Ocorrido no governo Figueiredo, em 1981, e até hoje impune, o atentado do Riocentro foi um dos episódios mais conturbados, contraditórios e vergonhosos da história militar do país.
Maria Celina D'Araujo
O atentado do Riocentro, ocorrido em 30 de abril de 1981, tornou-se a mais conhecida ação terrorista da direita armada, durante a ditadura militar que vigorou no país de 1964 a 1985. Marcado do começo ao fim pela impunidade, o episódio encerrou o ciclo de atentados que inquietaram o Brasil, numa demonstração de força e falta de escrúpulos dos setores que se opunham à liberalização do regime militar e à desmontagem da rede autônoma de órgãos de repressão que se instalara dentro das Forças Armadas no início dos anos 70.
Quando assumiu a Presidência da República, em 15 de março de 1974, o general Ernesto Geisel trouxe na sua agenda a determinação de iniciar um processo de transição democrática, que à época se chamou "abertura". Geisel sucedia ao general Emílio Garrastazu Médici, que governou o país no período mais duro de repressão à oposição, armada ou não. Foram os anos da "guerra suja", expressão que os militares cunharam para justificar os métodos violentos e arbitrários pelos quais combateram os ideais e as ações de brasileiros que discordavam do governo e que ousaram enfrentá-lo.
Nas palavras do novo presidente,
a abertura deveria ser "lenta, gradual e segura", ou seja, um
processo de transição direcionada para a retomada da normalidade democrática
sem que os militares perdessem o controle do ritmo e da direção da mudança.
Iniciava-se assim uma transição pelo alto, isto é, controlada pela elite
militar que não estava disposta a ser cobrada pelos "excessos" do
passado. Haveria redemocratização, mas não haveria revanchismo. Os militares
não iriam para os bancos dos réus, como aconteceu anos mais tarde na Argentina.
Mesmo com esses cuidados para
preservar a imagem da ditadura e ignorar seus crimes, setores das Forças
Armadas mais identificados com o sistema repressivo não aceitaram a ideia de
mudança. Começou então uma nova etapa do conflito dentro do próprio regime -
opondo setores da chamada linha dura ao governo - e iniciava-se uma novidade da
ditadura: o terrorismo de direita contra alvos indiscriminados. Atentados
contra pessoas e instituições, bombas colocadas em bancas de jornais e outras
ações do tipo eram levadas a cabo com o intuito de desestabilizar o governo,
intimidar a oposição democrática e, não poucas vezes, atribuir esses crimes a
militantes de esquerda.
Para conter a falta de
disciplina e a crise de autoridade dentro da instituição militar, Geisel
demitiu, em dezembro de 1978, o seu ministro do Exército, general Silvio Frota,
expoente da linha dura e anticomunista radical que acobertava, direta ou
indiretamente, as iniciativas discricionárias da direita. Mas mesmo assim os
atentados continuaram. O último deles foi o do Riocentro, que manchou de forma
indelével a instituição militar. Até o presente, paira no ar a desconfortável
certeza de que a justiça não foi feita em relação aos agentes militares que,
agindo clandestinamente, colocaram em risco a vida de milhares de pessoas,
jovens na maioria. A Justiça Militar, no voto de alguns ministros, optou pela
impunidade.
Quando do atentado, o Brasil era governado pelo general João Batista Figueiredo, que se propusera a dar continuidade ao projeto de abertura política. Vinte mil pessoas assistiam a um show de música popular no pavilhão de convenções conhecido como Riocentro, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Às 21h15, na área de estacionamento, uma bomba explodiu no interior de um automóvel marca Puma, marrom metálico, placa OT-0279. O carro era de propriedade do capitão Wilson Luís Chaves Machado, de 33 anos, especialista em informações, que ficou gravemente ferido. A seu lado morreu, instantaneamente, o sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, de 35 anos, especialista em explosivos. Ambos pertenciam ao Destacamento de Operações de Informações (DOI), um dos braços do Centro de Operações para Defesa Interna (CODI) do I Exército. Todas as evidências mostravam que a explosão teria ocorrido no colo da vítima, no momento em que manuseava o artefato que deveria ser destinado a alvo previamente demarcado.
Pouco depois, às 21h45, outra bomba,
esta mais potente, explodiu em local próximo à casa de força do Riocentro, mas
errou o alvo. O objetivo era cortar a luz e produzir o pânico coletivo em um
ambiente fechado. A intensidade do som da música cantada na ocasião por Elba
Ramalho impediu que a plateia ouvisse o barulho, e o show continuou. Lá fora,
um cadáver, um ferido grave, militares à paisana deixando o local e uma série
de histórias e versões mal contadas se iniciaram, dando forma a um dos episódios
mais conturbados, contraditórios e vergonhosos da história militar do país.
A primeira reação do Exército
foi atribuir o atentado à esquerda. O sargento Rosário foi enterrado com honras
militares, na presença das maiores autoridades do Exército no Rio de Janeiro. A
versão oficial simplificava o ocorrido e queria fazer crer que aquele era mais
um gesto truculento da esquerda armada. Mas, aos poucos, os fatos foram mudando
de figura. Testemunhas apareceram, contradições despencaram, e a versão oficial
caiu por terra. Um inquérito foi instaurado e fatos inconvenientes para as
Forças Armadas começaram a vir à tona. Verificou-se, entre outras
irregularidades, que várias pessoas, pertencentes ao quadro das Forças Armadas
e da polícia, tinham sido deslocadas de suas funções de segurança, às vésperas
do atentado, e substituídas por outras vinculadas diretamente ao sistema de
repressão e ao Serviço Nacional de Informações (SNI).
Dentro da própria administração
do centro de convenções várias medidas foram tomadas desmontando o sistema de
segurança local. Esse desmonte foi premeditado com detalhes, como se veio a
apurar mais tarde, e poderia ter ocasionado uma das maiores chacinas jamais
ocorridas no país. Às 22h30, depois das duas explosões, a polícia chegou ao
local e mais uma bomba foi encontrada no carro do capitão. Os primeiros
resultados do inquérito apontaram para a responsabilidade criminal dos dois
militares, mas o chefe desse primeiro inquérito foi destituído. Ganhava força a
interpretação de que aquele havia sido um "acidente de trabalho". Ou
seja, os militares estavam a serviço e, por problemas técnicos, não souberam
operar os dispositivos. Por isso um deles acabou explodindo no colo do
sargento.
Outro coronel, Job Lorena
Santana, foi nomeado para presidir o inquérito. Concluiu que os dois militares
"foram vítimas de uma armadilha ardilosamente colocada, por terceiros, no
carro do capitão", e atribuía a culpa a "grupos identificados como
VPR, MR-8 e Comando Delta, sendo os dois primeiros radicais de esquerda e o
último agrupando radicais de direita". Em julho, um promotor militar da 3ª
Auditoria do Exército, no Rio de Janeiro, recomendou o arquivamento do
inquérito, alegando "falta de indícios de autoria". O corregedor da
Justiça Militar não concordou e interpôs representação ao Superior Tribunal
Militar (STM), pedindo o desarquivamento. Em meio a toda essa briga jurídica,
que ainda se estenderia por outras instâncias, o chefe do Gabinete Civil da
Presidência da República, general Golbery do Couto e Silva, demitiu-se,
deixando claro que discordava do rumo dado ao caso. Golbery pertencia ao grupo
de militares que nessa ocasião defendiam, ainda que discretamente, uma punição
exemplar para os criminosos.
Um acompanhamento mais fino do
processo mostra que a pressão pelo arquivamento veio mesmo do Exército, que se
mostrou irredutível na sua posição de não punir membros da instituição. Os
ministros militares das outras forças acabaram, na maioria, por motivos corporativos,
atendendo ao pleito do Exército, mas com isso colocaram em risco a integridade
de toda a corporação. Mesmo com esse custo, os militares brasileiros
demonstravam uma unidade de posições que sempre lhes foi peculiar quando se
trata de defender os interesses da corporação frente ao "público
externo".
Com o avanço da democracia no
país cresceram as expectativas de que o caso fosse reaberto e apurado com
rigor. A cada ano novas versões, novos fatos ou hipóteses apareceram. Em abril
de 1991, dez anos após o ocorrido, o ex-presidente Figueiredo, que deixara o
poder em 1985, afirmava, contradizendo-se, estar convencido de que o atentado
fora obra dos militares apontados como vítimas. Em março de 1999, a
Procuradoria Geral da República, acatando argumentos e estudos de várias
organizações de defesa dos direitos humanos, aceitou encaminhar pedido de
reabertura aos órgãos competentes. Em meados de 1999 iniciou-se um novo IPM, a
sexta tentativa de reabrir o caso. Em maio de 2000, contudo, o STM decidiu
novamente pelo arquivamento. Esta decisão significa que, do ponto de vista
jurídico, o caso Riocentro está encerrado, não cabendo mais recurso.
A decisão da Justiça, naquele
momento, combinava com a posição do governo brasileiro, então chefiado por
Fernando Henrique Cardoso e tendo José Gregori como secretário nacional de
Direitos Humanos. Nas palavras deste último, era preferível evitar confrontos
com as Forças Armadas ou, no jargão militar, "abrir feridas antigas".
Temia-se que a punição de um militar, em decorrência de seu envolvimento
político, gerasse reações cujas consequências ninguém podia prever. E o caso
Riocentro continuou a ser um assunto tabu, assim como tantos outros que
comprometeram o perfil das Forças Armadas durante a ditadura.
Há certamente, em todo o
episódio, uma supervalorização social e política das Forças Armadas como
instituição que poderia ficar acima da lei e da crítica. Isto se explica pela
longa preeminência dos militares na política brasileira e pelas prerrogativas que
obtiveram ao longo de nossa história. Mas os tempos são outros, e embora parte
da elite brasileira se recuse a mudar, a democracia e a justiça se impuseram
como valores a serem preservados. Por isso mesmo, o Riocentro ocupa hoje o
lugar que os militares pleitearam para ele: foi um acidente do passado, coisa
da história, página virada. Numa versão mais objetiva, foi uma história de
impunidade que desmoralizou as Forças Armadas frente à inteligência e aos meios
de comunicação do país.
MARIA CELINA D'ARAUJO é doutora em Ciência Política, professora e pesquisadora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV).
BIERRENBACH,
Júlio de Sá. Riocentro: quais os responsáveis pela impunidade? Rio de
Janeiro: Domínio Público, 19%.
DARAUJO, Maria
Celina, com Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro. A volta aos quartéis:
a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
CRAEL, Dickson. Aventura,
corrupção e terrorismo: a sombra da impunidade. Petrópolis: Vozes, 1986.
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