“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Escândalo imperial

Paixão proibida de d. Pedro I pela marquesa de Santos, com quem teve cinco filhos, foi o escândalo do Primeiro Reinado.

Mary Del Priore

              Seis de março de 1819: amanhece na cidade de São Paulo. O sol se estira sobre o quadrilátero das ruas próximas à Chácara dos Ingleses. Uma mulher envolta em seu longo manto de baeta negra caminha com pressa. Vinha, como dirá mais tarde ao juiz eclesiástico, da casa da prima. Numa esquina, ela, o marido e outro homem se encontram. Trocam-se insultos. De repente, estocadas cortam o ar. Não se sabe como a mulher sobreviveu ao ataque. Seria mais um caso de violência - uma das admitidas reações masculinas ao adultério das esposas -, não fosse ela a futura marquesa de Santos, aquela que incendiou de paixão e desejo o primeiro imperador do Brasil.

               Domitila, Dometília - como foi batizada - ou Titília como era chamada em casa, última filha do coronel reformado João de Castro do Canto e Melo (1740- 1826), 1º visconde de Castro, e de Escolástica Bonifácia de Toledo Ribas (c.1755-?), nasceu a 27 de dezembro de 1797, na pequena São Paulo. Ao contrário de muitas de suas contemporâneas, foi alfabetizada. Aos 16 anos, idade normal nestes tempos, se casou com um oficial do II Esquadrão do Corpo de Dragões de Vila Rica, na antiga capitania das Minas Gerais, o alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça (1789-1833).

               Amor? Os enlaces, então, passavam longe das razões do coração. O noivo pertencia à cavalaria paga que tinha por objetivo a defesa dos governadores, além de contar com um salário razoável e de ser membro de família conhecida, razões suficientes para se tornar companheiro de moça bem-nascida. Vêm ao mundo os dois primeiros filhos do casal, Francisca e Felício e, quando grávida do terceiro, João, alegando maus-tratos, Domitila troca Vila Rica por São Paulo.

               As várias biografias sobre a vítima não hesitam em repetir que era maltratada e injuriada, isto é, apanhava do marido. Um exame do processo de divórcio, um dos muitos solicitados por mulheres à Justiça Eclesiástica ao longo do século XIX, deixa, contudo, o historiador com a pulga atrás da orelha. Não passa desapercebida a informação de que o marido teria feito circular papéis sobre "a sua honra" e que, depois de tê-la esfaqueado "a ponto de ensopar as mãos em seu sangue", teve a "animosidade de mostrar a faca toda tinta de sangue" ao tenente Francisco da Silva, dizendo que acabara de matar a mulher. Reação de marido traído, poderíamos deduzir pela leitura do documento.

               A pequena cidade deve ter fervido em "murmurações", nome que então se dava aos mexericos. Em agosto de 1822, vivendo separada do marido, Domitila conhecerá d. Pedro (1798-1834) quando ele vai a São Paulo abafar a Bernarda, movimento que representou o primeiro golpe na influência dos Andradas na cidade. Tinha d. Pedro 24 e Domitila 25 anos. Belíssima? Não exatamente. Um certo pendor para a gordura, três partos, duas cicatrizes por causa das estocadas, um rosto fino e comprido, aceso pelo olhar moreno.

               As condições do encontro, nesta mesma época, são cercadas por lendas. Apresentada a d. Pedro por Francisco Gomes da Silva, por apelido o Chalaça, secretário de Sua Majestade? Pelo próprio irmão João de Castro do Canto e Melo, que viera na comitiva do jovem monarca? Amor à primeira vista, quando o príncipe a vira cruzar numa cadeirinha? Pouco importa. Teve aí início um dos poucos romances que se podem acompanhar por meio da correspondência entre os amantes. Logo após se tornar imperador, d. Pedro deixa de lado a discrição, transformando Titília numa "teúda e manteúda" que apresenta à Corte e instala em casa, atual Museu do Primeiro Reinado, ao lado do Palácio de São Cristóvão.

               Em novembro de 1822, d. Pedro felicita Domitila por "estar pejada" e anuncia-se "disposto a sacrifícios" para honrar os compromissos de pai. Mas a criança nasce morta. Em 1824, vem ao mundo Isabel Maria de Alcântara Brasileira (1824-1898), apelidada "Belinha". Em 12 de outubro de 1825, d. Pedro, já imperador, contempla a amante inicialmente com o título de viscondessa, no mesmo ano em que nasce mais um filho do casal, Pedro de Alcântara Brasileiro (1825-1826). Em 1826, no dia do imperial aniversário, ela se torna a marquesa de Santos. Não era ele, no dizer da viajante inglesa e amiga de Leopoldina, Maria Graham (1785- 1842), "dotado de fortes paixões e grandes qualidades"? Dá-se então um documentado episódio: tendo os diretores do Teatro da Constituição recusado a entrada da marquesa numa das representações, sob pretexto de que sua conduta não era digna da boa sociedade, baixou-se ordem para que fossem fechadas as portas, e presos os mesmos diretores. O imperador era um amante zeloso!

               Amante, sim, e quanta paixão. As cartas cuidadosamente reunidas, em 1943, pelo historiador Alberto Rangel (1871-1945) não deixam mentir. São recheadas de suspiros e voluptuosidade: "Meu amor, meu tudo", "meu amor, minha Titília", "meu benzinho... vou aos seus pés", "aceite o coração deste que é seu verdadeiro, fiel, constante, desvelado e agradecido amigo e amante", rabiscava. Mortificado de ciúmes e suspeitas, perguntava, "será possível que estimes mais a alguém do que a mim?". E assinava-se "seu Imperador", "seu fogo foguinho", "o Demonão", quando não acrescia eroticamente, como se vê em carta no Museu Imperial, o desenho do real pênis ejaculando em louvor da amante.

               Cumprindo o ritual dos enamorados daqueles tempos, enviava-lhe, como qualquer plebeu, muitos agrados: "quartos de vaca, botões de rosa, cestinhos de morango, peça de fita, ramo de flores, metade de um peru, queijos, figos, papel, rosas, caça, lírios brancos". E cavalos. Um "picaço negro marchador" e outro "lebruno marchador".

               O amor adúltero se desenvolvia à vista de todos, dividindo a Corte. Os irmãos Andrada, e em particular José Bonifácio, reprovavam a atitude do jovem imperador, que considerava comprometedora da imagem do novo Império no exterior. Ainda como viscondessa, Domitila foi elevada a dama camarista de d. Leopoldina e acompanhou o casal numa viagem de dois meses à Bahia. O secretário da imperatriz escreveu, em fevereiro de 1826, ao chanceler austríaco Klemens Wenzel von Metternich (1773-1859) para reprovar a "fatal publicidade da ligação" com a marquesa de Santos, debitando-a à "resignação e introspecção" da princesa austríaca.

               "A viagem da Corte à Bahia provocou um grande escândalo, pois o imperador, ao se fazer acompanhar pela imperatriz, sua filha mais velha e sua amante titular, chocou logicamente todo mundo", anotou o diplomata a serviço da chancelaria austríaca e confidente de Leopoldina, barão de Maréchall. Crescem as hostilidades à "Pompadour tropical", e d. Pedro recebe inúmeras cartas anônimas de protesto. Em março falece, aos três meses, o pequeno Pedro, outro fruto da união escandalosa. O fato causou embaraço aos ministros que não sabiam quais formalidades adotar com o corpo do defuntinho. Ao final, ele recebe exéquias reais. Por outro lado, Belinha é reconhecida em declaração oficial e elevada ao título de duquesa de Goiás.

               Multiplicavam-se as murmurações contra a Castro, que reunia em São Cristóvão uma família bastante característica destes tempos: filhos legítimos e ilegítimos, seus sete irmãos, sobrinhos e cunhadas, o tio materno Manuel Alves, a tia-avó d. Flávia e as primas Santana Lopes. O barão de Maréchall anotava em relatório enviado à Áustria: "A família aflui de todos os cantos; uma avó, uma irmã e uns primos acabam de chegar".

                A morte de d. Leopoldina, no final de 1826, aos 29 anos, obriga d. Pedro a tomar certos cuidados, pois não faltaram manifestações acusando Domitila de ter envenenado a imperatriz. A própria Leopoldina se queixara, em carta ao pai, que o marido a maltratava "na presença daquela que é causa de todas as minhas desgraças". Insultos, ameaças, proibições de entrar no palácio e mesmo uma tentativa de linchamento revelam a reação dos moradores do Rio à presença da concubina.

               Em 1827, já gozando de todas as prerrogativas de marquesa, Domitila recebe ainda a condecoração da Real Ordem de Santa Isabel de Portugal, além de conseguir títulos de nobreza para o restante da família. Tanto agrado deixou marcas e aguçou desafetos, dando munição aos que se batiam pelo fim das honrarias. Os receios de um casamento da amante com o imperador se espalhavam. Metternich não escondia seu horror: "É inconcebível que o imperador pense em se casar com a senhora de Santos, pois seu marido é vivo [...] Seria inconcebível, para não dizer pior, que o imperador confiasse a guarda de seus filhos à senhora dos Santos e a nomeasse tutora ou aia". Perigo havia, mas quando as notícias da busca de uma noiva para o imperador viúvo se espalharam, as cartas de amor que Domitila recebia mudaram de tom. Agora, d. Pedro falava em "gratidão e afeto particular" chamando-a de "minha amiga". Grávida dele pela quarta vez, percebe suas intenções quando ele pede que se distancie da Corte com a promessa de uma pensão generosa. A "concubina e sua comitiva" - relatava Maréchall aos superiores austríacos - seriam afastados antes da chegada da nova esposa. A 13 de agosto de 1827, nascia no Rio de Janeiro Maria Isabel de Alcântara Brasileira, a quarta filha de Domitila com d. Pedro.

               Assinado, em 1829, o contrato de casamento com a princesa alemã Amélia de Leutchemberg (1812- 1871), segunda esposa de d. Pedro, o casal se separaria definitivamente. De volta a São Paulo, onde nasce a quinta e última filha que teve do imperador, Maria Isabel de Alcântara Brasileira II (1830-1896), Domitila se instala na casa de seu concunhado, o conde de Valença. Seus bens passam a ser administrados pelo coronel Rafael Tobias de Aguiar (1795-1857), com quem se casa em 1842, mesmo ano da Revolução Liberal, movimento em protesto contra o presidente da província, barão de Monte Alegre. Ela tem de Aguiar mais quatro filhos. Ao falecer como brigadeiro, em 1857, ele a deixa com muitas propriedades e escravos.

               Alçada à condição de "dama de maior prestígio e atividade social de São Paulo", a marquesa mantinha abertas as portas de seus palacetes do Açu e do Carmo, onde se realizavam saraus, bailes de máscaras, reuniões dançantes, provavelmente inspirados na vida que tivera na Corte. Cruzando a cidade numa carruagem fechada com brasão, leva socorro aos pobres e desvalidos, sendo, também, conhecida por suas atividades filantrópicas. Durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), Domitila se destaca por fazer doações e colocar à disposição das tropas que passavam por São Paulo suas terras e fazendas. Falece aos setenta anos, em 3 de novembro de 1867, de enterocolite, tendo precisado aos testadores que desejava um funeral sem ostentação. Seus restos mortais repousam no Cemitério da Consolação, terras de sua propriedade que, consoante a condição de viúva magnânima a que se elevara, doou à cidade de São Paulo.

 MARY DEL PRIORE é historiadora e autora de História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005.

Fonte: Revista Nossa História – Ano 3 - nº 31 - maio 2006

Saiba mais - Bibliografia

Cartas de d. Pedro I à marquesa de Santos. Notas de Alberto Rangel. Rio de Janeira: Nova Fronteira, 1984. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das e MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

PINHO, Wanderley. Salões e damas do II Reinado. São Paulo: Martins Editora, 1942.

RANGEL, Alberto. D. Pedro I e a marquesa de Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1916.

 Saiba Mais: Link

Fidelidade, acima de tudo, à monarquia

Palavras de imperatriz

Último desejo

Sexo forte

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