“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Caça ao rato

No início do século XX, os cariocas trocavam roedores por dinheiro e ajudavam no combate à peste.
     “Rato, rato, rato!” Ao ouvir esse grito no Rio de Janeiro no início do século XX, nada de olhar para o chão nem ficar em um pé só. O melhor seria correr atrás do rato, dar-lhe uma paulada e entregá-lo ao “ratoeiro”, provável autor do grito. Esse funcionário pagava a quem recolhesse ratos na rua e revendia os animais para o governo. A simples iniciativa tirou de circulação mais de 1,6 milhão desses animais entre 1903 a 1907, diminuindo os casos de peste bubônica. Mas também aguçou a malandragem dos cariocas: muitos chegaram a fabricar ratos de papelão e cera para vender.
     A esperteza desses enganadores não era o problema mais grave. Parte da população e até alguns cientistas se recusavam a aceitar que a cidade estava assolada pela mesma peste que aterrorizou a Europa na Idade Média e no início da Idade Moderna, com muito mais mortes que no Rio de Janeiro. Segundo o escritor Daniel Defoe (1659? - 1731), só no ano de 1665, em Londres, a doença teria dizimado cerca de 68 mil pessoas de uma população total de 450 mil.
     Já no Rio de 1900, que tinha uma população de 690 mil habitantes, um pouco maior que a da capital inglesa no século XVII, 360 pessoas morreram em 1903, o pior ano da epidemia. Até 1907, foram duas mil mortes. Como era difícil estabelecer o diagnóstico e muitas famílias escondiam seus doentes, talvez este número tenha sido até maior, mas não o suficiente para impressionar a população e a comunidade científica.
     O governo do presidente Campos Sales (1898-1902) também demorou a admitir que a chegada da peste representava um perigo. A doença desembarcou no Brasil em outubro de 1899 pelo porto de Santos (SP), provavelmente trazida por algum viajante do Porto, em Portugal. A primeira vítima no Rio de Janeiro foi registrada em janeiro de 1900, mas o ministro da Justiça, Epitácio Pessoa (1865-1942), disse que o foco inicial na capital havia sido combatido “satisfatoriamente” e a doença “exterminada em seu nascedouro”. No entanto, o aparecimento de novos casos em abril, que vitimaram não só imigrantes vindos de Portugal, mas também brasileiros, levou o governo a reconhecer oficialmente, em 21 de maio, que a peste estava instalada na cidade.
     Os primeiros esforços para acabar com a doença foram pouco objetivos. A maior dificuldade era definir que tarefas cabiam à Higiene Municipal e à Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), órgão federal responsável pelo combate às grandes epidemias. O médico Nuno de Andrade (1851-1922), diretor da DGSP de 1897 a 1903, só podia dar ordens aos serviços de saúde municipais com autorização do prefeito, o que só ocorria nos momentos mais críticos das epidemias. A falta de integração entre os órgãos de saúde voltava a ser regra depois que os casos diminuíam.
     Diante dessas dificuldades, a estratégia do governo contra a peste foi a mesma usada para combater outra epidemia, a da febre amarela. Os doentes eram removidos e isolados, e suas casas e bens passavam por desinfecção ou eram destruídos. Essas medidas dificultaram a expansão da peste, mas não a exterminaram. A cada mês de agosto, um mês frio, quando as pessoas ficavam mais tempo juntas em casa, a doença voltava a atacar.
     Quando Rodrigues Alves (1848-1919) assumiu a Presidência da República em 1902, sua meta era o saneamento da capital federal. Naquele momento, o Brasil tinha como projeto político a sua modernização segundo os padrões europeus. As epidemias que atingiam o Rio de Janeiro, como a febre amarela, a varíola e a peste, eram vistas como indícios de atraso. Para mudar a situação, o presidente indicou para prefeito do Distrito Federal o engenheiro Francisco Pereira Passos (1836-1913), que comandou uma ampla reforma na cidade. O sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917) foi nomeado para a direção da DGSP, e assumiu o cargo em março de 1903 com total responsabilidade sobre o combate às doenças epidêmicas na capital.
     Além das medidas que já vinham sendo cumpridas, como as desinfecções e os isolamentos, Oswaldo Cruz combateu de maneira enérgica os vetores, isto é, os organismos que hospedam os vírus e as bactérias que causam as doenças. Criou as brigadas de mata-mosquitos para combater a febre amarela e a figura do caçador-comprador de ratos. Ele usou como base as descobertas do cientista franco-suíço Alexandre Yersin (1863-1943), que havia identificado o bacilo da peste em 1894, provando que sua transmissão ocorria pelas pulgas do rato. Mas a ideia de caçar esses roedores não era nova. Já havia sido testada e aprovada pelos americanos nas Filipinas.
     Os “ratoeiros” foram criados por um decreto de setembro de 1903. Eles tinham como obrigação recolher 150 ratos por mês, pelos quais recebiam 60 mil-réis, o que serviria para comprar uma cesta básica na época. O salário, considerado baixo, era um estímulo para que capturassem mais ratos, já que recebiam 300 réis por animal excedente, o que permitia comprar três cafezinhos. Por isso, não paravam de sair às ruas – principalmente na zona portuária, onde a incidência da peste era maior – munidos de ratoeiras, venenos e potes com creolina, onde colocavam os ratos capturados. E ainda levavam uma pequena corneta, que usavam para anunciar sua chegada.
     A medida criou um novo mercado e, é claro, virou tema de carnaval, como na polca “Rato, rato, rato”, composta por Casemiro da Rocha (1880-1912) em 1904 (Clique e ouça). A música usava como refrão o pregão dos ratoeiros e terminava com uma alusão ao comércio dos roedores:

 “Rato, rato, rato / Por que motivo tu roeste meu baú?
Rato, rato, rato / Audacioso e malfazejo gabiru.
Rato, rato, rato / Eu hei de ver ainda o teu dia final
A ratoeira te persiga e consiga, / Satisfazer meu ideal.
(...)
Rato velho, descarado, roedor/ Rato velho, como tu faz horror!
Vou provar-te que sou mau / Meu tostão é garantido
Não te solto nem a pau.”

     A nova profissão também foi eternizada pelo escritor Paulo Barreto (1881-1921), que assinava com o pseudônimo João do Rio, em seu livro de crônicas A alma encantadora das ruas, de 1908:
“A mais nova (...) dessas profissões, que saltam dos ralos, dos buracos, do cisco da grande cidade, é a dos ratoeiros, o agente de ratos, o entreposto entre as ratoeiras das estalagens e a Diretoria de Saúde. Ratoeiro não é um cavador – é um negociante. Passeia pela Gamboa, pelas estalagens da Cidade Nova, pelos cortiços e bibocas da parte velha da urbs, vai até ao subúrbio, tocando um cornetinha com a lata na mão. Quando está muito cansado, senta-se na calçada e espera tranquilamente a freguesia, soprando de espaço a espaço no cornetim.”
     Além de cantar e escrever sobre os ratos, alguns cariocas aproveitavam também para levar vantagem nesse comércio. Criavam os roedores em currais e até os “importavam” de cidades vizinhas, como Niterói. Entre os animais incinerados no Desinfectório Central estavam alguns feitos de papelão e cera.
     Um dos principais “empresários” deste ramo ganhou as páginas dos jornais da época. Conhecido apenas como Amaral, acabou preso pelo contrabando de ratos. Desvios como esse eram amplamente noticiados pelos jornais, que aproveitavam para criticar a iniciativa de Oswaldo Cruz.
     No entanto, os números comprovam que a campanha foi um sucesso. Nos primeiros meses em que esteve em vigor, de setembro a dezembro de 1903, de acordo com relatórios de Oswaldo Cruz, foram capturados e incinerados mais de 24 mil ratos. Já no ano seguinte, esse total chegou a quase 296 mil. Em 1907, quando a operação começou a diminuir, foi divulgado o número oficial de 1,6 milhão de ratos incinerados nos quatro anos anteriores. O cronista Luís Edmundo (1878-1961), entusiasta da reforma de Passos, afirmou que “só na zona dos bacalhoeiros da Rua do Mercado e na de certos trapiches da Saúde se conseguiu um número de ratos maior que o da população do Distrito”, que na época estava em torno de 800 mil pessoas.
     Toda essa caça teve resultados positivos: à medida que o número de ratos diminuía na cidade, a quantidade de óbitos por causa da peste declinava progressivamente, passando de 360 em 1903, quando a operação começou, para 73 em 1907. Mesmo com muita gente querendo se aproveitar da epidemia, a política foi um sucesso para a saúde pública.
Dilene Raimundo do Nascimento é pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e autora do livro As pestes do século XX (Editora Fiocruz, 2005).
Matheus Alves Duarte da Silva é graduando em História pela UFRJ e bolsista de Iniciação Científica CNPq/Fiocruz, na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
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Saiba Mais - Bibliografia
BENCHIMOL, Jaime. “Reforma urbana e revolta da vacina na cidade do Rio de Janeiro”. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
DEFOE, Daniel. Um diário do ano da peste. Porto Alegre: L&PM, 1987.
EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Conquista, 2003.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Saiba Mais – Filme
Sonhos Tropicais
No início do século XX chegam ao Rio de Janeiro, no mesmo navio Esther, uma jovem polonesa com a promessa de se casar e iniciar uma nova vida, e Oswaldo Cruz, que retorna de Paris cheio de sonhos em transformar a saúde pública do país. Esther, uma jovem judia vinda da Polônia com a promessa de se casar, mas quando chega ao Rio de Janeiro é brigada a trabalhar como prostituta em um bordel da Lapa. Esse tipo de situação era comum no inicio do século XX, pobres ou fugidas do antissemitismo acabavam se tornando prostitutas, ou por serem obrigadas ou por falta de opção, eram as chamadas “Polacas” ou “Escravas Brancas” - essa pratica só começo a decair após a década de 40. Já Oswaldo Cruz, foi nomeado chefe do departamento de Saúde Pública responsável por eliminar as várias doenças - peste bubônica, febre amarela e a varíola- que assolavam a população da cidade. Anos de insatisfação popular e forte oposição política explodem a "Revolta da Vacina".
 Direção: André Sturm
Ano: 2002
Áudio: Português/Legendado
Duração: 124 minutos

Saiba Mais – Documentário
A Peste Negra
No século 14, a peste bubônica deixou um saldo de 25 milhões de mortos e fez tantas vítimas que os corpos tinham de ser queimados em piras. Os primeiros sintomas da doença popularmente conhecida como “peste negra” eram semelhantes à de um simples resfriado. Na tentativa de fugir da peste, nobres vindos de Messina, Gênova, Marselha e Veneza lotavam navios que, em vão, tentavam desembarcar em Constantinopla. Muitos morreram em barcos à deriva. Levada para a cidade pelos ratos que saíam dos navios, a peste chegou à Turquia. O programa reconstitui o início da praga, como ela se espalhou pelo mundo e o cotidiano das pessoas que a enfrentaram.
Produção: The History Channel
Ano: 2005
Áudio: Português/Legendado
Duração: 90 min

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