“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

terça-feira, 2 de julho de 2013

Piada Sem Graça

Conteúdos preconceituosos são transmitidos para milhões de telespectadores por comediantes da TV, que alegam suposta "neutralidade" nos programas humorísticos.
     "Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade. Homem que fez isso [estupro] não merece cadeia, merece um abraço".
     Essa e tantas outras piadas do comediante Rafinha Bastos, ex-integrante do programa CQC, da Rede Bandeirantes, renderam-lhe uma série de críticas e denúncias, principalmente por parte de grupos feministas, como a Marcha das Vadias em São Paulo, que, no ano passado, pendurou cartazes com dizeres como "machismo não leva a nada, estupro não é piada" em frente a um teatro na rua Augusta, onde o ex-apresentador fazia seu show de stand-up comedy.
     Há algum tempo atrás, seu ex-colega de CQC, que hoje apresenta o programa Agora É Tarde, na mesma emissora, também chegou a ser denunciado por ter feito a já antiga analogia racista entre negros e macacos, quando disse em tom humorístico: "King Kong, um macaco que, depois que vai para a cidade e fica famoso, pega uma loira. Quem ele acha que é? Jogador de futebol?".
     "É preciso saber de que lado você está da piada", diz o ator e palhaço Hugo Possolo, no documentário O Riso dos Outros, dirigido por Pedro Arantes. A reflexão é bem colocada em um momento em que, comediantes e emissoras da TV brasileira, referenciam-se na linguagem do humor, para, muita vezes, fugir dos debates de conteúdos conservadores contidos em seus discursos humorísticos.
     A defesa, muitas vezes, é de que, no humor, tudo não passa de uma brincadeira. De que ele não pode ser confundido com "opinião". E qualquer posicionamento contra o mesmo, seria uma tentativa de patrulhamento ideológico do "politicamente correto". Isso vem levantando algumas reflexões em torno do género. Se ele deve ter limites, responsabilidades, e se, o que vem sendo produzido, trata-se realmente de humor, já que, muitas vezes, este foi definido como uma linguagem questionadora do poder, que deve subverter e transformar realidades.

"Humor De Insulto"
     O comediante e ator Bemvindo Sequeira define esse tipo de humor como "humor de Insulto",e também analisa que se trata de uma espécie de sensacionalismo do género, assim como o existente no jornalismo, com relação à violência e à intolerância. "O máximo que o 'humor de insulto' consegue fazer é ofender pessoas. Mas não questionam nem o sistema, nem as instituições", comenta.
     Na sua concepção, a piada para ser válida precisa ter graça e a ofensa não é engraçada. Isso seria um limite da linguagem. Para explicar isso, faz uma diferença entre a "graça" e a "desgraça". Para ele, a graça se dá em momentos de "elevação humana" e a "desgraça" "em situações infernais, destruindo o ego das pessoas".
     O que se produz, por uma parte da nova geração de humoristas do Stand-up Comedy, carrega, na opinião de Bemvindo, características do humor estadunidense, marcado por uma violência doentia própria de sua sociedade.
     O stand-up, que não é novo no Brasil, foi introduzido em 1949, pelo humorista José Vasconcellos, que foi adaptando o género de acordo com as características do humor latino, criando caricaturas tipicamente brasileiras. "Em toda a sua carreira, fez humor sem ofender ninguém", conta o ator, que faz uma ressalva de que nem todos os humoristas atuais do Stand-up Comedy se enquadram no que considera "humor de insulto".
     O cartunista e jornalista Gilberto Maringoni comenta que um outro limite do humor é aquele que esbarra no poder económico, no poder de quem paga a piada. "Isso ficou claro quando Rafinha Bastos fez a piada com a Wanessa Camargo. Ele não foi processado por ser machista, mas por ter mexido com quem anuncia no CQC, por quem coloca limites", diz. E complementa: "O CQC, sempre faz piadas com políticos no Congresso Nacional, alguns merecem. Mas nunca vi fazer piada sobre os péssimos serviços de telefonia ou sobre as filas nos bancos. Porque não vai atacar o grande empresariado que é anunciante do programa dele".

Deboche
     Os temas relacionados aos negros, mulheres, homossexuais, deficientes, entre outros, sempre foram os preferenciais do humor. Para Bemvindo, isso é natural, pois o humor trabalha com exceções, e não com a regra. "Se você não fala dos anões, eles deixam de existir, se você não fala de gay, eles vão para o gueto. E é possível fazer isso sem a destruição do ego, sem transformá-los em anti-humano e antissocial. O humor pode destruir, mas pode abraçar as pessoas", comenta.
     O tratamento dado pelo humor brasileiro a esses grupos, muitas vezes, não os aproxima de sua humanidade. Na TV, por exemplo, o deboche em cima de estereótipos se dá, em grande parte, reforçando preconceitos.
     Uma das personagens mais recentes neste sentido, e que causou também polémica, é a Adelaide, interpretada pelo ator Rodrigo Sanfanna, no programa humorístico Zorra Total, exibido aos sábados pela Rede Globo.
     Adelaide entra em cena como mendiga para pedir esmola dentro do metro. Para representá-la, o ator pinta a cara de preto, coloca dentes estragados e separados e exibe um nariz exageradamente alargado. Adelaide concentra em sua figura características historicamente utilizadas pelo humor para se referir aos negros como forma de inferiorização: é desdentada, pobre, inculta e feia.
     Em um dos episódios veiculados em 2012, Adelaide comentou, por exemplo, que, durante uma enchente, quando foi resgatar sua palha de aço viu que, na verdade, eram os cabelos da sua filha, repetindo a piada de que cabelo crespo é um cabelo "ruim". Durante sua performance e diálogo com outros personagens, outros atributos relacionados aos negros são inferiorizados. Para a psicóloga Sandra Sposito, se as mulheres negras aparecem nas novelas sempre como subalternas ou erotizadas, no humor, assumem sempre o papel do grotesco. Suas características físicas são sempre ridicularizadas, e o seu lugar na sociedade, naturalizado.
     Para o humorista Bemvindo Sequeira, a apresentação de Adelaide não chega a ser racista, mas, para ele, deprecia as mulheres negras. Além de achar um cliché velho, que passa uma imagem de humor da década de 1950.
     Diversas entidades denunciaram o quadro à Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial. Não foi a primeira vez que o conteúdo do Zorra Total foi questionado. Em 2011, o Sindicato dos Metroviários de São Paulo formalizou um pedido à rede Globo, para que a mesma retirasse do ar o quadro "Metro Zorra Total", por naturalizar a violência sexual contra as mulheres.
     Durante o quadro, a personagem de Thalita Carauta, Janete Balbuína, era sempre bolinada por algum homem no vagão do metro. Em um dos episódios, ao comentar para a sua amiga, a transexual Valéria Vasques, que um homem passava a mão em suas partes íntimas, esta respondia para Janete não reclamar, pois ela tinha que aproveitar por "ser feia demais". Em diversas vezes, as duas personagens riam da situação que, na realidade, é trágica para muitas mulheres. Para as que já passaram por essa humilhação, esse discurso humorístico não é engraçado.
     Assim como a piada de Rafinha Bastos, a cena humorística naturaliza a cultura do estupro da sociedade,
pois não se propõe a problematizá-lo. Se muitos acreditam que não é papel do humor denunciar problemas sociais, poderiam, pelo menos, deixar de construir discursos cómicos que tornam natural e risível uma violência que atinge milhares de mulheres brasileiras.
     Esses questionamentos são vistos, muitas vezes, como um exagero. Tanto os atores do Zorra Total, como Rafinha Bastos, deram declarações de que somente se tratava de "humor" e que, claro, não são a favor do estupro.
     As emissoras de televisão costumam ter a mesma postura. Frente ao episódio, a Globo respondeu: "O Zorra Total é um programa humorístico cujos quadros trazem situações fictícias dissociadas da realidade. O quadro em questão não incita qualquer comportamento, muito menos a violência contra a mulher. Seu objetivo é entreter o telespectador, no que, acreditamos, é bem-sucedido".

É Só Uma Piada
     A desculpa da suposta neutralidade e descompromisso do humor é recorrente. Danilo e Rafinha também em diversas ocasiões deram declarações de que não se pode confundir "piada" com "opinião
pessoal". E que o objetivo do humor é somente fazer as pessoas rirem.
     Sobre essa questão, o escritor Antonio Prata em Riso dos Outros, faz algumas observações: "O humor é sempre conteúdo disfarçado, então ele pode dizer que é só uma brincadeira. [Mas] As piadas não têm fundo de verdade, elas são a verdade com um nariz de palhaço". E completa: "Quando você faz uma piada, você joga ela no mercado de ideias, está ajudando a criar a massa de cultura." Por ser um discurso, o humor também é ideológico, expressa opiniões e visões sobre o mundo.
     Para Bemvindo, os comediantes, além de terem a função de divertir o público e de serem, "antes de mais nada, um pronto-socorro dos trabalhadores cansados", seu papel é realizar a critica política, da sociedade, de seus costumes, etc. "O humor trabalha com a negação. Tudo o que é proibido e rígido, deve ser desmontado e amaciado por ele", comenta.
     Através da citação de alguns momentos históricos, Bemvindo explica a relação do humor com a ideologia política. Conta que foi durante a Revolução Francesa, por exemplo, que os palhaços conquistaram o direito à palavra no circo. Antes, seus processos cómicos estavam ligados somente à mímica e pantomima, explica.
     "Ao se engajarem na Revolução, precisavam fazer discursos políticos no picadeiro e, com isso, conquistaram a fala em cena", diz, relembrando também a importância do humor produzido durante a ditadura militar, feito por humoristas como Millôr Fernandes, Henfd, Ziraldo, entre diversos outros, como forma de combate e resistência ao regime.
     O cartunista e jornalista Gilberto Maringoni ressalta que, mesmo que o humor seja sempre crítico, não é necessariamente libertário. "Ele, muitas vezes, compactua com o que que há de pior na sociedade, com preconceitos arraigados. Se a sociedade é preconceituosa, o que domina, tanto no humor televisivo, radiofónico, impresso, e mesmo no humor nas ruas, é a repetição de preconceitos", diz o cartunista.
A cumplicidade do público com o discurso humorístico é também um limite do humor. A "graça" da piada também ocorre quando há um compartilhamento de opiniões, ideias entre o telespectador e o humorista.
     Para Maringoni, o humor é também reversão de expectativas. E se utilizar de elementos da realidade
dada, criando uma outra percepção sobre ela que, de tão repentina, torna-se engraçada.
     No mesmo documentário, Antonio Prata comenta que, quando se faz uma piada racista, por exemplo, não se está fazendo nada de inovador. Ri-se que o mundo é desigual. A construção do discurso cómico que desconstrói a realidade dada, seria mais difícil. "Quando você ofende alguém que não pode ser ofendido pelo poder dessa pessoa (aquele que faz a piada), esse humor é grande. Se você passa a mão na bunda do guarda, isso é engraçado, porque você está se arriscando. Ele tem uma arma e um cassetete na não", comenta o escritor, que depois questiona qual seria a graça de passar a mão na bunda do mendigo?

Politicamente (In) Correto
     As diversas denúncias e o questionamento em torno do humor preconceituoso é tido, atualmente, como um patrulhamento ideológico e uma tentativa de censura. Sobre isso, Maringoni opina: "O 'politicamente correto', que alguns denominam como uma tentativa de camisa de força é um dos nomes que se dá à reação social ao preconceito, inclusive a contida no humor. Nada tem a ver com o cerceamento da liberdade de expressão. O que não pode haver é a liberdade do exercício da bossalidade. A justiça não tem nada a ver com liberdade de expressão. Se eu sou agredido em qualquer situação, o canal democrático que eu tenho é entrar na justiça e processar o sujeito. Faz parte do regime democrático", opina o cartunista.
     Em entrevista ao Blog do Sakamoto, o diretor Pedro Arantes, dá um depoimento interessante sobre essa questão: "Com a organização desses grupos (de mulheres, negros, homossexuais, etc) e a conquista gradual de direitos, é cada vez menos aceitável que se faça piadas desse tipo, ridicularizando um negro por ser negro, uma mulher por ser mulher, um homossexual por ser homossexual. E menos aceitável não porque o mundo está mais chato ou careta, mas porque esses grupos historicamente ridicularizados, ao se organizarem, conquistaram direitos e voz para reagir. A partir do momento que esse humor passa a ser menos aceitável, existe uma reação daqueles que querem continuar fazendo essas velhas piadas. Essa reação, que se diz libertária, a medida em que combate a 'ditadura do politicamente correto', de fato está reagindo contra a perda de uma liberdade: a liberdade de um grupo historicamente dominante de oprimir, pela via do humor, os outros grupos sociais. A liberdade de alguns em limitar a liberdade e o direito dos outros. Uma liberdade que, no fim das contas, não passa de privilégio."
     Para a psicóloga Sandra Sposito, não deve haver um dispositivo legal que proíba as piadas de circularem. No entanto, a manifestação de grupos sociais deve ser legítima e encarada como natural, principalmente pelas grandes emissoras da TV brasileira que, por atuarem através de concessões públicas, deveriam abrir canais de discussão sobre produção de conteúdo.
     Para o jornalista e professor de comunicação social da PUC-SP, Silvio Mieli, além de grande parte do humor estar tomado por um neoconservadorismo, falta debate em torno de sua linguagem, que compromete sua inovação. "O fluxo de debate sobre a produção humorística foi enterrada pela indústria cultural", tanto na academia como dentro das produtoras, emissoras, opina o professor. "Você não encontra produções críticas sobre o humor que é feito no Brasil. Nós estamos infantilizados culturalmente, daí, as características desses programas de trabalharem nesse registro baixo", conclui.

Documentário “O Riso dos Outros” de Pedro Arantes.

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