“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Sexo forte

Enfrentando riscos, assumindo responsabilidades próprias dos homens e lutando pelos seus direitos, as mulheres participam da construção do Brasil desde os tempos da Colônia.

Eni Mesquita Samara


                    Ao contrário do que comumente se pensa, a luta pela emancipação feminina não é uma característica da modernidade. Pesquisas recentes mostram que as mulheres, desde o período colonial, estiveram integradas ao processo de povoamento e de circulação de riquezas no país. Lideraram famílias e negócios e, mais ainda, quando estavam insatisfeitas com o casamento não se acanhavam em pedir o divórcio. Já no século XVII, muitas habitantes da colônia demonstravam grande coragem acompanhando maridos ou filhos que se embrenhavam no sertão, desbravando terras virgens e fundando vilarejos. Outras, tendo ficado viúvas e sozinhas, davam continuidade às atividades antes desenvolvidas pelos homens da casa. Muitas deixaram sua marca na história, como Francisca Cardoso, braço direito do marido, Gaspar Vaz, juiz e vereador em São Paulo de 1596 a 1601, que após esse período recebeu ordens do governador d. Francisco de Souza para abrir uma estrada e fundar um novo povoado, Mogi das Cruzes; ou Maria de Moraes, que, com a morte do marido em 1683, assumiu com sucesso a administração das Minas de Caaguaçu, em São Paulo.

               Processos datados dos séculos XVIII e XIX mostram que as mulheres, enfrentando preconceitos e muitas vezes a truculência dos próprios maridos, sabiam muito bem como lutar para libertar-se de um casamento infeliz. Curiosamente, as ações de divórcio eram, na maioria, movidas por mulheres e aceitas pelo tribunal eclesiástico, especialmente nos casos de adultérios e de maus-tratos. Cabe esclarecer que desde a Colônia até o final do Império, os pedidos de separação e de anulação de matrimônio eram julgados pelo tribunal eclesiástico, pois tratava-se de assunto da alçada da Igreja, que embora aceitasse legalmente os pedidos de divórcio, exigindo a separação de corpos e bens, não permitia que os cônjuges contraíssem novas núpcias. O processo podia ser amigável ou litigioso e era concedido sob duas formas: anulação do casamento (permitida caso este não tivesse sido consumado por relações sexuais) e separação de corpos. Só era concedido a partir de alegações consideradas graves na época: adultério, abandono de lar, eventuais questões religiosas, maus-tratos, doenças infecciosas ou injúrias.

               Diferente daquele solicitado sob alegação de sevícias, o divórcio por adultério possuía natureza perpétua, incluindo o "toro" (camas separadas) e a separação dos consortes, que passavam a habitar, por decisão do tribunal, casas diferentes. Já no caso da prática de maus-tratos denunciada pela mulher, a separação era concedida de forma temporária, de modo que o marido pudesse ter tempo de abrandar o gênio e vir a assinar depois um "auto de composição", no qual propunha-se a mudar o comportamento e tratar a mulher de modo moderado. Caso isso não acontecesse, a cônjuge descontente podia retomar o processo.           

               Conforme percebemos nos relatos das esposas envolvendo adultério, havia sempre por parte dos juízes a preocupação em definir com exatidão que tipo de infração fora cometida pelo marido. Uma coisa era trair a mulher de forma casual, com meretrizes. Outra, considerada bem mais grave pela Igreja, era um concubinato estável e perdurável. Isso provocava escândalo e agredia a moral da sociedade. O fato de o marido ter uma concubina, supunha-se, o levava a ausentar-se de casa, deixando faltar alimentos e roupas para a família. Exemplo dessa situação aparece no processo que Jesuína Luiza dos Santos moveu em 1828 contra o esposo.

               A mulher, que se diz "matrona grave, honesta e de reconhecida probidade", justifica o seu pedido de divórcio alegando viver "o dito marido" concubinado com uma "Francisca de Tal", desta mesma cidade (São Paulo) e de, além disso, estar contagiado pela "morféa", nome que se dava à hanseníase. Por esse motivo, ela "se não tem resolvido a ter ajuntamento carnal com o sobredito marido". Jesuína informa que, antes de casar-se, não tinha conhecimento de que o esposo estava infeccionado e que ignorava o fato do mesmo viver concubinado, pois "que se tal soubesse certamente não se casava com ele".

               Em outro processo, de 1855, este movido por um homem contra uma mulher, um italiano naturalizado brasileiro, casado com uma italiana e residente em São Paulo, ausentou-se do Brasil por prescrição médica, indo à Itália tratar da saúde. Ele deixou aos cuidados da esposa a administração de todos os bens do casal, incluindo uma casa de pensão e um hotel. Para sua surpresa, ao retornar, em 1856, a mulher havia vendido o hotel e passara para o nome do amante a casa de pensão, além de continuar vivendo como adúltera.

               Como se pode perceber, homens e mulheres viveram situações de conflito no casamento que resultaram em traições de ambos os lados. No entanto, em função da legislação que vigorava na época, havia diferenças nos julgamentos dessas ações "pecaminosas". Para os maridos, era necessário provar-se a existência de uma concubina "teúda e manteúda". Para as mulheres, um simples desvio bastava para incriminá-las. Por isso, quando as esposas alegavam adultério, frequentemente os maridos tentavam acusá-las do mesmo crime. Se conseguissem prová-lo, o processo estaria encerrado, pois afinal uma fornicação fora paga com outra.

               As desigualdades também persistiam ao longo dos julgamentos, pois, para assegurar que obteria a separação, a suplicante deveria, no tempo em que estivesse correndo o processo, manter uma conduta idônea, sem nem mesmo poder sair de casa. Caso fosse vista perambulando pela cidade, o marido podia requerer, exigindo que ficasse "depositada" em casa honesta. Uma forma de as esposas garantirem o ganho da causa era sempre colocar-se diante do júri conforme os padrões aceitos pela sociedade. Deviam apresentar-se como mulheres honestas, obedientes e recatadas. O ideal era conseguir provas de que o marido não cumpria seu papel de provedor e protetor.

               Ao alegarem maus-tratos por parte dos cônjuges, elas conseguiam mais facilmente ganhar a causa, já que as sevícias constituíam uma ameaça à integridade física e à preservação de suas vidas. Essa acusação sempre tinha mais peso do que supostas relações extramatrimoniais do marido. Se este fosse acusado apenas de traição, caberia à esposa o ônus da prova, e ela podia também ser acusada de adultério, o que dificultaria o ganho da ação.

               A atuação das mulheres não se resumia, entretanto, a disputas jurídicas com os seus maridos. Desde a Colônia é possível perceber sua marcante presença nos setores de serviços e de abastecimento. Eram costureiras, doceiras, tecelãs, lavadeiras e quitandeiras. No campo, trabalhavam na lavoura e também nos ofícios domésticos. Este era um nicho do mercado frequentemente descartado pelos homens. Portanto as mulheres, assim como os trabalhadores livres e pobres, tinham no sistema a alternativa das atividades mais humildes e menos rentáveis.

               O movimento constante da população dos séculos XVII ao XIX, associado à forte migração masculina, principalmente para as áreas de fronteira, deixou muitas mulheres sozinhas, sem perspectiva de casamento. E estas tiveram de buscar por conta própria meios que garantissem sua sobrevivência, a de seus filhos e agregados. O panorama certamente explica a alta incidência de mulheres chefes de família, especialmente nas áreas urbanas. Em São Paulo, no ano de 1836, elas estavam representadas em 35,8% dos domicílios. Em Fortaleza, em 1887, correspondiam a 30%. Um dos índices mais altos é o de Vila Rica de Ouro Preto, em 1804, onde 45% das famílias eram encabeçadas por mulheres. Seja numa economia em florescimento, como a São Paulo da segunda metade do século XIX, ou numa situação econômica desfavorável, como a Fortaleza assolada pela seca, as mulheres chefes de família constituem destaque na organização social, exercendo profissões consideradas tradicionais, comandando escravos e agregados ou em outras ocupações surgidas com a diversificação econômica.

               Ao longo do século XIX, vão ocorrer uma série de mudanças na vida das mulheres, abrindo-se novas oportunidades no mercado de trabalho. Segundo o Recenseamento Geral do Brasil, realizado no ano de 1872, notamos que nas ocupações femininas da população ativa, com idade maior de dez anos, que declararam ter atividade, há destaque para serviços domésticos (22,83%), serviços agrícolas (18%) e de costura (10,59%). No século XX, a sociedade brasileira muda. As migrações para a cidade e o ritmo da vida urbana industrial transformaram tanto os aglomerados familiares, modificando o tamanho das famílias e as relações entre parentes, quanto a autoridade do pai e do marido frente à entrada efetiva da mão de obra feminina no mercado de trabalho. Isso implicou um processo de reconhecimento do trabalho feminino, na medida em que complementava a renda familiar. Neste período, as mulheres, apesar de exercerem atividades marginais ao processo produtivo, preenchiam os quadros de prestação de serviços exigidos pela urbanização, empregando seu conhecimento de técnicas domésticas na industrialização incipiente. No entanto, ainda eram obrigadas a assumir uma dupla jornada de trabalho, pois continuavam responsáveis pelos cuidados da casa.

               Com isso, uma nova gama de profissões vai-se consolidando. Em 1940, para a população brasileira, elas aparecem em atividades domésticas não remuneradas (70,74%), serviços domésticos remunerados (3,99%), como professoras (7,23%), trabalhadoras industriais (2,17%), agricultoras em geral (9,69%) e atividades extrativistas (0,27%). Estão ainda nas profissões liberais, em menores porcentagens, aparecendo como médicas, veterinárias, dentistas, farmacêuticas e profissionais do ensino.

               Se no século XIX o ideal burguês de valorização da família, da mulher dedicada ao lar, sustentada pelo marido e preservada dos males da rua, foi desejado pela maioria das mulheres, já ao longo do século XX o mercado de trabalho atraía cada vez mais mulheres. Com a recente possibilidade de ascensão e independência financeira, começou a delinear-se o redimensionamento dos papéis de gênero na sociedade. A cidadania, por sua vez, é uma conquista através do voto feminino concedido no processo democrático brasileiro em 1933.

               Concluindo todo esse percurso da história das mulheres no Brasil, podemos dizer que se hoje elas desfrutam da cidadania, da igualdade de direitos, do acesso à educação e ao mercado de trabalho, isso foi conquistado com muito esforço. Por outro lado cabe ainda observar que mesmo no passado as mulheres brasileiras não estiveram apenas restritas ao âmbito doméstico, como se pensava, mas presentes no processo de colonização, na formação de vilas, no gerenciamento de negócios e atividades e nas chefias de domicílio. A sua presença também pode ser constatada na documentação processual e nas reivindicações pela igualdade, que já aparecem por volta de 1850, com as primeiras vozes feministas. Ao ser resgatada, a história da participação das mulheres na sociedade brasileira nos mostra que, apesar das diferenças de classe e etnias, elas souberam desde cedo organizar-se, em contextos quase sempre desfavoráveis, para reivindicar direitos e oportunidades.

 ENI MESQUITA SAMARA é professora de História na USP, diretora do Museu Paulista e autora dos livros As mulheres, o poder e a família. São Paulo: Marco Zero, 1989 e Família, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII. Bauru/SP: EDUSC, 2003

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005

Saiba mais - Bibliografia

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995. NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

PERROT, Michelle. Os excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Saiba Mais: Link

As perseguidas

Maria da Penha demora a sair do papel

Ficando para titia

Mulheres Invisíveis (2011)

O sexo a quem compete?

Pisando no "sexo frágil"

Ficando para titia

Tropas femininas em marcha

Nenhum comentário:

Postar um comentário