A medida, que ainda precisa ser sancionada pela presidente Dilma
Rousseff para começar a valer, representa um avanço na luta por justiça social
e diversidade no ensino superior, mas especialistas alertam que o caminho para
a igualdade de acesso à educação ainda é longo.
Marcelo Paixão, professor da Faculdade de
Economia da UFRJ e um dos principais especialistas em desigualdades raciais no
Brasil, lembra que só cerca de 10% das vagas do ensino superior foram
preenchidas por cotistas em 2010, embora cerca de 70% das universidades já adotassem
o sistema.
“O que já foi feito está aquém do
necessário. Nós andamos para não sair no lugar. Depois de tantos anos de luta,
o percentual do total de ingressantes em 2010 por cotas, segundo o Censo Nacional de Educação Superior, ainda é muito baixo. A
iniciativa do senado é uma forma de fazer a roda acelerar e, portanto, é
bem-vinda”, ressaltou.
Bem-vinda, desde que bem acompanhada,
observou a socióloga e professora da Faculdade de Educação da UFRJ, Rosana
Heringer. “Podemos assistir a uma efetiva democratização do acesso, desde que
as universidades públicas se preparem para receber esses alunos, tanto
adequando a formação complementar, quanto ampliando políticas de assistência
estudantil, como bolsas e auxílios para transporte, que contribuem para a
permanência dos cotistas”.
Embora comemore os avanços das ações
afirmativas no Brasil, a professora da Escola de Comunicação da UFRJ Liv Sovik
critica a falta de um debate que transcenda a mera opção pró e contra cotas
entre os docentes. “Que papel tem a educação superior no universo geral da
educação? O governo está muito preocupado com o PIB e o equilíbrio das contas,
mas não tem um plano para a educação como um todo. É preciso saber o que
estamos ensinando, pra que a universidade existe. Uma das coisas mais
decepcionantes da atual greve é a falta de interesse dos professores nessa
discussão”, afirmou Sovik.
Segundo ela, o senso comum relaciona
erroneamente a entrada de cotistas a uma queda na qualidade do ensino. “A falta
de preparo dos alunos que chegam das escolas públicas à graduação é um
problema. Mas os alunos de escolas particulares também não estão preparados. A
ideia de que uma educação de luxo prepara o aluno para o ensino superior é uma
falácia”. Liv aposta que a motivação do estudante supera a defasagem escolar.
“Tenho alunos que, mesmo sem uma trajetória em colégios de ponta, são mais
motivados e, com isso, têm um desempenho melhor”, acrescenta.
A resposta a críticos que alegam que as
cotas trazem prejuízo ao ensino deveria vir das instituições que já adotam
ações afirmativas, mas ainda são poucas as que divulgam estudos sobre o
desempenho dos cotistas. “Algumas universidades acreditam que os alunos podem
se sentir discriminados e outras não publicizam seus resultados por questões
políticas”, explicou Paixão. As pesquisas conhecidas dão contade desconstruir a relação entre cotistas e mau desempenho, como as realizados pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj) e pela Universidade de Campinas (Unicamp).
Cotas
sociais x cotas raciais
Pelo texto aprovado no Senado, metade das
vagas será reservada para alunos que cursaram todo o Ensino Médio em escola
pública. Desse total, 50% serão para estudantes com renda familiar de até um
salário mínimo e meio por pessoa. A outra parte será destinada a alunos negros,
pardos e índios e, neste caso, a distribuição deve obedecer a mesma proporção
dessas populações em cada estado, apontada no Censo do IBGE.
A adoção de critérios de classe combinados
com critérios de raça para a reserva de vagas não é ponto pacífico entre os
defensores de ações afirmativas. Entre seus críticos está o pesquisador da UERJ
João Feres Junior. “Dados da UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro) mostram que nos anos em que vigorou o sistema antigo [cotas para
escola pública separadas de cotas étnicas], 2003 e 2004, entraram
respectivamente 40 e 60 alunos não-brancos – aproximadamente 11% do total de
ingressantes. A sobreposição de critérios que passou a operar no ano seguinte
derrubou esse número para 19”, argumenta em artigo intitulado “Inclusão no ensino superior: raça ou renda?”.
Além de importantes ferramentas para
ampliar a representação social de grupos minoritários em locais de prestígio
social, como é o caso das universidades, as cotas raciais contribuem com a diversidade. “As turmas da graduação são muita homogêneas,
concordam ou fingem concordar sobre uma série de questões e isso traz um
problema pedagógico, não é bom pro debate, pra dinâmica das aulas. A educação
superior vem formando historicamente as elites brasileiras e, no Brasil, elas
são brancas. É fundamental que os jovens convivam com diferenças”, declarou
Liv.
Ainda é desproporcional o número de
estudantes negros e indígenas que chegam ao ensino superior, em comparação com
sua proporção na população, mas a sociedade brasileira demonstra estar cada vez
mais aberta para o caminho da mudança e da inclusão.
Raça Humana
O documentário Raça
Humana, que trata de um tema muito polêmico: a adoção de cotas raciais nas
universidades brasileiras. É neste clima de “assunto proibido”, discutido só
entre os pares, que os entrevistados do documentário Raça Humana, produzido
pela TV Câmara, começam a desfiar o intrincado novelo das cotas. Durante três
meses, a equipe que trabalhou no documentário acompanhou a rotina de uma das
maiores universidades do país: a Universidade de Brasília-UnB, que de forma tão
ousada quanto isolada adotou o sistema de reserva de vagas com recorte
puramente racial. No documentário, alunos cotistas e não-cotistas, professores,
movimentos organizados, partidos políticos e representantes da instituição
falam abertamente sobre o “tabu” das cotas raciais, seja defendendo ou condenando
o sistema.
No documentário, questões
seculares e mal resolvidas da história do Brasil vão ressurgindo, tendo como
pano de fundo a discussão das cotas raciais. Ao refletir sobre a reserva de
vagas para negros no ensino superior, os entrevistados revelam que a discussão
vai muito além: envolve o papel das universidades brasileiras; as falhas do
sistema educacional; a questão da meritocracia nos vestibulares; o racismo e,
principalmente, o papel do negro na estrutura socioeducativa do país.
Direção: Dulce Queiroz
Ano: 2010
Duração: 41 minutos
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