“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Pipa, pião e chicote

Crianças brasileiras absorveram referências de diversas culturas do mundo, ampliando seu universo próprio de brinquedos e brincadeiras, com muita diversão e também crueldades.

Renata Meirelles

                              Nas casas-grandes das fazendas coloniais brasileiras, imagem comum era a de meninos negros, filhos de escravos, obrigados a imitar cavalos enquanto recebiam golpes de chicotes de seus sinhozinhos que se divertiam montados em suas costas. Em outras brincadeiras de menino, no entanto, essa relação de dominação se invertia: principalmente em disputas de jogos de pião e papagaio, como conta José Lins do Rego em Menino de engenho, de 1932. Fora do controle adulto e sob regras infantis, as diversões nos terreiros e pomares eram lideradas pelos moleques negros que mostravam sua superioridade nas habilidades de matar passarinho com bodoque, nadar em rios e subir em árvores. Assim, os pequenos fazendeiros acabavam por concordar em fazer trocas propostas pelos meninos negros: pediam para que furtassem coisas da casa-grande, como laranjas e pedaços de queijo, em troca de seus bodoques e piões, num processo de escambo permanente. Esses arranjos entre crianças marcaram a miscigenação de uma infância brasileira que agrega e eterniza outras culturas em seus brinquedos e brincadeiras

               O bodoque e o papagaio, por exemplo, nasceram em terras distantes, transitaram em culturas diversas e sofreram adaptações regionais até chegarem nas mãos dos meninos dos engenhos do país. As naus portuguesas aportavam carregadas de novas possibilidades lúdicas, que vinham nos bolsos das calças da população lusa, que na época pouco diferenciavam os jogos infantis dos de adultos.

               A cada passarinho morto pelo bodoque, revive-se no Brasil um pouco da influência moura. Na língua árabe, bondok significa projétil, pedra ou bola de chumbo. Foi essa palavra que deu origem ao nome do brinquedo citado por José Lins do Rego e utilizado até 1498 como um instrumento bélico europeu. Entre a arma e o brinquedo, o bodoque se assemelha a um arco de atirar flechas, com uma diferença na forma de amarrar as cordas: no lugar de uma, são utilizadas duas cordas paralelas, e a flecha é substituída por uma pedra. Existem registros de que este brinquedo já foi usado na indústria alimentícia no estado de Santa Catarina, que contratava atiradores de bodoque para quebrar a casca de nozes, lançando-as a paredes, sem que a polpa fosse atingida.

               Nas mãos dos meninos das fazendas, os bodoques eram confeccionados com facões e lixados com cacos de vidro. Com o acerto de cada passarinhada, um risco com a faca era feito no punhal do brinquedo, para revelar a todos as novas conquistas. Os meninos conheciam a época certa de se lançar na aventura da "caça", que coincidia com a chegada do inverno, quando normalmente, segundo a sabedoria popular, "dava muito sabiá".

              O papagaio é mais um exemplo típico de brinquedo sazonal, mas, à diferença do bodoque, tem origem oriental, chegando inicialmente no Maranhão no século XVI, trazido pelos portugueses. Os primeiros registros do brinquedo - ou brincadeira - contam que foi criado por um general chinês de 206 a.C , conforme indica a enciclopédia chinesa Khé-Tchi-King-Youen - citada pela educadora Tizuko Kischimoto em Jogos tradicionais infantis, o jogo, a criança e a educação (1993). Segundo a tradição chinesa, a pipa, como é também chamada, foi largamente usada em estratégias militares, servindo de instrumento de comunicação entre soldados, enviando notícias a locais sitiados ou pedindo ajuda. Os séculos correram e esse uso estratégico de um hábito infantil pode ser visto atualmente nas favelas do Rio de Janeiro, na comunicação constante feita com traficantes de drogas.

               Grande apaixonado pelo papagaio, o poeta amazonense Thiago de Mello, em seu Arte e ciência de empinar papagaio, oferece uma lista de palavras utilizadas no vocabulário específico ao brinquedo praticado no início do século XX em cidades da Amazónia. Alguns exemplos como imbicar ou embiocar (descer verticalmente de cabeça para baixo), papocar (quando a linha se rompe sozinha), quedar (triste verbo para quem é cortado) e aparar (pegar pela rabiola o papagaio de outra criança e descer com ele até sua mão). Palavras que também estão até hoje na boca de meninos e meninas do Nordeste e Sudeste brasileiros, interligando a cultura lúdica do país.

               Aparentemente simples, as brincadeiras de barbantes, mais conhecidas como cama-de-gato, de caráter estético, criavam, pelo menos desde o início do século XX, possibilidades de representações "artísticas" de aspectos do cotidiano. Em seus registros feitos em visita aos índios Taulipangues no Norte do Brasil no início do século XX, o antropólogo alemão Theodor Koch-Grunberg, que muito influenciou as obras do escritor Mário de Andrade, relata a maneira como as crianças se divertiam com esses fios entrelaçados entre os dedos formando diferentes figuras. Tratava-se de um a brincadeira de um ou no máximo dois meninos - nunca meninas - que recorriam (e ainda o fazem) até aos dentes para desvencilhar os dedos dos fios. Segundo Koch-Grunberg, as figuras que se formavam recebiam nomes de acordo com o que representavam, mesmo que a semelhança fosse bastante remota. Raízes da palmeira da bacaba, aranha grande, órgão sexual feminino e casas de índio eram algumas das figuras que uniam as imagens lúdicas ao cotidiano dos meninos das aldeias.     

               Alegria, ausência de brigas e desavenças e a presença constante de representações de animais foram as marcas registradas das brincadeiras entre crianças indígenas no início da colonização brasileira, registradas pelo padre Cardim, citado por Gilberto Freyre. Ainda antes das naus portuguesas atracarem suas brincadeiras nas terras do pau-brasil, crianças indígenas recebiam de suas mães animais e bonecas de barro cozido e aprendiam, em idades mais avançadas, a fazer brincadeiras de entrelaçar fios de algodão entre os dedos. Um brinquedo ainda hoje presente entre os curumins brasileiros, antes utilizado em rituais sagrados, é a perna de pau. A imagem de um pássaro pernalta chamado grou, representada na utilização da perna de pau, não tem registro de ter sido criada no Brasil, mas pode ser considerada mais uma dessas brincadeiras que surgem em terras distantes em épocas aproximadas.       

               E, se nas comunidades indígenas reinava a tranquilidade nas brincadeiras dos curumins, nos engenhos e cidades existiam certas malvadezas infantis, como as representadas nas cantigas de beliscões, tapas e chicotadas citadas por Gilberto Freyre. O autor acredita que o menino do engenho revoltava-se dos sofrimentos de uma educação rígida e de muitos castigos, e dos cinco aos dez anos tornava-se um verdadeiro menino-diabo. Mesmo em jogos de piões encontrava uma forma de "lascar-se o pião" do outro, uma prática mantida até hoje entre as crianças. No jogo do "belilisco de pintainha que anda pela barra de vinte e cinco", os beliscões e bolos eram frequentemente aplicados nas mãos das crianças menos espertas. Beliscão medroso por parte dos moleques e forte e doloroso quando aplicado pelos meninos brancos, o que serve como mais um exemplo de dominação racial refletida nas brincadeiras das crianças da época. Essa brincadeira do beliscão citada por Freyre continua até hoje como repertório da cultura infantil, demonstrada por inúmeras cantigas cantadas por crianças de comunidades ribeirinhas da Amazônia: "... quem se mexer vai levar um beliscão, bem na ponta do dedão".    

              Reforçando a tese de meninos-diabo, o padre Lopes Gama, citado por Freyre, rechaçava a educação libertina recebida pelos meninos de família, vistos nas cidades brincando pelos telhados como gatos, empinando papagaios, ou jogando pião pelas ruas com a "rapaziada mais porca e brejeira". Nos campos e fazendas, critica o padre, os meninos assim que podiam vestir-se com suas ceroulinhas ganhavam uma faquinha de ponta, "como no século dos cavaleiros andantes", e passavam a matar bichinhos inocentes em seus ninhos. E matavam mesmo, a cacetadas, como conta José Lins do Rego em um trecho de Menino de engenho, onde narra que muitas crianças se escondiam atrás de arbustos esperando as rolas sertanejas que vinham matar a sede em poças d'água - e pau nelas.

               Mas não foram apenas beliscões e desavenças que inspiravam músicas para crianças, outro belíssimo exemplo de uma cultura miscigenada e universal. A partir do século XIX, passaram a desembarcar no Brasil novas referências de cantigas e rodas infantis que chegavam junto a imigrantes de diferentes nacionalidades. Dessa maneira, ampliava-se a diversidade linguística nas canções, que já vinha agregando em suas letras palavras como dindinho, dengo, iaiá, moleque, vindas da África, ou arapuca, pereba, pipoca, originárias do tupi.

               Apesar de Mário de Andrade nos assegurar que a roda infantil brasileira, como texto e tipo melódico, permanece firmemente europeia e particularmente portuguesa, é possível encontrar influência francesa em versos como "eu sou pobre, pobre, pobre de marre deci" ("Je suis pauvre, pauvre, pauvre...") ou influência italiana na versão adaptada Capelinha de melão, que originalmente era a Capelinha de Milão. O nosso esconde-esconde é o escondoirelo espanhol, ou cache-cache francês. O jogo popular das cinco-pedrinhas, cinco-marias, ou bóle-bole, como é mais conhecido no Brasil, veio de Portugal com o nome de bato, pedras, chocos, jogas, temos, botelhas ou chinas, este último como também é conhecido na Espanha. Os romanos brincavam de sum sub luna, que o castelhano chama sonsoluna e o ibero-americano frio y caliente, tradução para o quente e frio tradicional no Brasil.

               A brincadeira da amarelinha é outro exemplo desta mistura linguística. Até que se prove o contrário, uma interpretação possível é que o nome amarelinha tenha vindo de um a corruptela do nome deste jogo em francês: marelle, que significa pedrinha, jogada nos desenhos feito no chão.

               Assim, em uma mistura de cores e saberes, o repertório cultural infantil permanece como um espelho vivo de cada cultura, garante representações do simbolismo humano e aproxima povos diversos que se reconhecem em gestos simples, como no lançar de um pião.

 RENATA MEIRELLES É MESTRANDA PELA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, IDEALIZADORA DO PROJETO BIRA - BRINCADEIRAS INFANTIS DA REGIÃO AMAZÔNICA, E DIRETORA DE CURTAS - METRAGENS, COMO BAMBEIA E CAPITÃO MENINO, QUE RETRATAM FORMAS DE SE BRINCAR EM COMUNIDADES DA AMAZÔNIA.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional – Ano 1- Edição nº 4 - outubro 2005

Saiba mais - Bibliografia

CASCUDO. Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global. 2001.

FERNANDES. F. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo, São Paulo: Martins Fontes. 3ª ed. 2004. KISCHIMOTO. T. M. Jogos tradicionais infantis, o jogo, a criança e a educação. Petrópolis: Vozes. 1993. MELLO, Thiago. Arte e ciência de empinar papagaio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

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