propostas de anistia, com oferta de roupas,
alimentos, remédios, sementes e instrumentos para o cultivo da terra, também
esvaziavam o movimento.
Os negros estavam excluídos dessa
negociação. A eles - que buscavam a liberdade - só restava retornar à
escravidão depois da guerra, e por isso não se renderam. Em 1834, quando os
combates arrefeceram com a deserção dos "livres", os negros fugidos
mantiveram a resistência nas matas. A "guarda negra" -como se refere
aos seus homens Vicente Ferreira de Paula, líder dos cabanos a partir de 1832,
em cartas publicadas no Diário da Administração Pública de Pernambuco - é objeto de grande preocupação para as
autoridades provinciais.
Ao atacar os engenhos para libertar
escravos, os últimos cabanos interferiam na lógica da produção capitalista,
desmoralizando a disciplina necessária ao domínio senhorial sobre terras e
homens e a própria economia açucareira da região fronteiriça. Os negros papa-méis
preferiam a morte em combate, preservando sua liberdade até o último instante.
Constituíram, no Riacho da Mata, entre o sul de Pernambuco e o norte de
Alagoas, um espaço para sobrevivência de sua economia de coleta, roçado e usos
e costumes bem diferenciados do modo de vida do branco, como o despique (troca
de mulheres) na reprodução do grupo (a criação de uma comunidade de filhos,
onde a mulher casada se relaciona com outros homens. Viúvas participam,
estabelecendo uma rede de ajuda mútua, cuidados e trabalhos domésticos entre
os envolvidos).
A Cabanada adquiriu dimensão de
gravidade nacional justamente por tocar em pontos decisivos para a economia
agroexportadora: a posse de terras por homens livres e a liberdade dos
escravos.
Se, no final, as lutas entre liberais,
moderados e exaltados não trouxeram melhorias aos pobres do campo, a guerra
cabana representou pelo menos uma interrupção do direito senhorial, em processo
efetuado "de baixo para cima". Os saques e incêndios contra os
engenhos significaram não apenas a subversão da ordem dominante, mas a
apropriação, por inversão e destruição, do patrimônio senhorial.
Por fim, vieram a pacificação
intermediada pelo bispo de Olinda, d. João Marques Perdigão, a conquista das
matas pelas tropas governistas, as prisões, a repressão aos quilombos de
Pernambuco e aos proprietários cúmplices dos cabanos. Os índios foram
reconduzidos aos aldeamentos. A abertura de estradas no interior reduziu o
espaço de conflitos. Os remanescentes da revolta seriam utilizados em obras
públicas ou recrutados à força para dar combate à Revolução Farroupilha, no
sul do país. Só em 1850, 15 anos depois de terminado o conflito, o líder
Vicente Ferreira de Paula foi aprisionado numa emboscada. Mas a memória cabana
permaneceria ainda por muito tempo a assustar, como um fantasma, os grandes
latifundiários da região.
Janaina
Mello é
professora assistente de História do Brasil na Universidade Estadual de Alagoas
(FUNESA/ESPI) e doutoranda em História Social na Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
Fonte:
Revista Nossa História - Ano 4 nº 37 - Nov. 2006
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