“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

terça-feira, 23 de junho de 2020

Alemães para toda obra

De D. João VI a projetos privados de produção agrícola, imigrantes germânicos fizeram história no Brasil a partir do século XIX
RODRIGO TRESPACH
               Ainda que houvesse no país um grande número de viajantes, cientistas e artistas, e o Rio de Janeiro contasse com mais de vinte empresas alemãs operando na cidade, no começo do século XIX não havia colônias germânicas no país. A presença alemã estava limitada ao comércio em núcleos urbanos, sem influência do governo português. E apesar de o Conselho Ultramarino, em Lisboa, ter visto a necessidade de instalação de colonos não lusos no Brasil, nenhuma tentativa foi realizada até a chegada do príncipe D. João ao Rio de Janeiro, em 1808. 
              Pelo Tratado de Aliança e Amizade, assinado logo depois com a Inglaterra, D. João havia se comprometido com a extinção gradual do tráfico negreiro até a sua proibição. O perigo de uma revolta de escravos, como a que havia libertado o Haiti de mãos francesas em 1791, era visto pela população branca e livre como algo iminente. Um pouco mais tarde, em carta ao imperador austríaco, sogro do príncipe D. Pedro (futuro D. Pedro I), o rei português expôs seu objetivo quanto ao projeto de mudar a fonte da mão de obra no Brasil: decidira "substituir por colonos brancos os escravos negros". Do medo das revoltas escravas, da exigência externa pelo fim da escravidão e da necessidade de criação do minifúndio e da produção artesanal surgiu a política de imigração e colonização com alemães.
               Em 16 de maio de 1818, D. João VI estabeleceu as condições para a vinda de famílias suíças para o Brasil. Nos dois anos seguintes, por intermédio de Sébastien-Nicolas Gachet, mais de 2 mil suíços, alguns de língua alemã, foram trazidos para a região serrana do Rio de Janeiro. Ali foi fundada a colônia de Nova Friburgo, a primeira tentativa oficial de criação de uma colônia agrícola com europeus não portugueses.
               Mas foi na Bahia que se formaram as primeiras colônias com imigrantes alemães. Embora autorizados pelo governo português, eram projetos privados, idealizados por naturalistas alemães. Em 1816, Peter Weyll e seu sócio Adolf Saueracker estabeleceram a colônia São Jorge dos Ilhéus, à margem esquerda do rio Cachoeira, nas proximidades de Ilhéus. No ano seguinte Georg Wilhelm Freyreiss fundou junto com um pequeno grupo de cientistas, pesquisadores e empresários alemães, uma pequena "colônia alemã e suíça", próximo à Vila Viçosa, hoje Nova Viçosa, a 900 quilómetros ao sul de Salvador, a qual batizou de Leopoldina em homenagem à futura imperatriz brasileira, esposa de D. Pedro I. Mesmo que tenham atingido algum sucesso, essas colônias não conseguiram assegurar o apoio de investidores nem do governo. Na década de 1860 não eram mais consideradas colônias, tendo os imigrantes se tornado fazendeiros e abandonado o sistema associativista original.
               Em 1822, a iniciativa foi transferida para o Império e ninguém menos do que José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), que estava à frente do Ministério do Reino e dos Negócios Estrangeiros, articulou a vinda de colonos para substituir a mão de obra escrava e dos soldados que garantiriam - pela força das armas, se necessário - a independência do Brasil. Em agosto daquele ano, José Bonifácio entregou instruções secretas a Georg Anton von Schaeffer - alemão amigo da austríaca Leopoldina, imperatriz do Brasil, que fora nomeado agente brasileiro na Alemanha - e o enviou a Europa. A missão de von Schaeffer era visitar as principais cortes alemãs angariando apoio à causa brasileira, e encaminhar para o Brasil, o mais breve possível, colonos e principalmente soldados para a guerra da Independência. Schaeffer embarcou para a Europa uma semana antes do Grito do Ipiranga.
               A proposta levada aos alemães pelo agente brasileiro era atraente. Para aqueles que quisessem fugir das guerras, do excedente populacional e da miséria na Europa, von Schaeffer oferecia 77 hectares de terra, isenção de impostos por dez anos, animais de criação e sementes, além de outros subsídios. Eram números fora dos padrões alemães. Na Alemanha, somente entre 10% e 20% da população possuía propriedades que excediam dez hectares. "Aqui se recebe um pedaço de terra cujo tamanho na Alemanha corresponderia a um condado", escreveu à família, em 1827, um colono estabelecido no Brasil. A passagem dos soldados seria paga pelo governo, desde que servissem ao Exército durante quatro anos. Foram criados quatro batalhões de estrangeiros com alemães: dois de Granadeiros (para a guarda da Corte) e dois de Caçadores (lutariam na Guerra da Cisplatina e na Confederação do Equador).
               Em janeiro de 1824, o navio Argus ancorou no porto do Rio de Janeiro com pouco mais de 280 pessoas. Era o primeiro navio com alemães "a serviço do Império". Os soldados permaneceram na capital para servir no Exército, enquanto os colonos foram enviados para a colônia suíça de Nova Friburgo, como um destino provisório. A região escolhida para receber as levas posteriores estava localizada no Vale do Rio dos Sinos, próximo a Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Ali existia uma fazenda de escravos chamada Feitoria do Linho Cânhamo, responsável pela produção de cordas para a Marinha. Parte da estrutura existente foi aproveitada para receber os primeiros colonos - o que ocorreu muito provavelmente no dia 23 de julho e não no dia 25, data consagrada em 1924, nas comemorações do Centenário da Imigração Alemã.
                A ideia de imigração e colonização no Brasil passava pela necessidade de criação de uma nova classe média, branca e pequena proprietária, que desenvolvesse a policultura agrícola e o artesanato, povoasse áreas de fronteira e fosse capaz de abastecer cidades importantes. São Leopoldo cumpriu muito bem esse papel, muito mais do que Nova Friburgo ou qualquer outra tentativa anterior. Daí que, mesmo não sendo o projeto pioneiro, ele é considerado o berço da colonização alemã no Brasil.
               O trabalho de agenciamento de alemães perdurou mesmo depois da saída de José Bonifácio do ministério. Mas com a forte oposição política à imigração, principalmente a de soldados, von Schaeffer precisou retornar ao Brasil em 1828. Naquele ano, uma rebelião de soldados alemães e irlandeses no Rio de Janeiro pôs fim ao apoio do governo ao projeto iniciado por Bonifácio. No ano seguinte, iniciou-se a desmobilização dos soldados que haviam servido no Exército Imperial, e a pressão aumentou até que D. Pedro I assinasse, em 15 de dezembro de 1830, a Lei do Orçamento, cortando os gastos com a imigração de mercenários para o Exército e com colonos e artesãos.
               Com base no projeto iniciado em 1822, após a criação de São Leopoldo (1824) e de Três Forquilhas, também no Rio Grande do Sul (1826), surgiram ainda as colônias Santo Amaro e Itapecerica, em São Paulo (1827 e 1828), São Pedro de Alcântara, em Santa Catarina (1829), e Rio Negro, no Paraná (1829). Até 1830, mais de 8 mil alemães entraram no Brasil. Metade deles era protestante (luteranos), fato novo em um país historicamente católico.
               Em 1834, uma alteração na Constituição permitiu que a iniciativa e o estabelecimento de colônias ficassem a cargo dos governos provinciais, e não mais do governo imperial. Se no Primeiro Reinado (1822-1831) a imigração estava associada a critérios geopolíticos, após essa data o critério passou a ser quase exclusivamente econômico, por interesse tanto das províncias quanto de particulares. Após o fim da Revolução Farroupilha, no Sul, o país retomou a iniciativa de imigração e colonização. Entre as mais importantes estavam: Petrópolis, no Rio de Janeiro (1845); Santa Isabel (1847) e Leopoldina (1859), no Espírito Santo; Blumenau (1850) e Dona Francisca (1851), em Santa Catarina; e Santa Cruz do Sul (1849), Santo Ângelo (1857) e São Lourenço do Sul (1858), no Rio Grande do Sul. Somente no Rio Grande do Sul foram criadas 140 colônias até 1922.
               Em 1847, o senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro conseguiu um empréstimo do governo para financiar a vinda de algumas famílias alemãs para trabalharem em suas lavouras de café na fazenda Ibicaba, em Limeira, São Paulo. Plantavam, cultivavam e colhiam em um "sistema de parceria". Baseava-se em um contrato que destinava à família do colono certo número de pés de café para o cultivo e uma determinada área de exploração para subsistência. A remuneração era proporcional ao montante de gêneros produzido pelo colono, descontadas as despesas de transporte, adiantamentos e recursos para a instalação inicial. Política não muito bem vista pelos colonos - considerada uma espécie de escravidão - mas que fez muito sucesso entre os fazendeiros.
               Os erros cometidos em São Paulo, que resultaram na revolta liderada pelo colono Thomas Davatz em 1858, fizeram com que antiescravistas, como o cônsul-geral da Prússia no Brasil, J. Jacob Sturz, promovessem maciça campanha antibrasileira na Alemanha. O governo prussiano aprovou, inclusive, um regulamento que proibia a propaganda e o aliciamento de colonos para o Brasil. Mais tarde estendido a toda a Alemanha, o regulamento von der Heydt só seria revogado em 1890.
               Possivelmente, o mais bem-sucedido empreendimento de colonização com alemães tenha sido mesmo Blumenau, em Santa Catarina, fruto do trabalho do farmacêutico Hermann Blumenau (1819-1899). Em 1848, ele conseguiu junto ao governo de Santa Catarina a concessão de terras no Vale do Itajaí, dando início ao projeto dois anos depois. A ideia inicial de um estabelecimento agrário em grande escala deu lugar à pequena propriedade e à criação de um centro urbano, complemento indispensável econômica, comercial e culturalmente à colônia.
               Apesar das dificuldades e das diferentes políticas imigratórias usadas no país, os alemães continuaram vindo. De diversas formas, até o início da década de 1970 haviam chegado ao Brasil mais de 255 mil imigrantes provenientes de territórios que formam a Alemanha moderna. Além da contribuição para o desenvolvimento da agricultura e da produção industrial, o imigrante alemão teve um importante papel no processo de diversificação cultural do país, especialmente na língua, na religião, na gastronomia e na arquitetura.

RODRIGO TRESPACH É COLABORADOR DO INSTITUTO DE HISTÓRIA REGIONAL, DA JOHANNES GUTENBERG UNIVERSIDADE DE MAINZ (ALEMANHA) E AUTOR DE O LAVRADOR E O SAPATEIRO (EDIPUCRS, 2013).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 9 - nº 102 – março 2014

Saiba Mais: Bibliografia
BOLLE, Willi & KUPFER, Eckhard E. Cinco séculos de relações brasileiras e alemãs. Santos: Editora Brasileira de Arte e Cultura, 2013.
CUNHA, Jorge Luiz da (org.). Cultura Alemã 180 anos. Porto Alegre: Nova Prova, 2004.

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