“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sábado, 13 de junho de 2020

Os outros somos nós

Cento e cinquenta anos de imigração resultaram em um país construído por braços e mentes de diversas partes do mundo
LENÁ MEDEIROS DE MENEZES
               Imigração é mais do que o ato de deslocamento. É um processo que marca, de forma mais ou menos definitiva, a vida e a trajetória de seus protagonistas. Durante um século e meio, a chegada e o estabelecimento de estrangeiros no Brasil estiveram no centro da pauta política nacional. A história do país foi escrita com os imigrantes. Às vésperas da abolição da escravidão (1888) e do advento da República (1889), a iniciativa oficial de incentivar a imigração para o Brasil foi anunciada com base em objetivos bem variados: "como fator ativo (...) do povoamento do nosso vastíssimo território, da constituição da pequena propriedade, do desenvolvimento das indústrias de toda a natureza, como agente eficaz, enfim, do progresso social em todas as suas esferas", nas palavras do ministro da Agricultura, Rodrigo Augusto da Silva, no ano de 1887. Ao pontuar esses ganhos múltiplos que poderiam resultar da imigração, o ministro pensava, é claro, no imigrante branco e europeu.
               Sob influência do evolucionismo e do racismo, uma questão parecia indiscutível na segunda metade do século XIX: o país necessitava abrir-se ao progresso e à civilização através da atração de um trabalhador "superior" e "morigerado", isto é, de bons costumes. Ao longo do Império e da República, os processos de imigração e colonização criaram um novo Brasil, com o aporte trazido por novas etnias, línguas e manifestações culturais. Aos comerciantes ingleses, franceses e alemães e aos suíços que constituíram as primeiras levas, juntaram-se indivíduos provenientes de aldeias de países pobres de base agrícola, em especial, portugueses (transformados de colonos em imigrantes no pós-independência), italianos e espanhóis. Ao longo do tempo, estas seriam as três nacionalidades de maior projeção no país. Na virada para o século XX, chegariam levas de imigrantes do Próximo e do Extremo Oriente.
               Quanto às experiências de colonização e de imigração para o campo, elas foram muitas, incluindo-se desde as atípicas, como a dos falanstérios - comunidades autossuficientes idealizadas por Charles Fourier - à parceria e à imigração subsidiada. Destaque-se também a imigração para a cidade, onde os colonos se engajavam na construção de vias férreas e obras públicas, além da atuação no comércio e na indústria.
               O estudo dos processos migratórios implica, necessariamente, a consideração das circunstâncias e motivações existentes no "lá" e no "cá". Em outras palavras, nos países de partida e de chegada. Milhares de indivíduos abandonaram o conhecido rumo ao desconhecido, saídos de uma Europa onde o avanço do capitalismo no campo, problemas na estrutura fundiária e crises agrícolas propiciaram grandes deslocamentos. Nas colônias criadas pelo governo imperial no interior do país, o processo de assentamento tornou-se uma verdadeira epopeia. Fome, frio, os perigos da floresta e os embates travados com o natural da terra - apesar da difusão de um discurso que mencionava a ocupação de "espaços vazios" - tornaram-se desafios a serem vencidos. Isso explica por que muitos optaram por protagonizar novos deslocamentos.
               Em 150 anos de história da imigração no Brasil, determinados momentos tornaram-se decisivos. Dentre eles a assinatura dos tratados de amizade e comércio (1810), pelo príncipe regente D.João, que inaugurou o processo de atração de comerciantes ingleses, alemães e, após 1816, franceses, principalmente para a cidade do Rio de Janeiro, então sede da monarquia. Oito anos depois, a fundação da colônia suíça de Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro, marcou o início do processo de colonização. Com a Independência (1822), a imigração ganhou novos contornos, incluindo-se o fato de o português que se deslocava ter se transformado também em imigrante. Se inicialmente essa mudança era política, na segunda metade do século veio a assumir uma nova dimensão. Mudou a geografia dos deslocamentos, com a presença crescente de trabalhadores pobres vindos das aldeias do norte de Portugal, de costumes e tradições minhotas e transmontanas.
          O fim do tráfico de escravos (1850/1854) e a adoção do processo de abolição gradual da escravidão, ao mesmo tempo em que se expandia a lavoura do café, trouxeram à tona uma questão crucial: a escassez de braços no campo. Foi em busca de uma solução que se reuniu o Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, no ano de 1871, no qual se discutiu a possibilidade da introdução dos chins e dos coolies (trabalhadores oriundos da Ásia, em especial da China e da índia) como elementos de transição entre o escravo negro e o trabalhador europeu. A proposta acabou sepultada, mas desde a década de 1840 vinham sendo adotadas estratégias de recrutamento, como o sistema de parceria proposto pelo senador e fazendeiro de café Nicolau de Campos Vergueiro, e após 1880, a adoção da imigração subsidiada, que tantas críticas sofreu na Europa, chegando a ser proibida em países como a Itália devido às formas inescrupulosas de recrutamento.                        Proclamada a República, o Brasil inseriu-se na "terceira onda migratória" dos movimentos internacionais, responsável pelos deslocamentos de massa que marcaram a fase áurea do imperialismo. Conhecida no Brasil como a "Grande Imigração" (1890-1914), essa fase registrou os maiores contingentes de entrada não só de imigrantes que tradicionalmente procuravam o país (portugueses, italianos e espanhóis), mas também de japoneses e sírio-libaneses.
               A chegada de Vargas ao poder consagrou políticas restritivas, com a adoção do regime de cotas de entrada e uma visão eugênica (caminho para uma suposta melhoria da "raça"), esta última explícita no decreto de criação do Conselho de Imigração e Colonização, em 1938. O órgão deveria se dedicar ao estudo dos "problemas relativos à seleção imigratória, à antropologia étnica e social, à biologia racial e à eugenia", propondo ao governo "a proibição total da imigração e da entrada de imigrantes, em razão da sua procedência". A preocupação com o perfil da mão de obra para a produção ficava evidente na decisão de transferir a competência das questões imigratórias para o Ministério do Trabalho.
               A opção pelo uso do conceito de "estrangeiro" em substituição ao de "imigrante" passou a projetar a ideia da existência de um "outro" que devia ser alvo de vigilância e controle. Essa discriminação traduziu-se na adoção de decretos que estabeleceram políticas de seleção a priori (proibição do desembarque de indivíduos discriminados em lei) e a posteriori, com o fim de combater os "indesejáveis": aqueles que pudessem ser considerados "perigosos aos interesses da República" ou "nocivos à sociedade". Dentre eles, anarquistas, mas também vadios e criminosos em geral.
               As políticas restritivas tiveram fim no pós-Segunda Guerra, período que se caracterizou por um novo impulso e novos contornos para o processo migratório. O Brasil voltou a ser lugar de chegada para indivíduos dispostos a construir uma nova vida. Nas décadas de 1950 e 1960, contingentes significativos deslocaram-se da Europa para o Brasil, incluindo refugiados de guerra e indivíduos que necessitavam de reassentamento, em especial da Europa Centro-oriental.
               Uma rápida análise dos censos realizados entre 1871 e 1960 dá a dimensão da grande variedade de povos que buscaram o Brasil como terra de realização de seus desejos e sonhos. Além das nacionalidades já citadas, registrou-se a chegada de belgas, dinamarqueses, gregos, holandeses, austríacos, húngaros, russos, chineses, japoneses, turcos, canadenses, norte-americanos, africanos (nesse caso, a indiferenciação é significativa), argentinos, chilenos, peruanos, bolivianos, mexicanos, paraguaios e outros. É importante notar a ausência de registros de nacionalidades silenciadas pelo peso da dominação de outros povos, caso dos poloneses. Muitas delas só vieram a ganhar visibilidade nos registros oficiais no século XX, após a redefinição do mapa europeu em 1919/1920 e, principalmente, depois do fim da Segunda Guerra Mundial.
               No amálgama cultural criado pelo contato entre o "eu" e um "outro" muito diferenciado, novas ideias e visões de mundo foram adotadas e costumes e tradições ganharam outros significados em terras brasileiras, tornando-se expressões de uma cultura nacional de muitas raízes.

LENA MEDEIROS DE MENEZES E PROFESSORA TITULAR DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ) E AUTORA DO LIVRO OS INDESEJÁVEIS (EDUERJ, 1996).

Fonte – Revista de História da Biblioteca Nacional - Ano X nº 111 - Dezembro 2014

Saiba mais - Bibliografia
ARRUDA, José Jobson; FERLINI, Vera Lúcia Amaral et al. (orgs.). De Colonos a Imigrantes. l(E)migração portuguesa para o Brasil. São Paulo: Alameda, 2013.
MATOS, Maria Izilda de et al. Italianos no Brasil: partidas, chegadas e heranças. Rio de Janeiro: Labimi-Uerj, 2013.
SILVA, Érica Sarmiento da. O outro Rio. A Emigración galega a Rio de Xaneiro. Santa Comba: TresCtres Editores, 2006.
VIDAL, Laurent & DE LUCA, Tânia Regina (orgs.). Franceses no Brasil, séculos XIX e XX. São Paulo: Unesp, 2010

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