“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 2 de junho de 2019

Cabanada, o perigo vem das matas

Durante uma guerra que durou três anos, rebeldes "cabanos", lutando por terra e liberdade, aterrorizaram os senhores de engenho em Pernambuco e Alagoas.
Janaina Mello
          O fato de os rebeldes morarem em habi­tações rústicas e muito pobres deu no­me - Cabanada - ao movimento que convulsionou o sul de Pernambuco e o norte de Alagoas entre 1832 e 1835. O nome pegou rápido. Se no princípio os sublevados eram chama­dos de "facínoras" nas cartas trocadas por autorida­des militares, a partir de 1833 eles já são denomina­dos de "cabanos" - o que não deixa de ser um sinal de reconhecimento. Mas, afinal, quem eram os cabanos? Eram índios aldeados, brancos e mestiços lavradores, moradores nas periferias dos engenhos, além de ne­gros fugidos das plantações, organizados em mo­cambos. Eles entendiam de luta. Nos seus embates com as forças militares provinciais, usavam táticas de guerrilha, assimiladas pela população pobre - lições passadas de geração a geração - ainda nos tempos das invasões holandesas, no século XVII.
          Pelas formas tradicionais de combate era difícil capturá-los. Conheciam como ninguém a região. Os ataques de surpresa, seguidos de recuos rápidos pa­ra dentro das matas, com a utilização de "trilhas quase intransitáveis", deixavam os oponentes des­norteados e costumavam desmantelar a repressão governista. Na correspondência entre o presidente da província de Pernambuco, Manuel Zeferino dos Santos (14/11/1832 - 27/9/1833), e o ministro do Império Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (13/9/1832 - 23/5/1833), constam, de fato, muitas queixas quanto aos insucessos da repressão aos ca­banos de Alagoas. Pernambuco, por seu turno, esta­ria arcando com o ônus do combate nas duas províncias sem possuir homens suficientes nas tropas de linha, já que as forças militares eram compostas por civis recrutados compulsoriamente. Estes deserta­vam do campo de batalha em grande quantidade, devido ao atraso no soldo e à preocupação com as privações por que passavam suas famílias por causa de sua ausência no trabalho agrícola.
          Havia na época muita exaltação nas cidades. Dis­putavam espaço na cena urbana os moderados (plan­tadores e comerciantes defensores do equilíbrio, do Estado forte e centralizado, sem incorporação de populares), os exaltados (proprietários rurais, militares, padres, funcionários públicos e médicos defensores da soberania popular, do federalismo, valorizando os pobres) e os restauradores (que pregavam a centraliza­ção absolutista, com a volta do tradicionalismo por­tuguês e a recondução de d. Pedro I ao trono). Mas, para os políticos da Corte, o campo é que era um es­paço instável e preocupante.
          Num relatório de 1841, quando aliás já tinha terminado a Cabanada, o ministro da Justiça Paulino José Soares de Souza, em nome do Partido Conservador, ainda alertava seus pa­res sobre como podiam ser perigosas as ideias "das gentes do interior" não submetidas às leis do governo. Outro político, Justiniano José da Rocha (1812-1862), em artigos publicados no jornal O Brasil, ao se referir aos pobres do país, ressaltava o "baixo ní­vel de civilização dessa gente", e mais a ausência de crença moral, de fé religiosa e de amor ao trabalho.
          A insurreição cabana, com sua diversidade étnica, estava associada a demandas sociais, tais como o direi­to à terra, à liberdade, à justiça e à prática religiosa al­mejadas por negros, indígenas e trabalhadores livres. Mas os cabanos não eram todos pobres. A primeira fa­se da revolta foi capitaneada por proprietários, entre eles Domingos Lourenço Torres Galindo e Manuel Afonso de Melo. Alguns haviam participado da sedi­ção militar de abril do mesmo ano, conhecida como Abrilada, defendendo a restauração de d. Pedro I, em oposição ao governo liberal moderado instalado nas províncias e na Corte. Mas, acostumados ao luxo e a privilégios, não estavam preparados para a vida nas matas. Enfrentando de inimigos armados a insetos, alimentando-se de frutos silvestres e larvas, tendo seu vestuário esgarçado por espinhos e galhos, foram facil­mente capturados ou mortos em combate. Outros, em desespero, se renderam às forças governistas.
          Índios e negros estavam mais habituados aos rigores da na­tureza. Em 1832, a população indígena ingressou na guerra cabana, atemori­zando os senhores de en­genho. Eram eles tapuias-kariris, originá­rios do Terço Paulista (planalto do Piratininga), cujos antepassados tinham sido trazidos para a região, no século XVII, por Domingos Jorge Velho. A partir de 1833, o conflito se intensificou com a presença de escravos fugidos dos engenhos de açú­car ou conduzidos à guerra pelos interesses po­líticos dos próprios senhores.
          Em 1834, os negros "papa-méis" (na fala regional, escravos fugitivos que se alimentavam de mel silvestre nas matas) já eram maioria entre os cabanos. As epidemias e a escassez de alimentos, resultante da destruição dos roçados de milho pelas tropas go­vernistas, reduziram o número de ín­dios e lavradores nas fileiras revolto­sas. No governo de Manuel de Carva­lho Pais de Andrade (17/1/1834 -11/4/1835), em Pernambuco, as pro­postas de anistia, com oferta de roupas, alimentos, re­médios, sementes e instrumentos para o cultivo da terra, também esvaziavam o movimento.
          Os negros estavam excluídos dessa negociação. A eles - que buscavam a liberdade - só restava retornar à escravidão depois da guerra, e por isso não se ren­deram. Em 1834, quando os combates arrefeceram com a deserção dos "livres", os negros fugidos man­tiveram a resistência nas matas. A "guarda negra" -como se refere aos seus homens Vicente Ferreira de Paula, líder dos cabanos a partir de 1832, em cartas publicadas no Diário da Administração Pública de Pernambuco - é objeto de grande preocupação para as autoridades provinciais.
          Ao atacar os engenhos para libertar escravos, os úl­timos cabanos interferiam na lógica da produção capitalista, desmoralizando a disciplina necessária ao domínio senhorial sobre terras e homens e a própria economia açucareira da região fronteiriça. Os negros papa-méis preferiam a morte em combate, preservando sua liberdade até o último instante. Constituíram, no Riacho da Mata, entre o sul de Pernambuco e o norte de Alagoas, um espaço para sobrevivência de sua economia de coleta, roçado e usos e costumes bem di­ferenciados do modo de vida do branco, como o des­pique (troca de mulheres) na reprodução do grupo (a criação de uma comunidade de filhos, onde a mulher casada se relaciona com outros homens. Viúvas parti­cipam, estabelecendo uma rede de ajuda mútua, cui­dados e trabalhos domésticos entre os envolvidos).
          A Cabanada adquiriu dimensão de gravidade na­cional justamente por tocar em pontos decisivos pa­ra a economia agroexportadora: a posse de terras por homens livres e a liberdade dos escravos.
          Se, no final, as lutas entre liberais, moderados e exaltados não trouxeram melhorias aos pobres do campo, a guerra cabana representou pelo menos uma interrupção do direito senhorial, em processo efetuado "de baixo para cima". Os saques e incêndios contra os engenhos significaram não apenas a sub­versão da ordem dominante, mas a apropriação, por inversão e destruição, do patrimônio senhorial.
          Por fim, vieram a pacificação intermediada pelo bispo de Olinda, d. João Marques Perdigão, a con­quista das matas pelas tropas governistas, as prisões, a repressão aos quilombos de Pernambuco e aos proprietários cúmplices dos cabanos. Os índios fo­ram reconduzidos aos aldeamentos. A abertura de estradas no interior reduziu o espaço de conflitos. Os remanescentes da revolta seriam utilizados em obras públicas ou recrutados à força para dar com­bate à Revolução Farroupilha, no sul do país. Só em 1850, 15 anos depois de terminado o conflito, o líder Vicente Ferreira de Paula foi aprisionado numa em­boscada. Mas a memória cabana permaneceria ain­da por muito tempo a assustar, como um fantasma, os grandes latifundiários da região.

Janaina Mello é professora assistente de História do Brasil na Universidade Estadual de Alagoas (FUNESA/ESPI) e doutoranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Fonte: Revista Nossa História - Ano 4 nº 37 - Nov. 2006

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