Primeiros dias de maio de 1938. Adolf Hitler percorre varias cidades
italianas, numa visita oficial que visa estreitar ainda mais os laços que unem
seu governo com o da península, liderado por Mussolini. O acordo de amizade,
assinado dois anos antes entre os dois paises, e que foi recebendo logo em
seguida pelo próprio Duce italiano o nome de Eixo, enaltecera
os elementos que já aproximavam os dois regimes desde a tomada do poder de
Hitler na Alemanha: progressiva eliminação de qualquer oposição e instauração
de um regime político com partido único, autoridade concentrada nas mãos do
líder (embora exercitada em meio a contínuos compromissos com vários centros de
poder), supressão de uma atividade legislativa autônoma e ênfase no executivo,
organização da propaganda e controle absoluto dos meios de comunicação. Os
fascismos no poder se aliam e erguem uma muralha diante do mundo liberal e
democrático.
Mussolini, no governo na Itália desde
1922, reduzira progressivamente os espaços de liberdade política, sindical, de
expressão. Hitler, guia do Estado alemão desde 1933, reerguera militarmente o
país, conduzindo-o num processo de expansão territorial sem fim: em março de
1938 a Áustria é anexada (Anschluss) ao Reich, Viena independente não
existe mais. Fascistas e nazistas estão apoiando há tempo o golpe das tropas
nacionalistas na Espanha republicana. Antes do fim do ano, as armas alemãs,
ameaçando a integridade da Tchecoslováquia, tornarão necessária uma conferência
entre os lideres das quatro potências (Inglaterra, França, Alemanha e Itália)
em Munique para evitar um conflito europeu. Mas o ano de 1939 mostrará que a
guerra europeia e mundial de possibilidade remota virou trágica
realidade.
Um Dia Muito
Especial
Mas voltamos a Roma, Itália, 6 de maio de
1938. Enquanto multidões em festa acolhem o Führer em sua
visita à cidade, há quem não participe diretamente do evento histórico. No seu
belíssimo “Um dia muito especial”, de 1977, o diretor italiano Ettore Scola
conta a história de duas pessoas, Antonietta e Gabriele, que se encontram
casualmente naquele mesmo dia, numa Roma quase deserta, estabelecendo entre
eles uma relação de simpatia e amizade. Ela, casada com um funcionário do
Estado fascista e mãe de seis filhos, dona de casa frustrada e triste; ele,
locutor radiofônico que acaba de ser despedido de seu trabalho. O filme nos
apresenta o encontro entre duas solidões, a da mulher que vive pelo marido e
pelos filhos, numa existência sem amor e sem esperança, e a do homem, que chega
a confessar sua homossexualidade, motivo pelo qual perdeu seu emprego (a
discriminação do militante político de esquerda, do cigano, do africano das
colônias italianas e do homossexual marca a política fascista antes até da
perseguição aos judeus).
No longa, somos apresentados ainda a duas
modalidades distintas de se posicionar diante da ditadura, ambas presentes no
cenário histórico da Itália de então: a aceitação, em parte convencida, em
parte resignada, da situação, sem muita capacidade de crítica e refém do fascínio
carismático de Mussolini (Antonietta), e a oposição ao regime de certo mundo
intelectual, que tenta manifestar sua insatisfação, mas não encontra formas
adequadas e eficazes, e acaba sucumbindo (Gabriele).
O trabalho de interpretação dos atores,
Sophia Loren e Marcello Mastroianni, dois astros do cinema italiano e mundial
aqui em dois papeis diferentes de seus habituais registros, e a direção
primorosa de Scola (que realiza no inicio do filme um magistral plano-sequencia
que nos introduz na vida de Antonietta e em sua residência) tornam a película
um dos pontos altos da carreira do cineasta. O diálogo constante entre as
pequenas histórias dos dois protagonistas e a história pública, ‘oficial’, que
se desenrola nas ruas da cidade, registrada pela voz onipresente dos aparelhos
de radio que acompanham a visita de Hitler, é o verdadeiro trunfo do
filme. Aquele que na história foi ‘um dia muito especial’, por contribuir
para cimentar uma relação (Hitler-Mussolini) que levará o mundo à catástrofe da
guerra, se confirma tal também para aquele homem e aquela mulher: pela amizade
que realiza entre os dois, pela tomada de consciência que desperta, pelas
transformações que opera em suas existências.
Concorrência
Desleal
Vinte e quatro anos e dezenas de filmes
depois (entre os quais não se pode esquecer “Casanova e a revolução”, ainda com
Mastroianni, em 1982) Scola volta àquele ano de 1938 e àquelas temáticas com
seu delicioso “Concorrência desleal” (2001). De novo Roma, de novo 1938, então,
mas agora o cenário não é um apartamento, e sim uma rua, onde, lado a lado,
dois comerciantes trabalham no mesmo ramo de negócios: Umberto é um alfaiate
que produz trajes sob medida, Leone é dono de uma loja de roupas prontas. Entre
as respectivas famílias há laços de amizades, mas é concorrência aberta entre
os dois. Concorrência ‘desleal’, segundo Umberto, pois seu rival se aproveita
de suas ideias comerciais para aumentar suas próprias vendas, inclusive usando
de preços mais baixos. Um detalhe importante: Leone e sua família são judeus,
condição que, como para a maioria dos italianos de origem judia da época, não
lhe impede uma pacifica convivência com o resto da população da rua.
Mas estamos em 1938: Mussolini está cada
vez mais ligando sua política à de Hitler (aqui também há a referência à
passagem do líder nazista pela cidade, no mês de maio) e a partir de setembro
varias medidas legislativas atingem os judeus, desde a proibição de frequentar
escolas publicas, até o impedimento de casar com arianos. Leone e a família são
atingidos, em suas vidas e negócios. Agora a ‘deslealdade’ passa para o plano
humano, existencial: por que uma identidade, uma diversidade pode se tornar
fonte de perseguição? Desleal é o regime que seleciona e separa, desleal é o
italiano que aponta o dedo, delata e se aproveita. Scola retoma aqui o tema da
discriminação do diverso que já abordou no filme de 1977.
Ótimos interpretes, Sergio Castellitto e
Diego Abbatantuono nos papeis principais, com Gérard Depardieu como o professor
antifascista irmão de Umberto, e a habitual direção de Scola, capaz de alternar
os timbres da emoção e do sorriso com os do drama, levam o longa rumo ao
seu epílogo: como no de 1977, o final não é dos mais felizes, mas mostra que há
lições que vêm para ficar.
Um Dia Muito
Especial
Direção: Ettore Scola
Ano: 1977
Áudio: Italiano/legendado
Duração: 103 minutos
Concorrência Desleal
Direção: Ettore Scola
Ano: 2001
Áudio: Italiano/legendado
Duração: 106 minutos
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